“É através da readequação do espaço urbano que a cultura da mobilidade ativa vai se disseminar”
Analista sênior de Mobilidade do WRI Brasil participou de evento do Painel da Segurança Viária (PSV) e falou sobre os desafios em melhorar a mobilidade nas cidades
A forma como se encara a rua não é uma só. Ela pode ser simplesmente uma via ou um lugar. Culturalmente, Reynaldo Neto, analista sênior de Mobilidade no WRI Brasil, acredita que, por termos cidades projetadas para priorizar os carros, a primeira opção é dominante. Porém, enxergar a rua como um lugar pode representar a busca por espaços urbanos mais seguros – com menos mortes no trânsito – e saudáveis – com formas de mobilidade mais sustentáveis podendo participar desses lugares.
Em apresentação feita no Painel da Segurança Viária (PSV), uma iniciativa do Instituto Cordial, Reynaldo apontou que os tipos de intervenções para melhorar as ruas não são poucas, indo desde o alargamento de calçadas até a expansão de áreas verdes. Esse processo de aprimorar o espaço urbano é baseado no esquema de ciclo virtuoso, que inclui as etapas de diagnóstico do espaço, a intervenção temporária, o projeto piloto e a intervenção definitiva. Cada um desses passos pode envolver o conceito de urbanismo tático, que é quando a população é protagonista tanto na idealização quanto na execução de projetos urbanos.
Reynaldo representou o WRI, um instituto internacional de pesquisa sem fins lucrativos que desenvolve trabalhos relacionados aos campos de cidades, florestas e climas. O serviço realizado pela iniciativa passa também por fornecer apoio técnico a órgãos públicos, como prefeituras. A seguir, você confere a conversa realizada com Reynaldo em live do PSV:
Quais os principais desafios na readequação dos espaços viários?
Essa pergunta é bem difícil. Temos hoje uma questão cultural forte de sistema muito “carrocêntrico”. Nós tivemos por muito tempo o incentivo ao uso dos motorizados, e agora vemos que isso gera uma série de questões como a segregação social, quando nem todas as pessoas têm acesso a todos os lugares dadas as distâncias que algumas zonas periféricas têm de áreas mais centrais, onde teoricamente há mais concentração de recursos e de oportunidades.
É difícil responder qual é o maior desafio, mas eu poderia dizer que é fazer com que todos os atores caminhem juntos, sejam eles no setor público, seja na sociedade, que também precisa entender os benefícios de muitas das intervenções. Há pessoas que não entendem que reajustar uma área de rua, não impede uma pessoa de circular com seu automóvel, mas possibilitar que o usuário da calçada consiga se deslocar de maneira mais segura. É um processo de conversa e ajuste. Essa matemática de colocar todos para conversar e de criar sinergias é o maior desafio e, ao mesmo tempo, é o que a gente mais gosta de fazer, porque é assim que conseguimos ir para a frente.
O ciclo virtuoso chega em um projeto definitivo?
A questão do ciclo virtuoso é muito importante no sentido de conscientizar a cidade, desde a sua gestão até as pessoas, de que esse projeto não necessariamente vai ser danoso. Muitas vezes há um receio de partir direto para o permanente, inclusive porque isso gera transtornos no processo de obra. Se você tem que fazer uma readequação de calçada, você terá que redirecionar o trânsito por um tempo. Isso gera uma série de questões que muitas vezes a própria população não aceita, o que cria um mal estar.
Então, através do urbanismo tático e das intervenções que não são permanentes, a gente consegue mostrar que essas readequações podem ser muito positivas. O urbanismo tático tende a ser temporário, ele tende a evoluir para uma intervenção permanente. Há alguns casos que o tático deu tão certo que ele continua lá, mas a ideia é que, como ele é feito através de sinalização com tinta, com mobiliário e vegetação, ele evolua para uma intervenção permanente, que inclusive vai ter um impacto muito maior.
Como funciona o diagnóstico? Ele envolve a população de alguma forma?
Quando falamos do diagnóstico, falamos de um diagnóstico participativo, em que você vai até a área onde a intervenção vai ser feita, conversa com a população e explica o processo. Isso envolve os órgãos públicos relacionados ao trânsito e à mobilidade. São feitos testes na área, medição da velocidade praticada na área. Também busca-se saber qual é o fluxo de pedestres, faz-se contagem de veículos e das linhas de desejo, que são por onde os pedestres estão atravessando a rua para que a gente consiga entender onde deve haver travessia, onde deve ampliar a calçada e onde deve haver áreas de estacionamento.
Essas medidas, então, trazem benefícios para todos, certo?
O mais importante é pensar que todos nós, enquanto pessoas, somos pedestres, independentemente de ter um carro, uma moto, utilizar o transporte coletivo ou o transporte privado, todos nós nascemos usuários da rua de um modo ativo, seja através da pedestralidade, sejam pessoas com algum tipo de deficiência, elas também utilizam a rua, ou aqueles usuários mais vulneráveis, especialmente idosos e crianças, que são pessoas para as quais temos que olhar. É através de uma readequação de um espaço para essas pessoas que também a cultura da mobilidade ativa vai se disseminar. Além disso, sabemos que o importante é desenhar, tentar pôr em prática, medir, gerar dados e a partir deles conseguir propor soluções técnicas adequadas.
Ao olhar para o futuro, vemos um caminho possível, mas o momento é urgente. Então, a gente tem que partir para ação agora e tentar de todas as formas transformar nossas cidades em lugares mais seguros.
Há alguma iniciativa legislativa do governo federal sobre o desenho da rua, que incorpore essa visão?
Tem sim. Tem o PNATRANS, que é o Plano Nacional de Redução de Mortes e Ações no Trânsito. É um material elaborado no âmbito da iniciativa Bloomberg, com o apoio do WRI. Esse plano tem eixos relacionados desde à gestão da segurança no trânsito e passando também pelo desenho de vias seguras e pela questão da educação. Se você procurar pelo PNATRANS, você vai encontrar esse documento que está sendo elaborado exatamente para que haja uma legislação sobre o tema.
Que mudanças no desenho urbano apareceram com a pandemia?
Muitas coisas mudaram em relação a ocupar a rua. Agora estamos em um momento em que as pessoas estão começando a voltar para a rua e entender que há necessidade de utilizar esse espaço.
Nesse período de pandemia não tivemos grandes mudanças estruturais no sentido físico, foi um momento realmente em que todos tiveram que parar. Mas muitas pessoas começaram a reconhecer a importância de se ter um espaço de qualidade na rua. Hoje, entende-se que um espaço aberto é muito mais seguro e saudável do que um espaço fechado. Nós procuramos mais locais onde a gente se sinta melhor em um ambiente aberto.
E junto com isso surge a questão ambiental. Sentimos que no pós-pandemia, vai emergir a relação da questão ambiental com a segurança viária, com o desenho viário. Como a gente pode reduzir emissões através de redesenho viário? Como a gente pode criar espaços que mitiguem essas emissões e que tornem as nossas cidades mais resilientes? Soluções como jardins de chuva para redesenho urbano ou então a utilização de outras soluções baseadas na natureza, como biovaletas, pisos drenantes, para evitar áreas alagáveis para evitar deslizamentos e outras catástrofes.