Algumas verdades nada convenientes sobre a vida acadêmica
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Algumas verdades nada convenientes sobre a vida acadêmica

Quem acredita que a vida acadêmica é um mar de rosas, não viu o que é uma reunião de departamento. Foi uma frase parecida com essa que li esses dias e que me reativou a vontade – que já tinha há tempos – de escrever sobre as agruras cotidianas de nossa (nem tão) admirável vida acadêmica.

Muito já foi escrito no mesmo tom das palavras que virão a seguir nesse texto e muito ainda será, pois simplesmente repetimos ciclos e ciclos de desgastes, perda do precioso tempo e desorganizações. De todas as formas, entendo que a sistematização de parte do que vivemos seja bastante necessária, num primeiro momento para nos ouvirmos, mas também para que os de fora desse universo encantado também nos ouçam e possam conhecer um pouco do que vivemos. E sofremos.

 Quando isso tudo começa, na graduação? Não, bem antes disso. Isso tudo começa em uma sociedade desigual como a brasileira, na qual menos de um terço chega ao final desse nível de formação. Há um quantitativo enorme de brasileiras e brasileiros que sequer conhecem a possibilidade de estudar de maneira gratuita em uma Universidade, por exemplo. Isso, por si só, já fala de sonhos que sequer são sonhados. E, em vários casos, quando sonhados, são interrompidos.

 Se você ascende ao nível superior, você é sim, de alguma maneira, privilegiado. Se você consegue ter condições de permanecer nesse nível e concluí-lo, mais privilegiado ainda o é. E, já que ingressou e aqui está, abrem-se as portas do fantástico mundo acadêmico. Entre as disciplinas e projetos que você participa, você começa a descobrir que existe um universo repleto de situações e vivências que lhe fazem bem: participar de uma pesquisa; apresentar um trabalho num evento; estar em contato com pesquisadores reconhecidos, sendo “apenas um graduando”; enfim... Você se vê dentro da produção de conhecimentos e pensa: “Uau! É isso que eu quero para mim”. Sorte daqueles que se formam, vão para o mundo do trabalho e não regressam à academia. Ou, quando regressam, é apenas para fazer algum curso de aperfeiçoamento ou algo do gênero. Sorte? Sim, sorte. Por que se sua decisão foi continuar nesse mundo mágico, começa a criação de um casco de tantas cicatrizes e feridas que começarão a lhe perseguir.

 Você finalizou a graduação. Parabéns! Canudo na mão. Você e alguns dos colegas de graduação, talvez, já colam grau com aprovação para cursar o mestrado em algum programa de pós-graduação. Aí, por si só, já considere outra vitória: a seleção nos processos seletivos da pós-graduação. Você só conseguiu esse trampolim fantástico porque era bolsista de iniciação científica de seu futuro orientador, ou algo do tipo. São raríssimos os casos daqueles que conseguem aprovação em algum PPG sem ter tido contato anterior, seja por iniciação científica, seja por estar matriculado como ouvinte em alguma disciplina, etc. Essa é outra barreira a ser ultrapassada.

 Mais eventos, mais disciplinas, mais pesquisa. Você começa a, cada vez mais, sentir-se parte do processo e a ter alguma importância no giro dessa roda. Alguns trabalham enquanto cursam mestrado/doutorado, outros são bolsistas com dedicação integral. Aí também residem diferenças importantes. Termina o mestrado e você decide seguir, afinal “agora é um pulo para o doutorado”. E faz nova seleção e começa tudo outra vez. As responsabilidades aumentam, pois, na Tese “temos que colocar um tijolo na parede de nosso campo de pesquisa”. Tem mais tempo, “pero no mucho”, “hay que correr”. Mais atribuições, uma imersão maior no campo, a sensação de estar contribuindo na produção de conhecimentos só aumenta. Relatórios e mais relatórios. Desgastes, depressão, desânimo, parcerias para renovar os ânimos. Qualifica, ajusta, revisa, escreve, revisa. Defende a Tese. Enfim, Doutor! Se os graduados representam menos de um terço da população, os doutores representam menos de meio por cento. Topo da pirâmide? Talvez. Acabou por aqui? Não mesmo.

 Tudo o que escrevi – de forma bastante resumida – até aqui, trata-se da vida acadêmica do estudante (de graduação e de pós-graduação). A coisa só piora quando você vai pro ingresso como profissional nessa vida, a vida acadêmica. O universo de trabalho para acadêmicos doutores no mundo privado existe, mas é bastante restrito. Bastante mesmo. Por esse e outros fatores, o maior mercado de trabalho de Doutores no Brasil está nas Universidades (federais, em sua maioria). E aí começa a outra parte da saga.

 Não apenas nas famosas “rádios corredores”, mas também nos consultórios de terapeutas, em relatos autobiográficos e outros tantos espaços abundam relatos de Doutoras e Doutores que foram – seriamente – injustiçados em concursos públicos para as Universidades Federais. Desde bancas formadas com o intuito de aprovar determinado candidato até fraudes documentais se tem notícias. Preferências políticas, amizades, redes e contatos são alguns dos elementos que te podem fazer entrar. Ou ser barrado na porta. Muito além de seu currículo ou de seu real desempenho em provas, em vários casos são outras preferências que vem à frente. Isso não quer dizer que não existam bancas de seleções honestas e corretas. Elas existem! Por incrível que pareça.

 Eis que você é aprovado em um concurso público e vira professor de uma instituição de ensino superior federal. Parabéns! Seu suplicio só segue, pois agora se inicia um período chamado “estágio probatório” e, se você não for um dos poucos que passam por isso de modo calmo, tranquilo, pacífico e sereno, iniciam-se três anos de tormento, perseguições, charadinhas, palavras ditas ao vento, enfim... Você deveria provar, em resumo, que sabe fazer seu trabalho. Mas esse período de provas, na verdade, é para provar sua sanidade mental. Também não são poucos os casos de servidores que entram em licença saúde (mental) pelo que viveram nos estágios probatórios.

 Terminado o período de carregar cruzes, enfim, a estabilidade (enquanto ainda tiver...). Só que não. Outras cruzes vêm pela frente. Entre as aulas que você dá, os projetos que você coordena, os estudantes que você orienta, etc., vem um mundo de outras questões. Pouco se fala – talvez mais por medo do que se possa ouvir depois – das vaidades que existem nesse mundo acadêmico. Brigas de egos são comuns e constantes. E se manifestam de múltiplas formas. Quando você menos espera, chega outra bomba pra resolver. E se fossem questões puramente técnicas, até se entenderia. O problema é que a maioria dos “pepinos” enfrentados pelos acadêmicos em suas vidas profissionais é resultado de situações armadas por... seus colegas acadêmicos.

 Ser acadêmico, por si só, já é um ato de resistência. Resistir a todo esse processo descrito resumidamente aqui. Resistir por querer contribuir com a produção de conhecimento – seja em qual área for. Resistir nos desafios diários que nos são impostos pelos mais diferentes atores. Resistir tem sido mais que verbo; tem sido o real cotidiano.

 Escrevo esse texto em um momento de resistência de minha própria vida acadêmica. Descobri a alguns anos que me sinto bem se coloco em palavras o que estou sentido. Então, qual foi o propósito dessas – pesadas – palavras? Martirizar a mim e meus colegas? Não. Foi um alerta! Precisamos repensar nossas rotinas, nossos fazeres, nossas ações como acadêmicos. Esse texto veio para desinteressar os possíveis interessados em seguir carreira acadêmica? Tampouco! É outro alerta, para que eles possam ingressar nessa vida sabendo de seus desafios e com coragem extra de mudar o status quo tão maléfico pelo qual vivemos.

 Por fim, quem nos lê poderia perguntar-se: se é tão ruim assim, por que não troca de carreira – algo que tem ficado tão comum no mundo contemporâneo. A resposta, por mais complexa que possa ser, também é simples. Sonhos não são fáceis de serem arrancados. Muitos de nós sonhamos em estar aqui e não serão recalques alheios que nos tirarão desse espaço tão importante: o da produção de conhecimentos.

 A academia está em crise? Viva a academia!


Suzana Almeida - Susan Meotti

Potencializadora de Talentos. Mestre: Educação (escolar/EaD/corporativa), Cultura e Comunicação. Palestrante. Prof.

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Suzana Almeida - Susan Meotti

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