É o fim?
Não achei que esta newsletter viraria livro tão cedo. Afinal, a alma se faz ao longo da existência - por mais transgressora que se permita ser.
Quantos anos de elaboração seriam necessários para que eu pudesse chegar a algum tipo de conclusão decente sobre o processo de me tornar quem sou? Ou estou?
Quanta profundidade analítica precisaria dedicar para conhecer com riqueza psicológica cada persona que me habita?
Acontece que a vida se apresenta - como costuma dizer uma alma amiga.
E aqui estou, de coração acelerado diante de uma oportunidade de inscrever esta obra num prêmio literário de não-ficção latinoamericano cujo deadline é hoje.
Chamo o baile todo para conversar.
Venham cá: Franklin, meu ego carente; Mara, guardiã das regras e da moral; Soraya, sabotadora implacável; Marias, ancestralidade presente; criança sem nome representante do coletivo que ainda não se manifestou mas certamente me habita…
O que vocês pensam disso?
Encerrar ciclos é desafiador em qualquer contexto.
Será que estamos prontos para colocar um ponto final na Alma Transgressora, chamá-la de livro, e aguardar que novas Cintilâncias nos habitem para ver aonde vamos?
Venham para fora dos parênteses. Podem vir. Como essa ideia chega a vocês?
- Olha, honey, eu avisei que isso não ia dar certo, melhor parar agora mesmo… As pessoas nem devem estar lendo. Os feedbacks que você dizia serem alimento da alma estão cada vez mais escassos. Ninguém tem tempo de mergulhar nessas suas profundezas. Ainda mais toda semana, meu bem. Tá mais que na hora de desistir.
Obrigada, Soraya. Acolho seus medos, minha querida, mas eles não têm relação com a ideia de encerrar essa jornada. Repare: não falei em desistir. Queria apenas tornar a Alma Transgressora um livro, para que chegasse a mais gente… E nada impede que haja novos capítulos…
- Mas justo agora que somos ouvidos, reconhecidos e amados? As pessoas falam meu nome para se referir a seus egos! Elas entenderam que não sou vilão! E se você não ganhar prêmio algum e eu perder todos os meus confetes em troca de nada?
Franklin… aprendi a admirar você, sabia? É bonita a relação que construímos quando finalmente me libertei da prisão do medo. Já entendi que você precisa de reconhecimento. Pode ficar tranquilo, saberei onde buscá-lo. Você vai ficar bem…
- E… e… e eu?
Oi, criança. Posso te abraçar? Eu te vejo aí há bastante tempo. Noto sua articulação no silêncio. Percebo que você é quem me move a dar as mãos a quem está perto… Pedir ajuda. Fazer as pazes com minha limitação. Construir coletivamente. Abandonar o protagonismo em nome do que somos, todos juntos. Vem conosco? Você é a essência que não podemos abandonar jamais.
- Olha, não sei se já é minha vez de falar, mas acho ótimo esse ponto final aí que você mencionou. Esta desgraça de newsletter só dá trabalho - e nem ganhar dinheiro suficiente pra isso você ganha… Precisa colocar foco em coisas que realmente vão ajudar nessa transição! Inclusive, ó: essa ideia de prêmio é roubada. Grande coisa se isto virar livro. Você já não aprendeu que o povo não lê? Vai viver do quê, mulher? Chega de brincar, vai. Bora trabalhar de verdade.
Uff, Mara. Você pega pesado. Entendo de onde isso vem. E sinto tanto contigo… Seu medo é de não sobreviver. Passar fome. Não dar conta da própria subsistência - que dirá a de seus filhos. Você foi formada para fazer o que se espera e obter resultados previsíveis. Posso pedir que confie em mim? Se você não conseguir desabotoar a primeira casa da gola de pérolas impecáveis que vestiu a vida toda, tente ao menos arregaçar as mangas compridas e respirar comigo. Colocar os dois pés no chão. Sentir que estamos no presente - ele não tem esse nome por acaso…
- Isso! Estamos no presente. Mas também não começamos ontem... Já são nove meses de digestão semanal, alma querida. Você se lembra da complexidade que é gestar algo vivo? Por que diminui essa experiência como se tivesse sido rasa ou insuficiente, minha flor?
Ah, Marias. Precisava ouvir vocês. Obrigada por me maternarem com palavras. Isso me aterra. É como andar descalça sob a relva, neutralizando todos os meus elétrons.
Aliás, obrigada a todas as minhas personas por virem à essa reunião emergencial… Digerir com vocês a ideia de transformar a Alma Trangressora em livro me fez perceber, agora, neste minuto, que um ciclo acaba de se fechar.
Esta deveria ser apenas mais uma edição semanal da Alma Transgressora. Mas será a última desta temporada.
Haverá outras? Vamos ver.
Depois de vinte anos atuando como executiva de empresas, na primeira vez que cogitei mergulhar em uma transição de carreira ainda bastante nebulosa, senti como se perdesse o chão. Parecia que me faltava o ar - e não apenas o juízo.
(What? Como assim, honey? Por que mudar? Agora que estamos ganhando dinheiro? Deixa de frescura! Quer o quê? Abrir uma loja de artesanato na praia? De novo essa ideia ridícula? Nem começa!). Soraya, a impostora que já vivia por aqui, enfiou as garras sem piedade me espremendo o coração. Tanto que fiquei na dúvida: essa dor já estava aí dentro ou era produto do medo que sentia de reconhecer minhas verdades mais íntimas?
Sejamos claros: é preciso coragem para assumir nossa infelicidade diante da insuficiência.
Soraya trava porque tem medo do julgamento alheio. “Ah, mas o que os outros vão pensar?” - é sua grande preocupação. Acontece que os tais outros não sabem o que nos faz brilhar os olhos e esquentar o facho. Tampouco pagam nossos boletos.
Por que temos dificuldade em aceitar que alguns ciclos precisam se fechar?
Parece que não nos damos conta de que no instante exato em que algo termina, um novo começo necessariamente surge, seja essa a nossa vontade ou não.
Sim, é inevitável: o fim dá espaço para o novo.
Novos sentires, novos saberes, novos viveres.
E isso não significa que tenhamos de abrir mão de princípios, muito menos de bagagens. Pelo contrário: o reconhecimento da finitude nos pede que recolhamos nossas cinzas - porque muitas vezes elas são tudo o que nos resta - e as guardemos no receptáculo precioso da alma, onde só cabe a essência de quem somos.
Lá fora, o que nos pedem são modelos exemplares. Prodígios profissionais. Famílias-Doriana. Ideais devidamente colonizados. Estéticas patriarcais. Felicidades plásticas. Cases de sucesso.
Acontece que fim não é sinônimo de fracasso.
Para mim, fracassar na vida é se deixar endurecer pela rigidez externa a ponto de se tornar inflexível para ser quem se é.
E onde entra o que queremos?
Almas são transgressoras por natureza. Darão um jeito de explicitar que não, não está tudo bem seguir scripts padronizados.
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Em todos nós há algum tipo de dor crônica, um incômodo permanente, um sinal amarelo, algo que grita “perigo!”.
Nossa saúde mental caminha de forma diretamente proporcional à liberdade que damos à alma de ser quem ela precisa ser.
Puxa, mas… trocar o certo pelo duvidoso?
E desde quando o que fazemos há muito tempo é o certo? Aliás, quem disse que há apenas um jeito certo?
Ah, mas mudar dá trabalho… provoca dores… gera revertérios…
E deixar as coisas como estão está causando o quê… em você?
Calma. Vai com alma.
O fim é apenas mais um começo.
Quando é a hora do ponto final?
Eu sei, dá medo.
Nossos receios muitas vezes estão ancorados em dores antigas. Feridas purulentas mal cicatrizadas que sequer temos coragem de tocar.
Acontece que algumas doenças não se curam sozinhas. Precisam de tratamento apropriado. Apoio profissional. Operações cirúrgicas. Troca de curativos, com ou sem sedação.
Hoje, daqui da idade adulta, consigo me responsabilizar pelos prazeres e pelas dores de ser quem sou.
Assumir o risco, inclusive, de estar equivocada.
Meu desejo é que você não espere por um burnout (ou alguma outra dor invisível) para dar ouvidos ao chamado da sua alma - seja ele qual for.
Encerrar ciclos não significa dar descarga no passado. Pelo contrário! É ter coragem de honrar quem viemos nos tornando ao longo do caminho.
Os finais não precisam ser absolutos. Qualquer coisa que surja a partir deles vem repleta de possibilidades. Dentre elas, recomeços, curvas, espirais.
Como sou dessas pragmáticas incorrigíveis, ainda que não especialista em nada além de minha própria jornada, arrisco aqui encerrar este nosso ciclo com uma sugestão - até porque me irritaria bastante um final aberto ou, pior, ambíguo.
Um jeito simples de saber o momento exato de parar é o seguinte: você sente, neste minuto, que está sendo você mesmo? Vive 100% alinhado com o que de mais belo existe em sua alma?
Caso a resposta seja qualquer coisa diferente de “sim”, procure ajuda.
Antes que isso lhe machuque a ponto de ser tarde demais.
É cansativo viver em guerra com o ego. Mas, cuidado: silenciar a alma pode ser mortal.
Conte com você.
Feedbacks
Você sabe onde me encontrar: cintia. escrita @gmail.com.
A última pergunta que te deixo, porém, é: você sabe onde se encontrar?
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Calma, vai continuar tudo aqui:
E só pra não dizer que não falei das flores…
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Uma boa semana, alma querida.
Para você que me lê também.