Ética e teletrabalho: combinação possível e necessária
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Ética e teletrabalho: combinação possível e necessária

As primeiras formulações sobre o teletrabalho remontam à década de 70, com os escritos seminais de Jack Nilles, considerado o pai do teletrabalho. A ideia central que o físico americano propugnava era a substituição dos descolamentos no trajeto casa-trabalho-casa pelas tecnologias da informação e comunicação, que viabilizariam a realização do trabalho a partir de outros locais, como a residência ou um centro satélite, por exemplo.

Desde aquele momento quando a prática surgiu, até os dias atuais, o teletrabalho veio crescendo na realidade organizacional, pública e privada, com a ciência do Direito procurando acompanhar as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, visando prover segurança jurídica às instituições adotantes do novo modelo.

Um marco na disseminação do teletrabalho ocorreu no final de 2019, quando a situação de pandemia global deflagrada pelo vírus corona colocou o teletrabalho no centro das atenções empresariais, obrigando as lideranças a uma rápida decisão sobre a adoção do trabalho remoto. Era o teletrabalho emergencial ou compulsório, conforme foi denominado.

No contexto da pandemia, o teletrabalho foi testado à exaustão em todas as suas variáveis, quebrando barreiras, mudando percepções, em todos os sentidos, e viabilizando a preservação da saúde das pessoas e a manutenção das atividades das organizações.

Um marco na disseminação do teletrabalho ocorreu no final de 2019, quando a situação de pandemia global deflagrada pelo vírus corona colocou o teletrabalho no centro das atenções empresariais, obrigando as lideranças a uma rápida decisão sobre a adoção do trabalho remoto.

Essa experiência em larga escala gerou uma percepção geral de que as organizações terão que se abrir a novos arranjos de flexibilidade, incluindo de uma vez por todas o teletrabalho no seu cardápio de práticas de flexibilização.

Diante desse contexto, e partindo-se da premissa de que o teletrabalho veio para ficar, principalmente depois da sua ampla aplicação desde o início da pandemia, a pergunta a ser feita é a seguinte: como assimilar o teletrabalho de forma mais ética nas nossas organizações?

Veja que a palavra “mais” na frase acima mostra que estamos assumindo que há zonas de risco de desvios éticos, e que em algumas situações o risco se transformou de fato em condutas inadequadas, antiéticas.

Como as organizações podem atuar na assimilação de um teletrabalho mais ético?

Proponho duas linhas básicas de atuação: promoção de boas práticas e mitigação de disfunções.

Como forma de ilustrar a promoção de boas práticas, destaco cinco delas que podem contribuir para um ambiente de teletrabalho mais ético:

1) Zelo com o processo de comunicação

Aqui a dimensão ética é a da transparência, que consiste em comunicar políticas, normas e regras gerais, para que todos tenham conhecimento de como a organização se mobiliza para a prática do teletrabalho.

No contexto da pandemia, essa necessidade se faz ainda maior, dadas as dificuldades próprias do momento, e em face da ansiedade geral em torno da informação sobre:

(a) até quando vai o teletrabalho emergencial;

(b) qual será o momento em que as pessoas deverão voltar ao trabalho presencial; e

(c) qual será a extensão e o modelo de teletrabalho depois do retorno.

É claro que a organização pode não ter todas essas respostas, mas a comunicação daquilo já se tem, ou mesmo o posicionamento claro de que ainda não há decisões tomadas, demonstra um compromisso ético da organização, de transparência das suas ações e intenções, dimensão sempre exigida, e cuja necessidade se acentua em momentos de crise.

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As dúvidas que o momento atual gera demandam ainda maior zelo com o processo de comunicação. Uma atitude ética pressupõe cuidado com o tema, especialmente quando as incertezas estão presentes.

Esse assunto é totalmente aderente à atuação das comissões de ética, sendo evidência disso o fato de a maior parte dos códigos de ética das organizações apontar a necessidade de zelo pela comunicação, bem como de transparência no processo de sua condução.

As comissões podem alertar para que, especialmente durante o período de pandemia, os grupos mais vulneráveis recebam especial atenção no processo de comunicação (jovens aprendizes, estagiários e terceirizados, por exemplo), dado que esses grupos costumam estar abrigados no código de ética das organizações.

2) Capacitação de lideranças

Essa prática tem como dimensão ética o desenvolvimento, que consiste em capacitar líderes para uma gerência remota compatível com as melhores práticas, desafio que apresenta uma certa carga de urgência, dado que com o teletrabalho emergencial, muitos líderes tiveram que exercer a liderança remota sem ter qualquer experiência prévia nesse sentido.

Registre-se que o fato de que já se passou um tempo considerável de exercício da liderança remota – desde o início da pandemia – não é garantia de que as lacunas de competências no gerenciamento remoto tenham sido supridas. É claro que algum nível de experiência foi conquistado, mas em muitos casos o que tem se verificado é uma simples migração das práticas do escritório para o ambiente remoto.

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Espera-se das lideranças que saibam orientar suas equipes. Para isso, é necessário que elas próprias também recebam orientação. Nessa linha, o desenvolvimento de lideranças para um gerenciamento remoto de qualidade é uma necessidade, sendo também uma conduta ética por parte da organização.

A presença da dimensão desenvolvimento nos códigos de ética é muito clara, sendo colocada como uma obrigação das organizações, no sentido de prover os meios, e um dever dos profissionais, na linha da promoção do autodesenvolvimento.

Visando ao estabelecimento desta boa prática, as comissões podem alertar para o fato de que além da capacitação para o gerenciamento remoto, os gestores em si precisam de ajuda, pois estão com dúvidas e sofrendo angústias nesse momento, ao mesmo tempo em que continuam sendo cobrados por resultados.

3) Clareza nas políticas, normas e regras gerais

A dimensão ética presente nesta boa prática é a conformidade, que se evidencia na adoção de políticas, normas e regras gerais claras e adequadas ao contexto de atuação de cada instituição.

No contexto da pandemia, a clareza dos instrumentos direcionadores da prática deve ser objeto de ainda maior cuidado, dado o aspecto de exceção que o momento comporta.

Essa dimensão figura de forma inequívoca no rol de competências e obrigações das comissões de ética, já que o trabalho com políticas, normas e regras é seara na qual as comissões estão imersas, portanto a mobilização nesse contexto é bastante comum.

As comissões podem alertar para o fato de que o baixo nível de formalização, ou mesmo a ausência de abordagem sobre pontos importantes nos instrumentos direcionadores do teletrabalho, contribui para aumentar o risco da prática. As pautas de reivindicações dos sindicatos sobre o tema do trabalho remoto no processo de negociação dos acordos coletivos de trabalho podem apresentar elementos úteis nesse processo.

As comissões podem alertar para o fato de que o baixo nível de formalização, ou mesmo a ausência de abordagem sobre pontos importantes nos instrumentos direcionadores do teletrabalho, contribui para aumentar o risco da prática.

4) Cuidados com o teletrabalhador

A dignidade humana é a dimensão ética presente nesta boa prática, devendo a instituição zelar pelas condições gerais de trabalho remoto.

Importante destacar que a pandemia trouxe desafios às organizações nesse quesito, com a necessidade de se colocar grandes contingentes de pessoas em teletrabalho, sem ter havido o planejamento prévio em termos de infraestrutura e de ergonomia, por exemplo.

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A criação de um ambiente doméstico adequado para uma experiência ótima de teletrabalho deve ser sempre alvo das atenções.

É uma conduta ética da organização orientar amplamente às equipes sobre as necessidades ergonômicas para uma boa prática de trabalho remoto.

As questões relativas ao bem-estar estão presentes nos códigos de ética das organizações, daí a legitimidade para a atuação das comissões de ética nessa seara.

As comissões podem alertar para a necessidade de especial atenção para com os hipossuficientes, que podem apresentar demandas específicas.

5) Acompanhamento do Teletrabalho

A dimensão implicada aqui é a da sustentabilidade da prática, no sentido da sua permanência de forma indeterminada na instituição, ou seja, a consolidação do teletrabalho de forma consistente e segura. Para isso, a instituição deve deixar claro como será feito o acompanhamento das entregas no teletrabalho.

Um ponto que deve estar bem claro para as lideranças é que o contexto da pandemia trouxe impactos para a produtividade das pessoas, devido a diversos fatores psicológicos, sociais e de organização interna das famílias, que não podem ser ignorados.

Essa questão também dá margem para atuação das comissões, já que a ética, ao contrário do que muitos imaginam, caminha de mãos dadas com o esforço por resultados, na linha de que estes só se sustentam se alcançados com base numa atuação ética e íntegra.

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Uma possibilidade de alerta é a indicação pelas comissões da necessidade de estabelecimento de uma política de desconexão, que apresente elementos claros para a limitação do acesso extemporâneo ao teletrabalhador.

No Quadro 1 ilustrações com mais exemplos de como as comissões de ética podem mobilizar as suas competências para colaborar na promoção da ética e da integridade no contexto do teletrabalho.

Quadro 1 – Exemplos de possibilidades de atuação das comissões

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E para ilustrar os riscos que devem ser mitigados, apresento também cinco disfunções que devem ser evitadas, no âmbito das quais destaco as práticas éticas ausentes.

1) Comunicações inapropriadas

Aqui as práticas éticas ausentes são a cortesia, o respeito e a atenção, na contramão do resultado de ampla pesquisa realizada recentemente no âmbito do Poder Executivo Federal, que identificou a gentileza dentre os valores no Serviço Público Federal.

Esse é um problema objeto de tratamento permanente pelas comissões setoriais no âmbito de sua atuação, tanto na Função Conciliadora, por meio da condução de processos de mediação, quanto na Função Repressiva, no âmbito de processos de apuração ética.

Em alguns casos, a pandemia parece ter agravado esse problema, devido a diversos fatores, dentre eles o próprio distanciamento dos colegas de trabalho, com quem não se tem que conviver no mesmo espaço após uma discussão.

2) Desequilíbrio entre trabalho e vida pessoal

Aqui novamente estão ausentes as práticas éticas do respeito e da atenção.

Com o trabalho remoto, o risco de que o trabalho invada a vida pessoal é real. No contexto da pandemia, em muitos casos não houve a capacitação prévia necessária para um equilíbrio entre vida profissional e pessoal, o que potencializou os riscos de desequilíbrio.

Esse risco existe tanto como fruto da atuação da organização, ao acessar o teletrabalhador de forma descuidada, não respeitando limites que visem à sua preservação, como por parte do próprio trabalhador remoto, que não se disciplina para uma prática equilibrada na sua rotina de trabalho diária.

3) Hiperconexão

As práticas éticas ausentes nesse caso são o cuidado e o autocuidado.

No teletrabalho, a condição de distanciamento da empresa pode favorecer a hiperconexão, na medida em que surja a ansiedade, o desejo de não se “desligar” da organização.

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É uma conduta ética zelar para que a organização não seja um meio fértil para a hiperconexão, incentivando a desconexão e orientando sobre como pode se dar a sua internalização na rotina do dia a dia de trabalho.

Há indícios de que na pandemia a frequência dos contatos aumentou, não havendo respeito aos limites de horário, o que tem contribuído para o desgaste dos empregados e, em alguns casos, para a exaustão profissional (Síndrome de Burnout).

4) Condições de trabalho inadequadas

Nesse caso também estão ausentes as práticas éticas do cuidado e do autocuidado.

Muitas organizações não têm dado a atenção devida às condições de teletrabalho, colhendo os frutos negativos da negligência.

No contexto do teletrabalho emergencial, a necessidade de se criar um posto de trabalho em casa foi imperativa, não sendo em grande parte dos casos precedida de uma fase preparatória, na qual se buscasse promover condições compatíveis com as exigências já consagradas nas normas técnicas que regulamentam o assunto.

5) Métodos de controle excessivos

Para essa disfunção, as práticas éticas ausentes são o respeito e a promoção do bem-estar.

Com a preocupação de não perder o controle sobre os teletrabalhadores, organizações têm empregado métodos excessivos.

Como não houve tempo de preparar as lideranças para o gerenciamento remoto imposto pela pandemia, os medos de perda de controle não foram trabalhados previamente, o que está levando em alguns casos à intensificação do controle.

Em todas essas situações de disfunção elencadas, as comissões de ética setoriais podem atuar nas funções Preventiva e Educativa, lançando mão de diversos recursos, tais como:

  • elaboração e divulgação de cartilhas;
  • elaboração e divulgação de vídeos;
  • elaboração e divulgação de matérias; e
  • realização de palestras com públicos diversos.

Todas essas formas podem ser enriquecidas com a introdução de casos práticos, vivenciados pelas próprias comissões ou com base em experiências adquiridas em grupos de benchmarking.

Após o lançamento dessas breves reflexões, há duas conclusões que ficam patentes em relação ao binômio Ética e Teletrabalho:

1ª) é um amplo campo de atuação para as comissões de ética; e

2ª) é um fértil campo de trocas de experiências para as organizações, fortalecendo a atuação das comissões de ética e das áreas de integridade.

 

Créditos:

Interrogação: Imagem de Arek Socha por Pixabay

Bússola: Imagem de Mario Aranda por Pixabay

Trabalhadora se alongando: Foto de Karolina Grabowska no Pexels

Celular: Imagem de Gerd Altmann por Pixabay


Falber Reis Freitas é mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – FGV. Analista sênior na Financiadora de Estudos e Projetos – Finep e Presidente da Comissão de Ética da Instituição. No período de agosto de 2017 a julho de 2020, coordenou equipe multidisciplinar na elaboração de análise de viabilidade, na apresentação de proposta e na implantação de projeto piloto de teletrabalho na Finep.

Artigo originalmente publicado no Boletim Informativo nº 35-2021 do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, coordenado pela Comissão de Ética Pública – CEP. Este artigo reflete exclusivamente a opinião do autor, não representando, necessariamente, opinião, estratégia e posicionamento da Finep ou da Secretaria Executiva da Comissão de Ética Pública sobre a matéria. Para esta publicação no LinkedIn, foram realizadas pequenas adaptações em relação ao artigo original.

Artigo nota 10. O teletrabalho do jeito que foi implantado, emergencialmente, não foi do melhor jeito. Junto com uma carga de incertezas (ameaça dos vírus), óbitos crescentes e de repente as pessoas tiveram que se reinventar, em plena crise de tudo... a ética é um norteador importante pq pressupõe relação de confiança mútua (dirigente vs subordinado). Abcs

Elisangela Azevedo

Desenvolvimento pessoal e de liderança | Relacionamento interpessoal | Carreira | Palestrante | Docente | Especialista em Neurociência e Psicologia Aplicada | Graduanda em Psicologia

3 a

Ótimos pontos, Falber Reis Freitas, em especial o relativo à comunicação e ao desenvolvimento da liderança. A propósito, ontem vi um anúncio em outra rede social cuja chamada era "monitore seus empregados" para a venda de um sistema para o trabalho remoto. É certo que essa oferta de software está associada a demandas do velho "comando e controle".

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