Brasil: Estado Paradoxo

Brasil: Estado Paradoxo

O mundo de Alice é de conhecimento de todos, visto que Hollywood se esmerou, com habilidade e maestria, em narrar os detalhes desse reino, não restando dúvidas no subconsciente desse pacato público-cidadão em que se transformou o povo preto pós-abolição. As Américas, celeiro da europa, do novo mundo e da modernidade, apontou o Brasil como um destaque único, transformando esse país no reino das mais completas e absolutas contradições existentes no mundo.

Para ilustrar esse estranho fenômeno é preciso assinalar que a ideia de Estado, é uma concepção oriunda da elite feudal europeia e não dos povos autóctones. Os mapas e limites que sempre instigaram litígios, meritocracias e competições, nasceram da ambição do desejo de poder absoluto eurocentrado.

Passando adiante, observaremos que este país era uma colônia que virou capital européia; caso único no mundo; e agora se transformou numa capital que virou colônia. Esse processo que transmutou o império em república se deu durante um golpe militar que levou três batalhões a armar uma cilada, cercando a residência de Pedro II, no Campo de Santana, Rio de Janeiro, então capital do império.

Esse golpe, que habilmente declarava a fundação da república, aconteceu após uma independência conquistada por batalhões de combatentes formado por uma massa negra que lutou em troca da promessa de uma liberdade que jamais se realizou, e cujos soldados sobreviventes deu origem aos territórios de exceção, hoje conhecidos como favelas, alagados e palafitas.

O processo curioso dessa independência é que ela foi independência comprada; sim, foi comprada; além das vidas negras perdidas nos campos de batalha, nessa guerra vencida pelas forças do povo negro, os libertos e os escravizados, pagou-se aos portugueses a quantia de 800 contos de reis, custando também como resgate, as centenas de milhares de livros contidos na biblioteca nacional do Rio de Janeiro, a fim de que essa “independência” fosse reconhecida. Foi assim que a elite brasileira se apossou do Estado através da república.

Sendo enfim, finalmente estabelecido o Estado brasileiro; para se livrar da representação do império; que era simbolizado pela figura do Rei; foi necessário promover um novo signo para representar esse Estado. Como na república quem simboliza o Estado é o povo; e povo se origina de nação; foi necessário se estruturar uma constituição redigida por esse mesmo povo; foi então que se chegou a questão primordial: quem era o povo brasileiro, já que essa elite, proprietária desse Estado, era majoritariamente europeia...!?

Já que os indígenas se encontravam praticamente exterminados, e os negros não eram considerados como cidadãos, pois era de segunda classe et hoc genus omne[1]; foi assim que decidiram embranquecer o povo brasileiro: tornando os negros seres matáveis e colocando em seu lugar os imigrantes europeus. Desde então, o Estado instituiu a política da eugenia para realizar a limpeza étnica total, geral e irrestrita, constando oficialmente a promoção desta política na constituição brasileira como um dever do Estado.

É de bom alvitre lembrar que a constituição brasileira foi copiada da constituição alemã, francesa e espanhola; sendo as mesmas constituições de regime parlamentarista, sendo aqui implantada para gerir um regime presidencialista. O mais curioso na política que estrutura nosso país, é que ele, o Brasil, é dividido por Unidades Federativas sem nunca ter sido uma Federação; fato este único no mundo; Dessa forma, deu-se a continuidade, atualizando-se a política de capitanias hereditárias.

Desse modo, temos um Estado que não veio da nação, visto que a influência dos pensadores europeus, assimilada como herança intelectual pela academia da terra Brasilis, teve ícones como Karl Marx que nunca estudou nação, somente sociedade; não contemplou a pluralidade dos povos existente no solo brasileiro, como ocorre na Espanha, ou na África do Sul com suas 11 etnias que partilham o Estado entre si; dessa forma, no Brasil o Estado é Uni-étnico e monorracial.

Dessa maneira, temos uma imensa maioria que o Estado classifica como minoria, distribuindo os benefícios desse mesmo Estado de uma maneira proporcionalmente inversamente desigual e suis generis, sem que essa maioria, classificada como minoria, nunca se posicione como a maioria que realmente vem a ser, visto que age exatamente como minoria, permitindo que essa minoria, que se outorgou o título de maioria, permaneça no controle dos destinos dessa nação constituída por colonos, colonizados e descendentes de povos africanos escravizados no Brasil.

Ou seja, no momento, os afrodescendentes, que foram assim classificados justamente por ser legitimamente o único Povo residente em meio à população brasileira, sabendo-se que a base de uma nação é a sua economia, política, ideologia e Cultura e a Cultura do Brasil, é a Cultura Negra, mesmo não sendo gerida economicamente pelo Povo Negro.

Dessa forma, temos dois mundos opostos e contraditórios dentro de um mesmo país. Um mundo em preto e branco, onde a maioria negra sem libero veto[2] é regida por leis eurocentradas, redigida por essa minoria branca, que paradoxalmente se opõe a justiça, e vice-versa; transformando o poder judiciário numa Mênade[3].

Enfim, chegamos a uma conjuntura de extrema contradição aonde o cidadão chega a enganar-se, não na condição de ser individual, nem na condição de povo, mas na sua condição de humanidade devido a sua impiedosa coisificação e despersonalização, nesse Estado onde as despesas com a paz tornou-se algo indecente diante dessa disharmonia praestabelecida.

Em meio ao paradoxo que entrelaça ambos os mundos, há uma purity of arms[4] para que a limpeza étnica prossiga de forma ininterrupta, enquanto a sociedade se reduz a um mero e mórbido espetáculo, com a linguagem própria de um show que tem que continuar, sendo ela um projeto e um produto de si, que se encerra em si mesma, nesse mundo onde o sol nunca se põe, visto que não há nascente nem poente nesse Estado que é governado, não pelo dinheiro, nem pelo poder, mas sim, pelo medo que a tudo cria, num eterno e constante movimento anacrônico e diacrônico contraditoriamente sintomático.

 


[1] “E toda a gente do tipo”

[2] “A liberdade de dizer Não”. No antigo congresso Polonês (1651-1791) o direito de cada membro de revogar decisões a partir de seu voto pessoal.

[3] Bacante: sacerdotisa de Baco, por extensão, mulher devassa, dissoluta, libertina.

[4] Guerra limpa.



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