Uma crônica sobre o rentista João, o Prefeito da cidade e a "Desigualdade"
Partamos da história, hipotética, abaixo:
João nasceu numa família abastada e branca. Estudou toda sua infância numa escola particular católica histórica, muito próxima ao singelo apartamento de sua família – de 500 m² no Itaim Bibi. Cresceu, acessou a escola de Negócios da USP e fez um MBA em Harvard. Hoje, ele continua morando no Itaim Bibi, trabalha no apartamento de sua família, que herdou e, só as vezes vai ao escritório da Holding financeira, da família também, que dentre outros negócios, atua com construção civil e especulação imobiliária.
Pois bem, João apoiou fortemente o candidato eleito à Prefeitura, nas últimas eleições municipais. Inclusive com recursos financeiros, já que as famílias são amigas de longa data. Contudo, ainda que João tenha uma vida razoavelmente confortável, ele não está feliz. O valor do IPTU do seu imóvel é motivo de revolta nos rooftops que frequenta no sábado a noite e nos jantares de domingo com a família, naquele restaurante que tem uma árvore no salão.
Antes de continuarmos, é bom lembrar que a receita arrecadada no IPTU pode ser alocada pela prefeitura em qualquer distrito da cidade, independentemente de sua fonte. Ou seja, os R$ 841.564.958,49 arrecadados no distrito de João – Itaim Bibi – no ano de 2018, poderiam facilmente ser investido em Marsilac, o distrito que menos arrecadou no último ano em São Paulo – R$ 79.088,63 – e que possui alguns indicadores bastante deficitários, como por exemplo, maior média de casos de gravidez na adolescência, mortalidade infantil, menor média de equipamentos de cultura, museus e etc.. . Estas informações constam no último Mapa da Desigualdade, elaborado pela Rede Nossa São Paulo.
Voltando. João, insatisfeito como está, resolve ligar para seu amigo Prefeito para ver a questão do IPTU, altíssimo. O Prefeito, conhecedor da Lei e do processo jurídico/político para a alteração das taxas de IPTU, é categórico quanto ao “não há nada que possa ser feito”. Contudo, o Prefeito sente dentro de si que existe uma dívida moral, política e financeira de sua parte para com João, que além de amigo pessoal, é apoiador e foi financiador da campanha do Prefeito.
Pois bem, o Prefeito então resolve mostrar “serviço” ao João. Pede que mais áreas verdes sejam edificadas no Itaim Bibi, que suas ruas sejam limpas com maior frequência, que todo o asfalto seja trocado, que sejam instaladas latas de lixo de mármore... enfim, toda a sorte de bem feitorias e zeladorias públicas. Todo o resto dos 841 milhões, terá de ir para pagar a dívida do município. João fica feliz. Mas, e o distrito de Marsilac? Bom, João nem sabe que existe.
O que no fundo quero dizer com essa pequena crônica é que, SIM, as DESIGUALDADES EXISTEM e é absolutamente INTERESSANTE ao CAPITAL FINANCEIRO que elas continuem, pois sem elas, o CAPITALISMO ruiria.
Pesquisas como o Mapa da Desigualdade são extremamente relevantes para embasar boas políticas públicas e para que os cidadãos criem consciência coletiva das mazelas que os assola. Contudo, a pesquisa aponta apenas os sintomas!
As soluções para a diminuição das desigualdades devem partir de dois princípios, tendo em vista o contexto macropolítico desfavorável:
1 – Educação civil e jurídica à população – e aqui o papel importantíssimo das OSC que atuam na ponta.
2 – Identificação da fonte real das desigualdades.
No caso de João e o Prefeito, pergunte-se, onde estão os problemas na construção cultural de João que o levaram a tomar a atitude que tomou e, onde estão os problemas macro que levaram o Prefeito a agir da maneira como agiu.
É urgente que nós, conscientes que somos (e eu prefiro crer que somos) paremos de achar que a solução para a diminuição das desigualdades está na construção de equipamentos de cultura e arte, por exemplo, quando a cultura nada mais é do que a troca consciente de vivência entre pares e a arte contemporânea pode ser feita em cada esquina.
BASTA de medicina social curativa. Previnamos que menos Joãos existam e que o macroambiente favoreça cada vez menos ações de Prefeitos como este.
Como? Institucionalmente, não sei. Mas, fica aí a indagação e o apelo à todos nós, para mais ação e menos eventos.