Alô, quem fala? E quem cala?
(Foto de 3Motional Studio)

Alô, quem fala? E quem cala?

Você está com tempo? Porque esta news será longa.

Estou confusa - e elaborar confusão é coisa que pede alma. 

Alma, por sua vez, é coisa que pede inteireza.

Então, calma.

Por onde começar?

Oras, vamos pela superfície: na próxima quinta-feira, dia 21/03, serei uma das escritoras homenageadas numa Sessão Solene em comemoração ao mês da Mulher, na Câmara Municipal de São Caetano do Sul.

Escrever isso me deixa um pouco descrente. Será mesmo real?

(Hunf. Tanta gente pra homenagear… mais experiente, mais relevante, mais representativa… Por que você?)

Talvez algumas pessoas que me leem ainda não conheçam a sabotadora autodepreciativa que vive em mim. Peço sua licença um minutinho, preciso falar com ela.

(Oi, Soraya. Já acordou? Sinto com você o pessimismo que a apavora. Você tem tanto medo do fracasso que torce por ele - só para provar que estava certa. Mas será que as certezas são mais importantes que o reconhecimento da nossa dignidade? Não vou fingir que você não existe. Ou que não me machuca. Só que hoje é dia de darmos espaço também a outras vozes, tá bem? Todas são valorosas. Senta aqui do meu lado. Quer um copo d'água?).

Se eu sei o que estou fazendo? Claro que não. Almas não precisam saber muita coisa.

Aliás, todo saber será inútil enquanto não formos capazes de sentir.

Quando passei a eternizar palavras transbordando-as de mim, vi-me incluída num tipo de Confraria Universal das Indomáveis (salve, Glennon), aberta a todas as vozes que decidiram não se calar. E a todas as almas que se recusam a racionalizar o sentir.

Mas, onde eu estava?

Ah, sim, na Sessão Solene!

Na próxima quinta, também receberão homenagem sete escritoras que acabam de lançar a coletânea “Elas e outras elas: Crônicas do olhar feminino”. Elas, professoras. Eu, mãe. Pontos de vista diferentes. Objetivos comuns. Não é bonito?

Viver numa cidade (e num século) onde se celebram (e não se perseguem) mulheres é alegria, sorte e mérito de todas nós.

No exercício de reconhecer a grandeza dessa liberdade, aceitei, honrada, o convite para participar da celebração na Câmara Municipal. Estou radiante, ansiosa e pronta para lançar ali também o meu livro “De fora para dentro”!

Será um evento aberto ao público e se você estiver em São Caetano do Sul às 19h, será um prazer te ver na Av. Goiás, 600 (Plenário dos Autonomistas).

...

Ué.

Você ouviu alguma coisa?

Mais alguém, em mim, parece incomodada.

Solenidades me causam algum tipo de desconforto cuja origem desconheço.

Talvez a raiz esteja nesse desequilíbrio de gênero ocupando posições que “mereçam” pronomes de tratamento superlativos: “Ilustríssimo Senhor Fulano”. “Excelentíssimo Senhor Ciclano”. “Digníssimo Senhor Beltrano”. “Desinteressantíssima senhora qualquer que seja”. 

Estamos lutando para desconstruir essa herança cultural. E conseguindo!

Uma das metas de uma multinacional onde participarei de uma roda de conversa amanhã (oi, Franklin, vejo seu aceno eufórico, também estou feliz) é ter 50% de mulheres em posições de liderança até 2025. Provocar esse grupo para que cuide de sua saúde mental e exercite o autoamor me traz enorme senso de realização. “As novas narrativas de mundo estão sendo escritas”, como poeticamente costuma dizer Cris Lisboa, escritora e fundadora da Go,Writers.

Então, não. Não me parece ser ainda, esse, o motivo real da angústia.

Preciso ir mais fundo.

A dor é aguda.

Tento entender o que sinto. E, na tentativa de racionalizar, nem entendo, nem sinto. 

Preciso mergulhar em mim.

Apenas sentir. Sem pensar.

Suspiro.

Não é vergonha. 

Não é medo. 

Parece raiva… Não, também não.

- Tristeza… eza… eza… eza…

Quem falou? 

Você está chorando?

Um eco profundo e doloroso.

Não há voz audível no breu da agonia.

O ar ali é rarefeito.

Por que você está tão triste? Quem é você?

Apenas sentir. Sem pensar. Apenas sentir. Sem pensar. Apenas sentir. Sem pensar.

São quase sete da noite e por algum motivo os passarinhos estão cantando. Nenhum helicóptero é capaz de abafar os gorjeios que se misturam aos sons do crepúsculo.

Franklin, meu ego carente que já tentou aparecer acima quando falei da roda de conversa na multinacional, interrompe-me o raciocínio com sintomas de narcisite aguda:

- Como assim, gente? A pessoa tem a oportunidade incrível de ocupar um lugar de destaque. Receber uma honra ao mérito. Uma placa de reconhecimento. Um microfone que amplifica sua voz. Holofotes e confetes! E ESTÁ TRISTE?!?

A voz de Franklin é abafada pelo eco ensurdecedor que invade minha paz: 

“Tristeza… eza… eza… eza…”

Fecho os olhos para me sentir melhor.

Alguém, aqui dentro, carrega uma constelação de melancolia.

Seu timbre é grave.

Está adornada com tranças de realeza.

Em suas vísceras, o conhecimento do mundo.

Nos punhos, cicatrizes.

Detesta, abomina, odeia e amaldiçoa, com todas as suas entranhas, qualquer relação que não lhe pareça rizomática.

Quem é esta rainha, em mim, que não lida bem com solenidades?

Peço permissão para chegar mais perto.

Observo, encantada, o colorido das tramas simbólicas que a envolvem.

Deixo-me enternecer por toda a linguagem não-verbal de sua existência, em mim.

Talvez ela não queira me dizer seu nome.

- Pode me chamar de Maria. Meu nome não cabe no seu idioma. Sou o coletivo de África. A riqueza dos Povos Originários. Você até me reconhece como Ancestralidade, mas nunca se deu o trabalho de me conhecer como Mãe-Terra. Sou a própria Potência antes de ser “elevada” a qualquer quadrado. Quem vive dentro de quadrados talvez desconheça a raiz do problema.

Tudo que nos toca a alma emudece a razão e desperta o sentir.

Por que Maria? Maria, por quê?

Maria representa todas as ancestrais invisíveis à sociedade branca, colonizadora e racista em que vivemos. Maria é o nome delas, em mim. As mulheres fortes sobre as quais vez ou outra fazemos música. Depois encarceramos. Marias vivem em prisões femininas, vítimas de um sistema que as torna rés da própria sorte. Marias são as que normalizamos que limpem nossas casas, amamentem nossos filhos, sirvam nossas mesas e se contentem com as migalhas.

Até quando? E qual o meu papel nessa necessária reparação histórica?

Eu, mulher branca, cisgênero e cheia de privilégios e inconsistências, tenho em mim uma dor que não se compara à das Marias. Porque não estamos aqui para fazer comparação alguma, mesmo. E sim para reconhecer que a Maria que me habita sofre, silenciada. Porque tenho vivido omissa em meu papel ancestral de opressora.

(Olha, esse tema é sensível, você vai falar alguma groselha, talvez seja melhor mudar o rumo da prosa. Se você precisa tanto escrever, escolha um assunto menos polêmico e… Calma, Mara. Sei que está aterrorizada com o que vão achar dessa conversa. Tem medo de que a gente erre o tom, seja mal interpretada… Teme a condenação de nossa própria incoerência. Acolho todos esses receios legítimos. Mas, veja: se não botamos pra fora o que sentimos, como lidar com tanta complexidade? Verbalizar nos ajuda a elaborar, ampliar nossa visão com pontos de vista diversos, corrigir nossos erros, ajustar o discurso e rever a prática! Silenciar, como costumamos fazer, é apenas um ótimo jeito de morrer por dentro. Quer um copo d'água?).

Perdão, nem deu tempo de contar a quem chegou aqui há pouco que Mara é aquela, em mim, que se preocupa com as regras. Defensora da moral e do que é socialmente visto como correto, vive em estado de alerta. É difícil para ela enxergar o arco-íris. Suas retinas carregam daltonismos estruturais. Precisamos refazer suas lentes de mundo. Usar modelos inclusivos, com proteção contra os raios ultraviolentos tão presentes, ainda, por aí. Chegaremos lá.

Uma dor íntima está sob as camadas superficiais de minha resistência às solenidades.

Todas as vozes conhecidas em mim se mobilizam quando sentem a agonia de Maria. O sentimento é de indignação.

Nunca passei necessidades porque meus pais me proveram tudo - e mais. Em seus contextos, enfrentaram perrengues. Privações severas. Materiais e emocionais. Talvez por isso, suas ações parentais foram todas orientadas a nos garantir as boas condições de vida que não tiveram.

Essa falta, que é deles, também dói em mim. 

Só que em noites frias de chuva forte, não tenho dificuldade para dormir com meu edredom confortável. Até penso nas pessoas que perderão tudo naquela mesma hora em que estarei abraçada aos meus filhos em nosso ninho. Ensino as crianças a orarem por elas. Mas não faço nada a respeito. Afinal, correria, né? Passo ao lado de Marias vendendo balas de dois reais com crianças esquálidas penduradas em seus peitos no calçadão da cidade com o melhor IDH do Brasil, onde orgulhosamente resido, e sigo impassível porque não carrego dinheiro trocado. Com medo de ser assaltada no semáforo, fecho o vidro quando o menino se aproxima para oferecer chicletes. É três por dez, tia, ajuda nóis. Já no estacionamento do shopping, páro o carro sem me dar conta de que vinte e cinco reais são debitados do aplicativo de pagamento eletrônico que, para a minha conveniência, pago juntamente com a assinatura de sei lá quantos outros reais no final do mês. Passo no mercado e compro mais um Kinder Ovo de dezenove reais e noventa e nove centavos que as crianças amam - não por causa do chocolate e sim do brinquedo de plástico que esquecerão no sofá oito minutos depois de matarem a curiosidade - não a fome, pois nunca a sentiram - com aquela porcaria. Então perguntam se tem chiclete ou bala. "Peçam para a vovó Zê". Por “algum motivo”, ela sempre tem balas na bolsa, junto com dinheiro trocado.

A indignação me traz culpa porque me esfrega na cara que não faço nada para mudar a realidade que tanto me corrói. Só que se em mim dói a culpa, imagina a realidade da escassez em quem a vive.

Nossas almas pertencem a um ecossistema coletivo e não-hierárquico. A ancestralidade dentro de todos nós clama por reparações imediatas.

Isso significa que minha voz privilegiada precisa reverberar o papel do privilégio na desconstrução do racismo (e do machismo, e da homofobia, e de tantos outros males estruturais). Enquanto as vozes silenciadas precisam de palco, de megafone, de cotas, de acesso (à educação, à saúde, ao emprego, ao lazer e tanto mais!), de assistência, de res-pei-to.

A reparação começa na minha casa. E me segue por onde mais minha voz seja ouvida. Ou, minha escrita, homenageada. Quem sabe outros privilegiados como talvez você, que me lê, tenham seu sono perturbado por esse barulho.

Precisamos fazer do privilégio um bem comum.

Quem está falando? E quem está calando?

Tente sentir, não pensar.

São quase sete da noite. Os passarinhos estão cantando. Meu convite é para que o seu gorjeio se some ao meu. E sejamos muitos os que cantam no crepúsculo.

É cansativo viver em guerra com o ego. Mas, cuidado: silenciar a alma pode ser mortal.

Conte com você.


Um palco para chamar de vida

Já reparou como cerimônias são geralmente teatrais? Solenidades de posse, de formatura, religiosas, jurídicas, fúnebres, matrimoniais… Se botar uma trilha sonora do Tchaikovsky em todas elas, duvido você discernir uma da outra.

Tenho vontade de pegar o microfone e quebrar todas as regras. Tirar todo mundo daquele transe cenográfico. Chamar a platéia para dançar. Abraçar gente. Fazer uma roda. Ouvir histórias de vida. Perguntar às crianças como podemos ser humanos.

(Ok, talvez eu seja desconvidada para quinta-feira).

É que na suntuosidade falta pé no chão.

Vejamos a coreografia de uma cerimônia cristã tradicional de casamento, por exemplo. Entram primeiro as expectativas e especulações dos convidados. Até aí, realismo puro. Então, vem o noivo com a mãe (de braços dados pela primeira e última vez desde o final da infância). Depois, desfilam trilhões de padrinhos (que servem para lembrar aos noivos, ao longo dos anos, que nada é para sempre). Eventualmente, surgem umas trombetas (normal, coisa costumeira). Aparecem crianças noivinhas (por quê?!?). A dama de honra (honra de quem?) traz as alianças. Até que, enfim, resplandece a noiva glamourosa ao lado do pai inchado de orgulho (ou de cerveja, ou de ausência).

Credo, que descrição mais desalmada! - você pode dizer.

Sei lá.

Sei lá.

Você não deveria escutar a opinião de uma pessoa que escolhe maçãs verdes mergulhadas em aquários redondos para decorar a igreja em seu casamento. Que aconteceu no século passado. E teve trombetas.

De lá para cá, amadurecemos. Nós e as maçãs.

Relações verdadeiras, para mim, são as que não precisam de encenação.

Adivinha o que vem aqui?

Um convite para estar comigo na Sessão Solene da próxima quinta! :P 


Boa semana pra você, alma querida.

Para você que me lê também.

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