Bagagem
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Bagagem

Era uma casa muito grande. Dois andares, três quartos. Três banheiros. Lindas janelas e portas de blindex. Porcelanato de primeira no chão. Uma escada interna linda. Quintal e estacionamento para dois veículos. Na garagem, um possante confortável, com bancos de couro e um teto de vidro que permitia ver os pingos escorregando magicamente em dias chuvosos.

Havia muitos objetos, livros, roupas, sapatos, maquiagem, cachecóis (oi?), bolsas, papéis, contas, parcelamentos, contratos. Alguns móveis. Mas o espaço da casa era amplo. Tanto, que seria necessário adquirir mais para ocupar aquele vazio recém adquirido em suaves 360 meses. 30 anos!

E para viabilizar tudo aquilo havia o trabalho. Somavam se mais de dez anos de dedicação intensa só naquela empresa. Não seria suficiente. Aquela mulher ainda teria que se esforçar mais pra adquirir mais e preencher todos aqueles espaços. Era uma pessoa e um vazio a ser preenchido com mais trabalho e coisas.

Aparentemente estava tudo bem. Quem olhava, possivelmente achava admirável. Na lógica de ter carreira, casa, carro e estabilidade material, ela se saíra muito bem. Mas se olhava e não se reconhecia. Parecia que ela era diferente. Não queria muito todas aquelas coisas. Nem sabia bem como mantê-las em ordem. Era caótico. Desgastante. Profundamente, ela não procurava entender. Apenas sentia que não havia pertencimento. Ainda assim, olhava pra fora, compreendia o que era esperado e partia igual um cão de caça.

Até que lhe tiraram a caça. Aquele trabalho que lhe exigia dedicação quase integral e lhe dava sentido não estava mais lá. Ela, então, se perdeu. Chorou. Deprimiu. Achou que não encontraria algo tão valioso novamente. Achou que ela mesma nem tinha mais tanto valor. Precisou se desfazer de muitas coisas. Simplificar.

Foi ficando cada vez mais vazio. E então, ela se desfez do vazio também. Entregou a casa grande. Doou praticamente todos os móveis e objetos. Foi morar com o necessário, em um modesto apartamento. Nada de blindex nem porcelanato. Um banheiro simples. Estacionamento pra um carro. Poucos objetos. Menos roupas, menos sapatos. Maquiagem muito pouca. Três cachecóis (recordação da avó querida que os tricotava). Poucas contas pra pagar e um novo trabalho.

Ficou mais leve. Bem mais laro. Com menos coisas ela começou a se olhar. Se via. Buscou se entender. Entendeu que já havia começado a caminhar. E que a jornada seria longa. Precisava estar ainda mais leve. Solta. Liberta.

Deixou o novo trabalho. Desfez o pequeno apartamento de 48 metros quadrados. Doou mais coisas. Vendeu algumas outras. Passou por perdas e despedidas. Seguiria viagem, dessa vez apenas com o que coubesse no porta malas do carro. Estava decidida. Com medos e cheia coragem, porém radiante. Excitada.

Enquanto todos pensavam que seu mundo estava desabando, ela se deleitava. Observava, risonha e divertidamente, o restante do seu mundinho velho ruir e ceder espaço pra vida fluida que internamente já gestava.

Todas as suas peças de vestir e calçar cabiam agora em 3 malas. Pequenas caixas acomodavam livros de poesia, alguns vinis e objetos de valor afetivo. Já não havia mais tantos papéis ou contas a pagar. Carregava pouco, não acumulava. Bem mais fácil pra se movimentar. 

Certa noite, em mais um ato ‘enxugatório’ do destino, teve uma das malas roubada. Estava bem no meio de um curso intensivo de meditação. E só pôde compreender que ainda carregava mais do que precisava. Agradeceu e seguiu com menos ainda. Duas malas.

Sentia que estava pronta. Havia chegado a hora do embarque definitivo rumo a si mesma. Levíssima. Flutuante. Queria a experiência. Guardou as coisas. Deixou o carro, as caixas e uma única mala na casa dos pais. E foi. Partiu com o que cabia apenas na outra mala e na memória.

Por mais de um ano morou em quartos alugados, compartilhou banheiros, vestiu-se com roupas usadas ou ganhadas. Era frio por lá e ela precisou de cachecóis como nunca! Mas agora sentia que fazia uso das coisas. Não era mais escrava delas.

Vagou por seus sentimentos, investigou seus sonhos mais sublimes. Acolheu suas dores, encarou seus medos, flertou com a solidão. Se deslocou muito. Passou por ruas, cidades e países. Adotou uma pequena mochila para carregar só o elementar. Pegou ônibus, trem, metrô, avião, barco, bondinho. E caminhou. Caminhou muito. Foi rio, mar, terra e ar. Foi tanto, e foi tão fácil, que aquele carro parado na garagem também não tinha mais sentido. Abriu mão dele também. Queria a leveza de ser só ela e sua pouca bagagem.

Lembrou-se de Adélia, sua conterrânea e poeta de devoção, que já ensinara que bagagem é o essencial. Uma cuidadosa seleção de coisas importantes e fundamentais. Voltou da jornada, então, trazendo a mesma única mala da ida. Não acumulou. Ainda encontrou o que doar. Trouxe pouquíssimas peças, algumas encomendas de amigos e lembranças. Estava quase vazia de objetos, mas totalmente inundada de si mesma.

Com pouca bagagem. E densa de bagagem.

Era ela.

Belo Horizonte, 7 de janeiro de 2020.


Crônica originalmente publicada em detrasprafrente.com

Lá tem uma seção com várias crônicas do meu intercâmbio aos 40, na Ilha da Esmeralda. Corre lá pra ler mais!


Denise Coronado

Diretora Executiva at Associação Comercial, Industrial, Agropecuária e Serviços de Divinópolis (Acid)

4 a

Oi, Mivla! Está de volta ao Brasil, então? Acho super inspiradora sua história!

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