19 anos: campeão paralímpico, calouro da USP e PCD

Hoje, meu filho Gabriel completa 19 anos. A festa já seria enorme em qualquer situação, mas como tomamos susto quando ele ainda era bebê, com médicos apostando que não viveria mais que 2 ou 3 anos, a celebração anual é comemorada com o triplo de alegria.

Meu filhote nasceu com Atrofia Muscular Espinhal, doença rara degenerativa carinhosamente abreviada pelas letras AME. Não contarei detalhes da corajosa jornada. Como sugerem muitos pensadores, vou focar no momento presente.

Gilberto Gil canta verso do álbum Refavela de 1977 que vivo repetindo:

“O melhor lugar do mundo é aqui e agora”.         

Na canção Aqui e Agora, Gil diz que o melhor lugar do mundo não é um espaço físico, mas sim um estado de espírito, um momento temporal que está sempre em movimento e renovação. Assim, pego essa onda de falar sobre o tempo presente - hic et nunc - que tem sido verdadeiro “presente” da vida.

Já era previsto que 2024 seria marcante. Diploma da escola Waldorf nas mãos, etapa de vestibular realizada com sucess, ingresso na faculdade. Ao escolher estudar na USP, o jeito foi descolar novo teto em SP para passar a semana letiva. Encontramos lugar confortável e acessível, bem localizado, com vista para uma mata verdejante. Só o barulho paulistano é desafiador, mas aí também é querer demais né?

É incrível deixar o guri diariamente com sua cadeira motorizada para acelerar nos corredores da célebre FFLCH, pronto para ser batizado nesse novo mundo universitário, conhecer novas tribos, debater ideias, abrir mente, romper a velha rotina e estabelecer novos olhares e fazeres.

No primeiro mês, o rapaz já leu a Ilíada de Homero (meu Deus, nunca nem folheei o clássico catatau) e a Poesia de Aristóteles (esse, um dos sábios que mais reverencio). De quebra, ao levá-lo, fui matando saudade dos tempos em que eu mesmo perambulava pela cidade universitária há 35 anos.

É maravilhoso estar próximo do filho, com tempo para conversar sobre como foi a aula, escutar suas opiniões sobre o mundo, sentir seu amadurecimento, vê-lo formando suas próprias perspectivas e paixões.

Fiz escolha de estar perto dele há anos e mais intensamente, após me divorciar. Ainda na rotina corporativa, consegui adaptar atividades para estar presente na vida do meu filho, buscá-lo na escola, levá-lo para treinar, apesar do ritmo intenso. Sim, também participei de reuniões regionais com câmera fechada, fazendo almoço; fiz meetings no carro a caminho da escola; realizei acrobacias de arrepiar. Tudo valeu a pena! Eu estava lá com o guri!

Desde 2023, ao decidir me tornar exclusivamente empreendedor-palestrante-professor-consultor, sei que uma das boas razões para tal opção é a flexibilidade para seguir participando da jornada do meu filho.

Ao desejar morar em São Paulo, Gabriel pensou na história de dois coelhos com uma cajadada (ainda pode usar essa expressão?). Ele começou a praticar bocha há uns dois anos e meio e demonstrou talento promissor. A gente já treinava no comitê paralímpico uma vez por semana, mas era outro desses sacrifícios malucos. 2 horas no trânsito para chegar, 2 horas de estrada para voltar e só 1 hora e meia de treino na quadra. Era o que tinha para ontem…

Morando em São Paulo para estudar, treinar se tornaria mais fácil e frequente. E não tem segredo. Se queremos performance, a solução é praticar, se dedicar, girar quilometragem e ganhar experiência. Logo ele que detestava a cidade gigante, cheia de trânsito hostil, sempre relacionada com internações dolorosas em hospital para tratamentos de saúde.

E não é que Gabriel, no alto dos seus 18 anos, ressignificou São Paulo? A cidade do sofrimento virou o lugar do conhecimento, dos novos amigos, da evolução no esporte, do investimento em autonomia e independência, um celeiro de novos sonhos.

E veio o primeiro torneio esportivo do ano, o campeonato brasileiro de bocha paralímpica sub-21, organizado anualmente em Curitiba pela ANDE para revelar jovens talentos desse esporte fascinante e muito inclusivo. Pela primeira vez, Gabs representaria o time da APPD, uma das melhores equipes nacionais.

Em abril passado, conquistamos importante medalha de bronze e pudemos dizer que Gabriel esteve entre os 3 melhores jovens talentos do Brasil em sua categoria. Com todas as mudanças, fim da escola, intensidade dos treinamentos, amadurecimento emocional, tudo colocado à prova em muitas situações como as apresentações de teatro e TCC escolar, maratona da Fuvest e vários torneios com grandes atletas experientes, Gabriel foi para o campeonato nacional com luz radiante e muita determinação.

Confiança elevada, humildade e sensibilidade admiráveis, equilíbrio mental, bom humor, técnica apurada e tremenda vontade de conquistar a medalha de ouro. Assim foi, jogo após jogo, numa rotina exaustiva e dolorosa, com muito foco, lidando com imprevistos desafiadores, carregando sua fé para as quadras. Fez campanha impecável, com 5 vitórias consistentes, levando apenas 3 únicos pontos na primeira partida e passando invicto, sem perder nenhuma parcial, com placares elásticos, mas sempre com enorme respeito pelos adversários.

Já contei que tenho uma alegria maiúscula na bocha porque, além da cumplicidade entre pai e filho fora das quadras, sou o assistente do atleta mais querido - minha função mais nobre é ser operador de rampa do Gabriel.

Na minha função, jogo de costas e não posso nem falar nem ver o jogo. Somos uma equipe afiada e afinada, no ritmo do Rock and Roll do ACDC. Na final, quando o título já estava garantido, meu filho arriscou jogada difícil e grudou sua bola no alvo à distância de 9 metros - algo semelhante a fazer um golaço de Pelé - para encerrar sua campanha e comemorar o campeonato inédito.

Enfim, vi um sorriso largo surgir no rosto do Gabriel junto com raro grito entusiasmado. Foi dos melhores momentos da vida!

Gabriel tinha várias bolas para jogar, mas não precisava de mais nenhum ponto, abrindo mão das bolas restantes. E fez outro lindo gesto. Mandou uma delas para fora da quadra como homenagem e agradecimento na direção do seu técnico destes primeiros dois anos, mestre que muito ensinou e o incentivou.

Esse é Gabriel, respeitoso, cuidadoso, dedicado, grato às pessoas e pela vida. Hoje, está como o melhor jovem talento de bocha paralímpica do Brasil de 2024 em sua categoria. E cheio de sonhos e planos para o futuro.         

Parabéns, Gabriel, por essa jornada incrível que tanto inspira, surpreende e me transforma. Parabéns por completar seus 19 anos com tanta garra, driblando seus muitos desafios com coração tranquilo. Que honra você ter me escolhido, na boa tradição Waldorf, como seu pai e escudeiro!

Como cantei quando nasceu, adaptei aqueles versos de Caetano, para seus 19 anos... "Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas, boas-vindas, Venha conhecer a nova vida. Você diz que ela é gostosa. Tem o sol e tem a lua, Tem o medo e tem a rosa. Você diz que ela é gostosa. Tem a noite e tem o dia, A poesia e tem a prosa. Você diz que ela é gostosa. Tem a morte e tem o amor, E tem o mote e tem a glosa. Você diz que ela é gostosa, A gente diz que ela é gostosa".

O melhor lugar do mundo é aqui e agora! Felicidades, meu filho! Parabéns!