CAPÍTULO XV - STEVEN MONTEFELTRO PISA NO CHÃO DE GUERRA
(Capítulo XV, completo, do livro de publicação independente — ISBN 978-65-992287-4-2 — MINHA CASA OCIDENTAL — RELATO VERDADEIRO SOBRE A MORTE DO FACÍNORA, composto de XXXIV capítulos e 988 páginas, de autoria de CISINO COSTA. Dá-se continuidade à apresentação do histórico de vida do personagem norte-americano Steven Montefeltro. No capítulo, imprime-se ênfase à participação dele na invasão frustrada de Cuba, como agente da CIA, em abril de 1961. Logo depois, conforme discorrido no romance, ele veio ao Brasil desigualitário a título de ajuda gratuita do Departamento de Estado Americano, para treinar a polícia, inclusive ensinando técnicas de torturas e mortes. No bojo dos trabalhos oficiais, conspirou contra o governo de João Goulart e ajudou a promover a Revolução Militar de 1964, estando presente na solenidade de posse do deputado Ranieri Mazzilli, no dia 1 de abril de 1964, como Presidente da República, provisório. Na oportunidade, o Palácio do Planalto, em Brasília, abandonado, estava às escuras, tendo sido ele o famoso agente da CIA que se dirigiu ao porão e ligou o interruptor, permitindo o clareamento em parte do prédio e a realização da solenidade de posse. Muito prolífico, depois do golpe militar ele ajudou a construir o conceito de “inimigo interno” das forças de segurança e da população, consignado até no Manual de Campanha-Guerra Revolucionária, aprovado pelo Estado-Maior do Exército Brasileiro. Foram eleitos como inimigos internos, os elementos subversivos e os meliantes comuns alçados à mesma condição para fins de extermínio sistemático. Tal condição terminou favorecendo, com a participação ativa dele, Steven Montefeltro, a criação dos Esquadrões da Morte e a instituição da cultura de eliminação física de vivos periféricos e vulneráveis: jovens, pobres, analfabetos, negros, pardos e manchados. O que se vê até agora!)
CAPÍTULO XV
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STEVEN MONTEFELTRO PISA NO CHÃO DE GUERRA
Águas da costa das Antilhas, baía de Cortés, extremo oeste da ilha de Cuba, abril de 1961
O tempo passava e Steven Montefeltro não conseguia anular o episódio na sua memória. Tampouco compreender plenamente, no seu íntimo, as circunstâncias efetivas do acontecimento. Sempre que rememorava o fato, o que ocorria muito mais vezes do que ele desejava, as dúvidas submergiam vitoriosas, mais ainda. Normalmente, uma tensão aflorava no meio da testa e aumentava paulatinamente até ele dar basta com muito esforço mental. A cabeça cabeluda chegava até a doer.
A mulher se recusara mesmo a falar, ou foi ele que fez ouvidos moucos, inteiramente envolvido na tarefa de torturar? Empolgara-se em demasia, esquecera o objetivo e se perdera nos percursos dos meios? Será que se irritara com algo que ela dissera num espanhol de língua presa, mas não completamente ininteligível?
A verdade é que o primeiro ser humano que ele torturou terminou matando com as próprias mãos, e o uso improvisado de um pedaço de madeira, levemente pontiagudo, que antes tinha sido usado para escarafunchar as partes pudendas dela, rasgando parte do ânus e afundando o canal do reto. Matou moída a pau! Não tem melhor explicação.
— Guloso, hem? Chegou a gozar? — Foi isto que ele ouviu dos companheiros de tortura quando viram o estrago que ele fizera.
Complementaram dizendo, com total compreensão e indulgência do fato:
— Lambuzou a cozinha toda, poderia ter feito um trabalho mais limpo.
Contudo, ele daria aos mais chegados da comunidade de informações — e, também, à companheira de leito, Marceline — uma versão mais amena, padronizada, sem contra narrativa, desde que o ato criminoso foi cometido dentro de quatro paredes e não deixou testemunha viva, a não ser o autor do morticínio, ele próprio. “A guerrilheira se recusava terminantemente a falar e fui obrigado, pelas circunstâncias, a insistir com o uso de meios coercitivos fortes. Não se consegue confissões de preso, doando bombons de chocolate. Ela estava diretamente ligada a atos criminosos e a situação era de urgência absoluta, tínhamos vidas na frente para salvar e corríamos contra o tempo, mas ela deu azar. Era uma pura questão de matemática racional: flecha um aqui ou deixa flecharem centenas na frente? Montado nos ideais que estruturaram a nossa sociedade, nunca me arrependi da minha opção pelas vidas inocentes dos civilizados cidadãos seguidores da lei e da ordem, em detrimento dos perdedores criminosos, mesmo daqueles já dominados pelo braço longo do poder legal”.
Tudo conversa para boi dormir! Fornecia para consumo uma versão fantasiosa, ajustada e assimilável, tentando esconder a verdade, que, não obstante, ainda continuava pulsante dentro dele, insepulta nas cinzas da memória. Uma ferida aberta que se recusava a sarar.
O fato ocorrera de maneira bem diferente.
O espelho pela manhã não o perdoava e fazia as dúvidas emergirem regularmente, trazendo à luz as lembranças indesejáveis. Na verdade, foi uma curiosidade mórbida e doentia que o fez esperar até ela dar o último suspiro dos últimos momentos. Assistiu até o fim. Podia muito bem ter chamado os médicos embarcados no navio com a tropa de ataque, quando ela ainda havia sido ferida no combate, ou mesmo antes que os estragos pelas pancadas se tornassem fatais. Até mesmo após as convulsões e o desfalecimento, mas não! Ficou lá olhando, passivamente, com os olhos arregalados, esperando a vida dela se esvair do corpo condenado e massacrado até o momento dos espasmos finais de morte. Negou até mesmo um golpe de misericórdia, um coupe de grace desejável (quem sabe?). Só acordou do macabro devaneio quando ouviu o último resfolegar, doloroso, arrancado do fundo, mas conformado, como se fosse o fim premeditado de uma melodia bem arranjada, composta e externada na medida exata para atender a um desejo final sedento de paz do espírito, mesmo ao preço fatal da morte. A partir desse episódio, sintomaticamente, ele se tornaria muito mais profissional. Passaria a conhecer os seus limites, sabia — havia visto! — das consequências e suas mãos se tornaram mais sutis, cuidadosas e eficientes, como instrumento no emprego da técnica aprimorada de tortura e não de golpes animalescos, desordenados e inconsequentes. Curara-se ao preço bem caro da morte! Não, não fora uma doença, acreditava, mas apenas um começo malsucedido, um excesso de nervosismo. Merecia um novo recomeço!
Torna-se necessário explicar as circunstâncias em que isto ocorreu. Os motivos e os pormenores pelos quais uma guajira guantanamera de lábios grossos, cruéis, tentadores; olhos, cor de mel, e cabelos trigueiros; corada pelo sol e com a pele salgada pelo mar do Caribe, caiu nas garras ferozes de Steven Montefeltro. Ela fora barbaramente supliciada e falecera, na noite de 16 para 17 de abril de 1961, nas dependências do navio que transportava uma força invasora contra o governo de Cuba. Esse episódio tornou-o muito mais senhor de si, profissionalmente falando, e mais capacitado na sua faina de infligir dor em busca de informações valiosas, mesmo as inexistentes, que alavancassem progresso investigativo.
A noite enluarada do dia 16 de abril de 1961 mal começara. O sol ainda demoraria muito para despontar no horizonte já no dia seguinte, quando o antiquado navio Santa Ana, camuflado com bandeira costa-riquenha, navegando em águas antilhanas, iniciou perigosa navegação de cabotagem. Aproximava-se cuidadosamente da costa íngreme, evitando colisões com arrecifes de corais próximos. Procurava um lugar seguro para atracação furtiva e desembarque não autorizado dos passageiros em Bahia de Cortés, na província de Pinar Del Rio, no extremo oeste da ilha de Cuba. Embora a época das chuvas ainda não houvesse chegado na ilha, o clima tropical, temperado pelos ventos elísios, era agradável no sentir corporal e o termômetro marcava, fechado, dezoito graus Celsius. O barco vinha navegando desde a base secreta da Central Intelligence Agency-CIA, situada em Sierra Madre de Chiapas, na costa da Guatemala, construída poucos anos depois de os Estados Unidos terem patrocinado, em 1954, um golpe de estado no país. Trazia na equipagem “assessores americanos”, mais precisamente, agentes de infiltração das forças especiais do Serviço de Operações–SO e dos Serviços Clandestinos–SC, ambos da CIA, dentre os quais Steven Montefeltro, que fora recrutado pela agência e largara o FBI, acompanhados de integrantes de coorte paramilitar de mercenários e exilados cubanos anticastristas. Era uma formação composta de mais de uma centena de pessoas, recrutadas, a maioria, entre desocupados e malfeitores, em Miami, e treinadas na base da CIA, na Guatemala, já que o pudor para consumo público do Departamento de Estado não permitia o treinamento de uma milícia estrangeira em solo americano. Os passageiros do Santa Ana faziam parte de um grupo armado mais populoso, que tinha por missão a realização de ataque direto à ilha de Cuba, sob a direção da CIA e apoio das forças armadas norte-americanas, o que incluiria um porta-aviões e infantaria pronta para intervir. Premeditava-se assassinar Fidel Castro e afastar o regime instaurado por ele. Retomar-se-ia — pode-se assim afirmar, grosso modo — à dominação ocorrida no período compreendido entre 1902, quando os Estados Unidos implantaram no poder um cubano de nacionalidade americana, Tomás Estrada Palma, até a expulsão de Fulgêncio Batista pelos revolucionários cubanos de Castro, em 1959.
O grupo transportado pelo Santa Ana compunha um contingente avançado. Tratava-se de força de menor monta, que objetivava contatos com aliados, reconhecimento de terreno e despiste, desde que o grosso do desembarque da força invasora estava planejado para ocorrer no dia seguinte, na Praia de Girón, localizada na Baía de Los Cochinos, na costa sul da Ilha. Neste local que os invasores pretendiam tomar, já existia um campo de aviação improvisado, dotado de capacidade suficiente para receber os aviões bombardeiros das forças externas.
A prioridade visada pelo Santa Ana era o aprovisionamento de militantes anticastristas locais, que asseguravam um clima, embora ainda incipiente, de guerra civil, regidos por agentes norte-americanos da CIA, que já se encontravam infiltrados na ilha, em terra. A CIA fornecia-lhes meios e incentivos para guerrilhas contrarrevolucionárias, motins, deserções, incitação à violência e insubordinação civil. Pessoal; instrutores; treinamentos relâmpagos; planos de ações; material de propaganda de convencimento (inclusive, milhares de impressos do “Decálogo de Lênin”, texto preparado pela CIA e atribuído ao revolucionário russo). Combustível, armamentos e material explosivo (bombas incendiárias, de fumaça, C-3, C-4, metralhadoras, fuzis, granadas de mão e munições), equipamentos diversos, aparelhos de comunicação modernos, suprimentos, víveres, dinheiro sonante. Isto era o que o Santa Ana prometia entregar, lançando toneladas de aparatos ao mar, próximo das praias, embaladas em bolsas especialmente seladas, que depois seriam recuperadas pelos contrarrevolucionários em terra. Em outras palavras, o mais completo suporte logístico, necessário para a manutenção da guerrilha e a realização de atentados e atos de sabotagem em instalações públicas e prédios ocupados por integrantes do governo cubano. Promovia-se o terrorismo, o que já vinha sendo praticado na ilha há algum tempo, no conjunto dos esforços para desestabilizar e derrubar o regime instaurado com o afastamento de Fulgêncio Batista, dois anos e três meses antes.
Poucas horas atrás, ainda em alto mar, os agentes da CIA nas dependências do Santa Ana vibraram com uma notícia recebida pelo rádio. Fidel Castro, em discurso naquele dia, pela primeira vez na vida, reconhecia em público o caráter socialista da revolução que comandava. O fato, segundo entendiam, facilitava em muito a missão deles. Isto porque contavam com a ajuda de sublevação popular e deserções em massa, para afastar o ditador avermelhado, marionete de Moscou, e varrer em definitivo a ameaça comunista da ilha e do continente americano. Imaginavam que tal declaração ajudava a fomentar o sentimento anticomunista, até mesmo porque o regime já se revelava totalitário com um partido único. Os fuzilamentos, os confiscos e as expropriações de empresas americanas já vinham ocorrendo. Os abusos de autoridades e os controles dos meios de comunicação já se faziam presentes. Além do que, os tribunais revolucionários, de exceção, proliferavam em toda a ilha, a partir do tribunal de crimes de guerra de 1959. Ademais, tinham outras razões para crer que a população não aceitaria um regime socialista. A maioria da população da ilha era cristã, ocupando, principalmente, os assentos da santa igreja católica apostólico-romana. Outros, dos ilhéus, ainda eram chegados à regla de ocha (santeria afro-cubana), politeísta, cheia de orixás, os deuses africanos que vieram do oeste da África, embarcados nos navios negreiros que transportavam escravos para serem despejados no cultivo da cana-de-açúcar. Esperava-se, assim, em face dos conflitos sociais vividos pela sociedade, das religiões professadas, das referências míticas e da imensa quantidade de deuses, santos, crenças e imagens religiosas, estacionárias ou peregrinas, que a população da ilha não admitiria um governo comunista ateu e “comedor de criancinhas”. Ostentando crucifixos cristãos, ou manipulando o pó de pemba dos rituais africanos, o povo cubano afastaria o ideário marxista, e os seus arautos, que por essa época já se encontravam em grande número na ilha de Cuba, divulgando ideais ateus, inclusive aquele de que a “religião é o ópio do povo”. Portanto, os agentes da CIA estavam certos de que o reconhecimento de Fidel Castro, embora tardio, ao lado do poderoso embargo econômico promovido contra a ilha, certamente levaria ao desconforto popular e ao levante geral contra o governo. A situação havia sido prevista no plano traçado no “Programa de Ação Secreta contra o regime de Castro”, cujos objetivos foram expostos pelo então Subsecretário Assistente de Estado Americano, Lester Mallory. Este, assim disse, em memorando secreto: “A maioria dos cubanos apoia Castro […] Não existe uma oposição política efetiva […] O único meio possível de fazê-lo perder o apoio interno ao governo é provocar o desencanto e o desespero mediante a insatisfação econômica e a penúria […] Temos que colocar em prática rapidamente todos os meios possíveis para debilitar a vida econômica […] negando-se a Cuba dinheiro e abastecimento com o fim de reduzir os salários nominais e reais, visando provocar fome, desespero e a derrubada do governo”.
A notícia que os agentes norte-americanos ouviram pelo rádio, ratificada pelo telégrafo a bordo, era efetivamente verdadeira. O governo cubano, inteiramente alertado por diversos meios de que uma invasão iria ocorrer no dia seguinte, e a qualquer momento (sabiam até o local: Playa Girón, na Baía dos Porcos), reunira rapidamente o gabinete, naquele mesmo dia, 16 de abril de 1961. Até mesmo porque, no dia anterior, dia 15 de abril, ocorreram bombardeios ainda não elucidados em campos de aviação na ilha, realizados, segundo relatos oculares, por aviões de fabricação americana do tipo Douglas B-26s Invader, pintados com a bandeira da FAR (Fuerza Aérea Revolucionaria Cubana).
Todos estavam informalmente reunidos no centro de comando do Punto Uno, diante do comandante em chefe das forças armadas, Fidel Castro. O presidente do Conselho de Estado de Cuba, Osvaldo Dorticós Torrado. O Estado Maior das Forças Armadas (Comandantes do exército nas diversas localidades do país, da força aérea revolucionária, da polícia nacional cubana, liderada por Efigenio Ameijeiras, o chefe de segurança do estado; o diretor de operações internas; os chefes dos setores de defesa de Havana). Além do corpo de ministros civis, conselheiros militares soviéticos e de outros países do bloco comunista, inclusive da República Popular e Democrática da Coreia (Coreia do Norte), que estava fornecendo armamentos a Cuba. Numa sala ao lado, encontravam-se agentes da KGB — o órgão de inteligência soviética — e proeminentes veteranos espanhóis que haviam perdido a guerra contra Francisco Franco, na Espanha, e ultimamente acorreram à ilha de Cuba para se juntar a Fidel Castro e salvá-la das “forças decadentes” do governo de Fulgêncio Batista.
“Posso garantir” — disse Raúl Curbelo Morales, comandante da força aérea revolucionária, no curso da reunião — “que os aviões agressores não partiram das nossas bases. Fizemos um inventário total durante todo o dia e noite, e posso afirmar que nenhuma aeronave cubana voou para bombardear nossas próprias instalações. Atrevo-me até a afirmar também que nenhum dos nossos técnicos, ou pilotos, participou da agressão. Isto foi armação dos miseráveis imperialistas contra a Revolução Cubana. Foram aviões ianques falsamente decorados com insígnias cubanas.”
Completou, fazendo um balanço das vítimas dos ataques aéreos:
— Contabilizamos sete compatriotas mortos e mais de cinquenta feridos, inclusive crianças moradoras nos arredores do aeroporto de Ciudad Libertad. Nossos aviões estão preparados para atacar assim que os invasores desembarcarem.
Ao que Fidel respondeu com os olhos crispados e uma firmeza assustadora:
— Não! Não! Tem que atacar os barcos, os barcos! Assim, eles morrem logo afogados, ou serão abatidos com maior facilidade. Vamos agir com rigor e ser fulminantes no contra-ataque ainda em água. Em água!
No meio dos debates, um assessor russo tomou a palavra e, olhando nos olhos, disse a um bem-compenetrado Fidel Castro Ruiz que, até então, não se sabia ao certo se era comunista ou não:
— É importante, meu comandante, que seja proclamado imediatamente o caráter socialista da Revolução e do seu governo! Somente assim, terás o integral apoio do camarada Khrushchov e do mundo comunista. Você tem sido ambíguo e isto não lhe favorece. Temos que eliminar as dúvidas, extirpar a partir da raiz. O companheiro pensa que ainda pode contar com os Estados Unidos, o seu vizinho, só porque eles lhe ajudaram a derrubar Fulgêncio Batista? Está muito enganado, os americanos não lhe apoiam mais. Só garantiremos a sua sobrevivência com uma declaração formal de alinhamento com o bloco. Já apostamos muitas fichas aqui e até agora o companheiro tem dado pouca demonstração de direcionamento fixo e formação de par com o movimento comunista mundial. Chegou a hora! Como bem sabes, o traidor norte-americano William Alexander Morgan, executado no mês passado na prisão de La Cabana, afirmou até o fim que você era menos socialista do que John Kennedy, o presidente do império ianque. Chegou a chamá-lo de “marxista de salão”.
Apreensivo, mas não menos determinante, após mais algumas conversas, Fidel Castro aplicou o seu conceito de democracia direta, muito certamente não aprendido da história da Grécia antiga, dizendo:
— Como todos sabem, já começamos a agir, mas precisamos continuar. Correr a ilha e prender todo e qualquer contrarrevolucionário, centenas, milhares, não importa. Não vamos suportar deserções, motins ou qualquer desobediência civil. Vejam bem, anotem bem, vamos identificar os que têm capacidade de liderança e levá-los sem dó ao paredón. Vamos matar todos eles, sem piedade. Tanto os já presos, como os que serão trancafiados a partir de hoje, mas antes vamos arrancar as informações possíveis na mão grossa. Eles não poderão nos suceder, mesmo que morramos! Vamos matar também todos os que estiveram envolvidos em atos de terrorismo, ou apanhados com material bélico, nem que seja um pequeno canivete suíço, mas tomando o cuidado de obter antes informações forçadas para evitar novos atentados. Isto se aplica também aos norte-americanos apreendidos. Vamos matar todos eles, antes que as forças invasoras americanas cheguem. Cada um de vocês cumpra com vigor e coragem essa nossa política excepcional de guerra revolucionária. É uma exceção! Podemos até morrer, mas eles não verão nossos cadáveres, pois morrerão antes e estarão enterrados.
Essa declaração fez alguns baixarem a cabeça, inclusive Raul Castro (que sempre cuidava dos feridos e respeitava os prisioneiros), mas teve o apoio imediato de Che Guevara e, mais ainda, de José Ramón Fernández, que no dia seguinte foi nomeado chefe das forças armadas cubanas.
Apenas algumas horas depois, nas honras fúnebres das vítimas do ataque aéreo do dia anterior, o comandante em chefe, Fidel Castro, no que chamou de “revolucionário sepultamento”, fez um discurso show na Praça da Revolução, em Havana. No local, completamente lotado, proclamou o caráter socialista da Revolução Cubana de 1959, alinhando-se, finalmente, com as forças da esquerda. Nesta mesma oportunidade, dotado de mais informações a respeito dos ataques aéreos, dá a versão fiel e verdadeira do incidente. Usou o seu estilo político de convencimento, bem comedido, crescente, pedagógico, desmontando a farsa montada pela CIA ao usar aviões pintados com bandeiras cubanas para bombardear os próprios cubanos, divulgando para o mundo a mentira de que se tratava apenas de guerra interna entre os nascidos na ilha. Disse: “O imperialismo projeta o crime, organiza o crime, arma os criminosos, treina os criminosos, paga aos criminosos, trazem os criminosos e assassinam sete filhos trabalhadores, aterrissam tranquilamente nos Estados Unidos, e quando o mundo inteiro sabia das suas andanças, declaram então que eram pilotos cubanos, preparam uma historinha truculenta e novelesca e divulgam para o mundo todo, publicam em todos os jornais, estações de rádio e televisão…”.
Finalizou, como de praxe no último ano, desde as explosões do Le Coubre, com o brado de guerra:
— Pátria ou Morte!
Todos os presentes entoaram o hino nacional. Como já era na boquinha da noite, pesados refletores foram ligados e direcionados em movimento para os prédios mais próximos, fazendo a luz jorrar nas fachadas, conferindo maior segurança contra possível atirador, e imprimindo evidente dramaticidade de iluminação ao local, digna da estética da cineasta alemã, Leni Riefenstahl. Ainda do palanque, Fidel Castro deu instruções rápidas aos companheiros para reprimirem a invasão que se aproximava da Baía de Cabanas, em Santiago de Cuba, a oeste de Havana, segundo informações que depois se revelaram falsas. Foram plantadas pela CIA como mais um despistamento. O desembarque maciço ocorreria efetivamente no dia seguinte, mas em Playa Girón e em Playa Larga, esta última situada na Península de la Ciénaga de Zapata.
(Nota pertinente: O mais importante ato terrorista do século XX, ocorrido no continente americano, deu-se em 04 de março de 1960. Foi a explosão do navio “La Coubre” no porto de Havana, em Cuba. Causou, além de uma centena de mortos, entre eles seis membros franceses da tripulação, mais de 200 feridos e inúmeros desaparecidos. O próprio Fidel Castro, testemunha ocular, e que, poucas horas depois do incidente, presidiu um ato histórico na Praça da Revolução quando acusou a CIA do malfeito, narra a história: “Era el 4 de marzo de 1960. Una fuerte explosión hizo trepidar el edificio; miré por instinto hacia el puerto, donde sabía que estaba descargándose el mercante francés La Coubre; una densa columna de humo ascendía desde aquel punto, no distante en línea recta. Comprendí en el acto lo ocurrido. Imaginé las víctimas, bajé rápido, y con la pequeña escolta abordamos los carros, nos movimos hacia el puerto transitando por estrechas calles y elevado tránsito. Estaba ya muy próximo, cuando escucho una segunda explosión en el mismo punto. Se puede comprender la ansiedad que nos provocó aquella nueva explosión. Imaginé el daño ocasionado a los obreros y soldados que estarían ayudando a las víctimas de la primera. A duras penas logré que el carro se aproximara al muelle, donde pude observar el dramático pero heroico comportamiento de aquellos hombres. Alrededor de 100 personas murieron; los heridos eran muchos y requeridos de atención urgente”).
Enquanto o Santa Ana margeava as reentrâncias de Bahia de Cortés, com as águas batendo mansamente no costado, e depois fundeou na frente da playa Bailén, milicianos cubanos em “luta pela liberdade” (como se afirmava de maneira edulcorada, quase romântica, na ilha de Cuba), observavam os movimentos. Estacionados no alto, protegidos pelas sombras noturnas de coqueiros que afastavam a claridade da lua, avistavam com olhos curiosos — e não era por acaso — o navio e captavam sinais frequentes de rádio, através de equipamentos defasados que funcionavam com muitas válvulas acesas. Perceberam, imediatamente, que algo maior estava prestes a acontecer. Tentaram, mais uma vez, sem sucesso, manter contato com o centro de comando ou com Che Guevara, comandante das forças no Oeste, baseado em Pinar Del Rio, mas que no momento se encontrava em Havana, segundo informações. Os milicianos, em número de três, portavam modernos fuzis semiautomáticos de assalto FAL, calibre 7,62, com pentes de 20 balas, da Fabrique Nationale d’Armes de Guerre, de Liège, Bélgica.
Atendiam ao comando de Graciela Chica Marcolino Bragante, uma pinta muchacha de vinte e um anos, nascida na costa das Antilhas, nos arredores da cidade de Guantánamo, no sudeste de Cuba. Até os seus dezoito anos, com toda a família, ela vivia e labutava no campo. Prestava serviços na indústria do açúcar, embora, pela disposição pessoal e beleza dos atributos físicos, e se o freio moral não lhe obstruísse, pudesse muito bem ser uma quenga valorizada. Até mesmo uma das belas coristas de pernas perfeitas — não longas e afinadas, mas médias, rechonchudas, na medida certa —, e dentes alvos, que encantavam as noites dos cabarés cubanos, frequentados em peso pelos norte-americanos na era inaugurada pelo sargento Batista antilhano. Ela ouvira, do seu lugar de nascença, um grito débil em nome da liberdade. Fora quando, em dezembro de 1956, o médico, Dr. Fidel Castro Ruiz, desembarcou na ilha com oitenta homens para iniciar uma guerrilha na região de Sierra Maestra, perto de onde ela morava e trabalhava, promovendo ataques contra instalações militares do Presidente Fulgêncio Batista em cidades como Santiago, Holguin e Guantánamo. A proposta soou mais forte ainda, quase uma convocação, e fez emergir um espírito de rebeldia que ela não sabia que possuía em estado adormecido. Deu-se ao ler o trecho de um manifesto, assinado por Fidel Castro, em que ele anunciava “que está dirigindo a luta até a morte do último combatente contra o ditador Fulgêncio Batista”. Sentindo que atendia aos requisitos conclamados de jovens “cheios de vida, ideais e fé”, e certa de que o governo Batista era sangrento, corrupto e ditatorial, ela correu atrás para se filiar. Passou a portar um lábaro com as cores vermelha e preta do Movimento 26 de julho, que terminou se multiplicando e se agigantando. Contudo, de verdade, ela tentava mesmo era fugir da situação de miséria familiar que vinha de gerações em gerações. A situação, em determinada ocasião, rendeu um comentário cáustico. Ao frequentar uma igreja protestante de denominação metodista, ouviu do pastor que essa situação era uma “maldição familiar, coisa do demônio, esse carma de pobreza miserável que atravessa gerações a fio”. Ela percebeu que, com a guerrilha, teria a oportunidade de mudar de vida para melhor e, contrariando a família toda, se filiou ao movimento. No primeiro momento, a um dos grupos clandestinos que, ao lado do exército rebelde de Castro, ajudou na decomposição interna e, afinal, na derrubada do regime de Fulgêncio Batista. Adquiriu, assim, um propósito e sua pouca história de vida começou a fazer sentido. A ter alternativa e significado, seguindo a direção dos passos de outras mulheres que aderiram à revolução e chegaram a formar pelotões femininos, a exemplo do “Mariana Grajales”, da já famosa Teté Puebla. O seu corpo, rijo, enrijeceu-se mais ainda com as atividades físicas forçadas. As longas caminhadas; as subidas nas montanhas para fugir das forças de Batista; o desbaste da mata para abertura de trilhas; a abertura de poços para encontrar água potável e o galgar ligeiro de árvores para apanhar frutos silvestres comestíveis (ela mesmo dizia ter “pentelhos rijos”), tudo isto a deixou ainda mais determinada e corajosa. Ela não era apenas uma “mulherzinha” da praia, mas sim uma guerrilheira pronta. Presentemente, fazia parte das Milícias de Tropas Territoriais que se somavam às forças do exército regular em missões de vigilância e combativas, atuando sob as ordens do comandante revolucionário Che Guevara, desde que estava lotada na Província de Pinar Del Rio, na região de El Sabalo.
Graciela Chica Marcolino Bragante, nasceu meiga, feliz e vibrante, mas foi endurecida e tornada triste, coração rude e forte, pela vida. A começar pela vida difícil que os pais — na verdade, a família toda — levavam. Os seus familiares trabalhavam em demasia, de sol a sol no meio dos canaviais ensolarados, sofrendo com o calor e a queima da pele, sem direitos reconhecidos e com pouco pagamento em troca. O que recebiam era completamente insuficiente para a sobrevivência digna, a ponto de necessitarem, muitas vezes, se alimentarem de restos de comida. Não tinham nenhuma esperança de melhoria pessoal e ascensão social. Ela odiava se imaginar passando a vida como as demais mulheres da vila de onde viera ao mundo. O que significava, sempre, parir um filho atrás do outro para fornecer mão de obra barata para a cultura da cana-de-açúcar; envelhecer mal, cheia de doenças; engordar; perder o marido para mulheres mais jovens; ver os dentes sumirem da boca. Afinal, depois de pouco tempo, morrer na miséria total, deixando como herança um rastro de dor que se projetava como promessa firme de continuidade para o futuro sombrio. Ela queria algo mais! Como começar? Viu como caminho único o alinhamento com o movimento revolucionário de Fidel Castro, indo de logo para a linha de frente adulta, suprimindo a fase no exército juvenil do trabalho que lhe foi oferecida. Na atualidade, sonhava passar a integrar as forças armadas regulares, garantindo uma estabilidade que a milícia informal não trazia. Depois, ao se integrar no movimento armado, viu e participou de fatos e situações que cimentaram ainda mais o sofrido coração dela, independentemente de qualquer ideologia. Não tinha estofo intelectual, ou mesmo pessoal, para adquirir consciência de que os atos rotineiramente praticados poderiam ser movidos, no automático, por um sentimento de crença que pairava acima deles próprios, o que os tornava completamente aceitáveis, qualquer que fosse a natureza. “Matar”, para ela, era apenas matar. Não entendia por que alguém imaginaria que tal ato se tornasse algo bem menor, desde que praticado em nome, por exemplo, do povo, da revolução, do bem público ou do socialismo. Jamais viraria uma ativista política conscientemente ideológica, ou mesmo doutrinária. Não tinha um coração socialista e nem capitalista. O seu era sofredor e solidário com a dor alheia. A necessidade de sobrevivência, a autodefesa, a vingança, o ódio, julgava ela, explicavam bem melhor o que tinha de fazer do que essa coisa complicada de ideologia socialista ou comunista. “Uma coisa é certa”, dizia ela, “todo mundo igual, ninguém vai ser nem a pau”. Não entendia a tranquilidade e firmeza com que muitos dos seus companheiros, como, por exemplo, o comandante Che Guevara, levava ao paredón os prisioneiros, levantando apenas a bandeira da política partidária ideológica, como se não tivesse coração batendo no peito para sofrer, mesmo na intimidade solitária do ser.
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Recentemente, presenciara uma mãe aflita se ajoelhar aos pés de Che Guevara e lhe pedir pela vida do filho que se encontrava preso como contrarrevolucionário. Ele, tendo perguntado o nome do filho dela, disse, ordenando aos subordinados:
— Não vamos alimentar os sonhos de uma pobre mãe! Matem logo o filho dela, Gustavo Calderón, e devolvam o corpo para as honras finais familiares.
Nesse mesmo dia, 16 de abril de 1961, Graciela Chica Marcolino Bragante e companheiros estiveram muito ocupados na sua lida de trabalho. Desde o último ano, após as múltiplas e sucessivas explosões terroristas ocorridas em 4 de março de 1960, que destruíram, no porto de Havana, o navio mercante francês La Coubre, carregado de material bélico para o país, a vigilância havia sido reforçada em Cuba. Visava coibir as frequentes queimas de canaviais, os ataques às refinarias, as violações do espaço aéreo e das águas territoriais cubanas por embarcações piratas. Foi assim que, nesse dia, no começo da tarde, quando se encontrava em vigilância nos arredores de El Sabalo, Graciela Chica Marcolino Bragante recebeu uma denúncia verbal. Dava conta de que elementos suspeitos foram avistados na zona litorânea. Assim, os companheiros se dirigiram urgentemente, montados a cavalos, em direção à área. Eram oito milicianos bem compenetrados dos seus deveres para com a revolução em curso no país.
Deram voltas, durante algumas horas, na estrada principal, fazendo uma ronda do tipo pente fino (iam e voltavam para melhor cobrir o local, paravam e revistavam todos os que encontravam). Depois, se dirigiram em direção à Playa Bailén, conforme indicado por uma placa tosca de madeira, fincada num canteiro central, adornada, artesanalmente, com os desenhos de um sol risonho, um coqueiro altaneiro, um céu azul, um mar de águas límpidas e um imenso peixe da espécie sabalo, de boca aberta. Mal entraram na pista, viram na frente, distante uns cem metros, andando no extremo da estrada vicinal, três homens. Eles olhavam constantemente para a retaguarda, como se estivessem desconfiados de alguma coisa. De longe, pareciam nativos da localidade, exceto pelo fato de portarem equipamentos de pesca requintados, além de bornais e pesados alforjes de couro, não usuais na região.
— Parem! Parem! — Disse Graciela no comando dos milicianos, que frearam os cavalos, inopinadamente.
Falou, mais:
— Vamos abordar aqueles três com muito cuidado. Não sabemos quem são.
Açulados pelos cavaleiros, os animais ajuntaram os pés, apertaram o passo e começaram a trotar fogosamente em direção aos viandantes. Os milicianos tomaram o cuidado de ir se separando, na forma de leque, para um possível cerco acaso necessário.
Antes de se aproximarem por completo, foram recebidos com tiros de pistolas sacadas dos alforjes e disparadas profissionalmente, com os três abordados abrindo fogo de joelhos, na posição adequada de mira eficaz. Quatro dos milicianos cubanos foram atingidos nas cabeças e morreram antes de tocar o solo, como demonstração da pontaria certeira dos atiradores. Um quinto cavaleiro foi lançado ao chão pelo animal desembestado, ferido no olho. Terminou sendo atropelado gravemente pelo próprio cavalo e morreu também, na hora. Entretanto, a esta altura, os outros três milicianos ainda vivos (inclusive Graciela), cavalgando, disparavam seguidas e imprecisas rajadas de FAL, mirando os atiradores na linha estacionária embaixo. Dois dos atiradores caíram baleados e um terceiro, ferido, se embrenhou na vegetação litorânea pejada de verde, nascida na areia, que circundava a costa. Foi perseguido e dominado, quando encontrou pela frente um mangue que atrasou os seus passos. Não poderia escapar. Sangrava muito, atingido fatalmente no abdômen. Na frente dele se descortinavam apenas tabuleiros costeiros, sem qualquer possibilidade de esconderijo eficaz.
O interrogatório começou.
— Quem são vocês? O que sabe a respeito das explosões do navio La Coubre — indagava, como havia sido instruída, Graciela, ameaçando-o com a coronha do fuzil.
— Ve a tomarlo en el centro de tu trasero, hija de puta — respondeu o prisioneiro.
— Ah! Temos um prisioneiro gentil — disse Graciela, forçando um riso e, na maior grossura, aplicou nele uma coronhada de raspão, desferida com o fuzil inclinado (não era para matar), que facheou o osso do crânio por cima do olho direito e deslocou por completo carne e sobrancelha. O pedaço de carne ficou dependurado na face e ele “apagou” os sentidos.
Quando o prisioneiro foi acordado, minutos depois, estava amarrado, deitado e completamente imerso no mangue. Restava de fora apenas a cabeça suspensa por um cepo de madeira, como se fosse um travesseiro duro, plantado no lamaçal. Um dos milicianos, junto de uma lata de querosene contendo as cabeças já retiradas dos dois outros elementos abordados, portava uma pá. A cena permitia imaginar que o detido estava prestes a ser enterrado vivo no mar de lama fedorento, cheio de caranguejos e outros crustáceos.
Graciela falou, ríspida:
— Todos os documentos que encontrei são cubanos, mas você não me engana. Vocês são americanos, “los dueños del mundo!”. Eu ouvi vocês falando a língua dos americanos.
— Não! Não! Somos cubanos!
— Me enrole, que eu estou com frio — e Graciela removeu o cepo de madeira com o pé e pôs no pescoço dele, fazendo-o afundar a cabeça na água pastosa do mangue. Só liberou quando o rosto apavorado dava sinais de última parada no final da linha.
Imediatamente, tão logo ele se recobrou, ela fez menção de desferir outra pancada com o fuzil, quando o prisioneiro, já completamente dobrado quanto à vontade, disse:
— Não! Não! O que vocês querem saber?
Com a voz demonstrando sacrifício, começou a falar incentivado, ainda mais, pela promessa sem conteúdo dos milicianos de que o levariam ao hospital para tratamento médico. Sim, ele falou, os documentos eram falsificados. Dos três, um deles era norte-americano de origem latino-americana e os outros dois eram cubanos de nascimentos, exilados nos Estados Unidos. Todos trabalhavam para a CIA. Ele se chamava, segundo informou, Raul Quezada Morales e era da República Dominicana, mas naturalizado norte-americano; morava na Flórida e lidava com segurança especializada. Revelou os nomes dos companheiros mortos e de diversos outros que atuavam na Ilha sob o controle da CIA. Positivo, foram treinados na base da CIA na Sierra Madre de Chiapas, na costa da Guatemala e, também, em Belle Chasse, Nova Orleans. Positivo, obtinham apoio em solo cubano da Central Intelligence Agency (CIA) e de agentes do ditador dominicano Rafael Trujillo. Contavam também com o apoio da Nicarágua. Sim, os ataques aéreos ocorridos no dia anterior partiram do campo de aviação Rayo Base em Puerto Cabezas, na Nicarágua, tendo sido realizados por cubanos dissidentes, treinados pela CIA, objetivando a preparação da invasão por terra que estava prestes a ocorrer. Não, não sabia o dia certo do ataque à ilha, mas seguramente iria ocorrer em momento próximo, desde que os atos preparatórios começaram há muito tempo. Le Coubre? Não, não sabia nada do ataque ao cargueiro Le Coubre, apenas ouvira comentários de que teria sido realizado por agentes da CIA, infiltrados desde a partida do navio no porto de Antuérpia, na Bélgica. O que faziam na área de El Sabalo? Estavam — afirmou — esperando reforços, mantimentos e informações de navio que ficaria fundeado na Bahia de Cortés e tentaria aportar na região da Playa Bailén.
Estava com a vida se esvaindo, mas ainda dotado de lucidez suficiente para ouvir um dos milicianos perguntar:
— Vai levar a cabeça desse aí também? Para Che Guevara ver?
Munidos das informações obtidas na marra, os milicianos sabiam o que procurar. Tentaram incessantemente contato com o comando em Pinar Del Rio para pedir instruções e reforços, mas não conseguiram comunicação eficaz. Apesar disso, e do número reduzido, foram movidos pelo ímpeto e, agora, acompanhavam a movimentação noturna do Santa Ana. A embarcação estava parada na frente da Playa Bailén, com os motores desligados, as luzes externas apagadas e as internas, reduzidas ao mínimo necessário. Os vigilantes, atentos, chegaram a ver o navio ainda no começo da noite, quando ele adentrou, cauteloso, na Bahia de Cortés; e depois, já sob o brilho dominante da lua cheia, viram-no lançar âncoras defronte, a trezentos e cinquenta metros da Playa Bailén, segundo informavam os instrumentos a bordo. A navegação em águas da Bahia de Cortés estava prevista para acontecer lá pelas vinte e duas horas, já com a noite caída e totalmente no escuro, mas os invasores planejaram errado e esqueceram a diferença de fuso horário de quatro horas. Desse modo, entraram nas águas calmas e azuis ainda sob a luz do sol que, apesar do declínio, ainda permitia que fossem avistados da terra pelos milicianos alertados. Os navegantes, invasores, também não consideraram o equinócio de março, que inaugurou o período de lua cheia, razão pela qual também ficaram visíveis à noite.
Quando os milicianos viram três botes infláveis serem arriados na água, tentaram mais uma vez contato com o comando, porém, não obtiveram êxito. Os possantes botes se dirigiram à terra firme, ao que lhes pareceu, para melhor reconhecimento e facilitação da aproximação e desembarque. “Os americanos estão desembarcando, os americanos estão desembarcando, os americanos estão desembarcando, câmbio”, gritava Graciela no fone do rádio portátil, certa de que estava em um esconderijo perfeito, e que o pessoal do navio não tinha a menor ideia da sua existência em terra firme.
Entretanto, ela estava completamente enganada.
Os milicianos estavam captando os sinais de rádio do navio, mas não se deram conta de que o tráfego das suas mensagens poderia também estar sendo acusado a bordo do Santa Ana, e por equipamentos de comunicação muito mais poderosos e modernos, o que efetivamente vinha ocorrendo. Os norte-americanos captavam a frequência deles com muita perfeição, e estavam certos de que o sinal vinha da própria praia à frente. Tanto é que esse primeiro desembarque dos botes ocorreu objetivando localizá-los e neutralizá-los.
Os mercenários do navio, guiados por três agentes da CIA, tendo Steven Montefeltro à frente, vieram de grupo. Eram trinta e seis combatentes distribuídos nos três botes, bem armados e bem apetrechados. Já desceram na praia, se espalhando, silenciosamente, em subgrupos de dois, pretendendo fazer um cerco no perímetro com raio estimado de mil e quinhentos metros, que iria se estreitando paulatinamente, conforme estratégia traçada. Quando os milicianos perceberam o movimento de manobra, já estavam cercados, embora ao longe, desde que ainda não haviam sido vistos. A única coisa a fazer, desde que julgaram impossível romper o cerco, uma vez que, além da luz da lua, os desembarcados portavam lanternas portáteis, era se esconder entre a vegetação costeira e selvagem, torcendo para não serem localizados. Graciela deu instruções para eles se enterrarem na areia e permanecerem em silêncio. Com alguma sorte, poderiam se safar. O rádio foi desligado por completo.
No entanto, foi ela mesma que não aguentou a pressão e explodiu trinta minutos depois. Um dos mercenários em busca apareceu bem perto da moita em que ela se embrenhou, ao lado de uma parelha de casuarinas, e começou a olhar meio displicentemente para a banda dela, embora sem conseguir ver nada (nem sequer estava apontando a lanterna para o local). Ela, muito nervosa, no limite do controle, pensou que tinha sido descoberta e mandou bala, pegando o mercenário de surpresa e de jeito. Então, o tempo se fechou para ela e os seus companheiros. Alertados, os demais mercenários acorreram ao local e uma fuzilaria de guerra começou. Agora, eram trinta e cinco contra três, e, ao final de alguns minutos, dois dos milicianos jaziam mortos e Graciela fora atingida na coxa e no flanco esquerdo. Fingira-se de morta, esperando não receber mais balaços, contudo, o que a salvou, no primeiro momento, foi que os mercenários estavam instruídos a não atirar em corpos de feridos ainda vivos e imobilizados, que poderiam ser utilizados para obtenção de informações forçadas.
Foi assim que Graciela Chica Marcolino Bragante caiu nas mãos assassinas de Steven Montefeltro. Ele a levou arrastada pelos cabelos para o bote e depois para o navio. Levou, ainda, a lata de querosene contendo as cabeças dos três agentes da CIA. Logo ao chegar na embarcação, imediatamente a torturou fortemente até a morte. Contudo, obtivera apenas informações desencontradas e sem maior importância.
Embora ferida, sangrando, prestes a desmaiar, usando apenas calcinha puída, rendada, de algodão natural, e com os fartos peitos desnudos, ela foi amarrada pelos pés e algemada pelas mãos. De improviso, foi posta em pé com os braços levantados, presos no teto de aço da dependência apertada do navio, utilizada como escritório pelos agentes da CIA. Quando não aguentava e arqueava o corpo para baixo, sentia os pulsos quererem se deslocar do antebraço. Arfava, respirava forte pelo nariz e as narinas subiam e desciam. Sofria, mas os olhos, apesar de pulsarem sem controle, eram ainda desafiantes e demonstravam um resquício de força interior que parecia inquebrantável. Percebia-se existir uma indevida contradição no ambiente. Entre o barulho calmante e suave das águas lá fora, suavizado, ainda mais, pela brisa que percorria faceira a superfície do mar e entrava amena pela vigia da escotilha do navio, com o ar pesado da sala, sobrecarregado de densidade pelo medo, a dor, a ameaça e a violência. O ambiente fedia a sangue, ao qual logo em seguida seria acrescentado golfadas de vômitos, micção involuntária, fezes externadas por conta de esfíncter dilacerado, gemidos, gritos, dores e morte. Então, iria feder a azedo do inferno.
O arrojado funcionário da CIA, Steven Montefeltro, que, ao lado de outro agente, ocupava um banco postado ao lado da mesa da pequena sala, tomara o cuidado de dizer a Graciela, antes de começar os “trabalhos”, através de tradutor bem profissional e de voz pausada, quase amiga e confidente:
— Não queremos lhe trazer ilusões, comunista. Não é do nosso feitio. Você jamais sairá desta sala com vida. Olhe bem para o recinto da sua morte, imagine a paisagem lá fora, sinta o cheiro do mar, o barulho das ondas, mas saiba que é uma olhada de adeus, pela última vez. No entanto, você poderá morrer com ou sem sofrimento. A escolha é sua! Precisamos saber tudo. Você verá que ninguém resiste. Assim pode começar a contar. Quem é você, veio de onde, que faz na vida? Por enquanto, precisamos apenas saber isto. Nada mais.
Ela se mantinha calada. As perguntas foram aumentando e se sucediam sem retornos. Por que arrancaram as cabeças dos agentes? Iam levar para Fidel Castro? Como souberam do desembarque? Estão vindo reforços? Quantos guerrilheiros têm em El Sabalo? Estão seguindo ordens de quem? Qual a sua companhia militar? Quem é o seu comandante? É Che Guevara? Onde ele se encontra? Por que se mantém fechada em ostra?
O olhar dela, silencioso e afrontoso, emitia evidências de que não iria colaborar. Então, Steven Montefeltro, após liberar o tradutor, se levantou e começou a dar fortes gritos — perguntas e mais perguntas — no pé do ouvido dela. Agora, já tinha na mão um pedaço de madeira apanhado a esmo na coberta superior do navio. Começou a espancá-la pelo lombo das costas e nádegas. No começo, a cada pancada, ela respondia com palavrões em espanhol e um olhar crispante de ódio. Depois, eram apenas choros e gritos dilacerantes, que foram se esmaecendo de tom. Após uma sessão de duas horas de torturas, o funcionário americano se cansou e saiu para tomar um ar fresco e fumar um cigarro Lucky Strike (só fumava destes, Lucky Strike Means Fine Tabacco).
Voltou vinte minutos depois e cutucou o corpo inanimado. Foi quando viu escrito o nome “Fidel” na parede do navio. Surpreendeu-se! Ela escrevera, com o próprio sangue e extrema dificuldade, o nome de Fidel na parede de aço do navio, usando, ao que lhe pareceu, os cotovelos. Enlouqueceu de ódio e disparou mais pancadas. Quando pareceu que ela acordou levemente, ele virou as nádegas dela para si e empurrou no ânus o pedaço de madeira, sentindo o rasgar de carnes moles. Retirou, botou ela para cheirar o pedaço de pau sujo de merda e sangue e voltou a bater por todos os lados. Depois, parou, aguardando o finalizar dos estertores da vida. Alguns longos e dolorosos minutos se passaram. Após soltar um urro buscado com muito esforço no seu interior, ela expirou para sempre, deixando por todos os lados as provas sujas do acontecido. E apenas uma testemunha: o seu próprio algoz impiedoso.
Menos de cem horas depois, o desembarque hostil havia sido completamente rechaçado em toda ilha de Cuba, e grande parte da força invasora estava morta ou presa. Entretanto, o Santa Ana conseguiu se evadir com quase todos os passageiros ilesos. Isto porque lançara âncoras em localização geográfica de fácil retorno e não frequentou os locais de combates acirrados. Ademais, o local previsto para ocupar em terra era de difícil acesso, quase intransitável, de maneira que correriam poucos riscos caso tivessem aportado em peso. Enfrentaram, como força de revide, apenas uns populares vacilantes, acovardados e precariamente armados, que pareciam estarem sendo forçados à luta em obediência à ordem determinada pelo comandante da ilha. Ficaram nas margens dando gritos e demonstrações de força. Certamente dizendo “Fora, ianques”.
Amuados, frustrados com a campanha militar derrotada, Steven Montefeltro e os demais companheiros da CIA ouviram, no rádio do navio que singrava o mar, um vitorioso Fidel Castro afirmar para o mundo que Girón foi a “Primera derrota del imperialismo en América”.
— Canalha! — Vociferou um furioso Steven Montefeltro, dando vazão aos sentimentos que desbordaram para exprimir, em sequência, um encadeado de outros impropérios retumbantes. Estava bêbado, armando-se de coragem, ainda se lembrando de Graciela Chica Marcolino Bragante, cujo corpo foi lançado ao mar (chegou a pensar em seccionar e dissolver em ácido para melhor desaparecer), e se sentindo um bárbaro sujo, apesar de ter tomado três banhos. Ainda sentia o odor dela, uma mistura de beleza, sangue, dor e merda.
Contudo, naquele momento das blasfêmias proferidas, ele não se referia a Fidel Castro, e sim, ao presidente democrata norte-americano, John F. Kennedy, recentemente empossado no cargo. Pronunciava vitupérios contra o seu governo e contra as “covardes” forças armadas do seu país. Para ele e os demais navegantes, desolados com o rechaço, a derrota não foi do imperialismo, não foi dos Estados Unidos e nem tampouco da democracia. Foi, sim, uma derrota dos políticos bandidos, especialmente do vacilão John F. Kennedy, apoiado pela máfia, que havia autorizado com limitações inadmissíveis o ataque decidido e planejado pela CIA, desde a administração anterior do presidente Dwight Eisenhower. Efetivamente, John Kennedy, que estava há apenas três meses no cargo, apesar de ter liberado a operação cujos atos preparatórios já estavam em andamento há muito tempo, permitiu a realização apenas de maneira camuflada. Não fora “homem suficiente”, nas palavras textuais de Steven Montefeltro, para assumir por completo a operação e utilizar efetivamente as forças armadas norte-americanas no embate, especialmente a Força Aérea. Temia, hipocritamente, envolver os Estados Unidos abertamente na invasão da Baía de Los Cochinos.
No final do embate, Kennedy, atacado pelos dois lados — cubanos e americanos — também se sentiu traído pela CIA. Esta lhe assegurara que bastava o início da invasão e o povo cubano se associaria para expulsar Castro, o que não aconteceu. Deu-se o contrário, o povo se levantou a favor de Fidel Castro. Como resposta pelo prognóstico errado, Kennedy exigiu a renúncia do diretor da CIA, Allen Dulles, muito popular entre os empregados da agência, e que fora vitorioso, anos antes, em 1954, com a invasão da Guatemala. Naquela oportunidade, a CIA afastara o presidente democraticamente eleito, Jacobo Árbenz Guzmán, acusado de reformas comunistas sob a influência soviética. Com a invasão, nas palavras de Allen Dulles, impediu-se que a Guatemala virasse uma “praia soviética na América”. Nas quatro décadas seguintes à invasão da Guatemala, mais de duzentos mil guatemaltecos morreriam ou desapareciam, muitos deles, enterrados em covas clandestinas nas plantações de bananas dominadas pela United Fruit Company, por conta do conflito político-civil inaugurado com o rompimento violento da vontade das urnas. Além de exigir a renúncia de Allen Dulles, John Kennedy impediu a ascensão de seu círculo mais próximo na agência, causando celeuma na organização governamental mais soberana e intocável naquele período. “Botara fumaça no vespeiro. Cutucara o cão com vara curta. As consequências funestas, para ele próprio, não demoraram a surgir”, escreveu José Marcelino da Silva, como se fosse um profeta dos fatos passados e conhecidos, sobre a atitude vigorosa de Kennedy a partir da derrota da invasão de Cuba.
Steven Montefeltro levantou-se da mesa. Largou o motorádio portátil, alimentado de pilhas, falando sozinho. Foi até o convés aberto para fumar e tentar espairecer com a paisagem levemente fresca e o suave balançar das águas sonolentas do Caribe, que contrastavam com seu interior tempestuoso. O navio navegava ainda na baía, voltando apressado para a costa da Guatemala sob o controle dos norte-americanos, transportando passageiros arrasados, mas também aliviados por terem se livrado com vida da missão fracassada. Steven Montefeltro, não! Só tinha lugar no peito para a fúria e o fogo e, claro, o sentimento dominante de impotência que o acometia. Pela segunda vez, segundo entendia, negaram a ele o direito de vencer, de ostentar bem alto a bandeira norte-americana após pisar no pescoço do adversário. Na primeira vez, rememorou com pesar, não tivera oportunidade sequer de estrear no cenário de guerra contra as forças do Eixo do Mal. Agora, apesar da expectativa, de todos os esforços, de tanta iniciativa, programação e trabalho, foi novamente limitado pela atitude covarde do presidente democrata. Então, indagou-se. O que se poderia esperar de um playboy rico e que se elegera por força do dinheiro do pai? Kennedy nunca o enganara. Sempre achara muito suspeito, até forçado, o reconhecimento e a certificação da condição de herói obtida por ele, por conta de atos praticados em 1943, na grande guerra, em razão do que fora agraciado com honrosas medalhas. Primeiro, com a medalha da marinha e dos fuzileiros navais, justificada com a afirmação lisonjeira de que a sua “coragem excepcional, força e liderança ajudaram a salvar a vida de muitas pessoas e manter as melhores tradições da marinha dos Estados Unidos”. Kennedy, a acreditar nos relatos oficiais, teria se sobressaído no litígio pela capacidade de bom nadador e pela iniciativa corajosa de salvar inúmeros colegas, também vítimas, assim como ele, de naufrágio decorrente de fogo inimigo. Isto, contudo, não era muito crível em relação a uma pessoa acometida com as doenças congênitas que ele portava, inclusive problemas de coluna, segundo tinha conhecimento, conforme informações que obtivera fuçando nos arquivos do serviço secreto. Bem assim, fora condecorado com a medalha de vitória da Segunda Guerra Mundial. Tudo aquilo que não fora permitido a Steven Montefeltro, que tivera apagada a chama de glória logo no nascimento, pois nem sequer alcançara o direito de ir à guerra de combates renhidos, estabelecendo condições suficientes para concorrer a uma honraria valiosa.
Há muito que ele não acreditava e não gostava de políticos. Não tinha dúvidas. O destino da nação não deveria ser entregue a uma classe política “plantonista”, ascendida em eleições, que vivia em função do poder e do dinheiro, ostentando luxo, vaidades e vicissitudes diversas. “Não existem carneiros entre os políticos, só lobos vorazes”, costumava repetir. Secundava: “O amor pela pátria vem dos anônimos, aqueles que trabalham a fio para sustentar a nação e assegurar o vitorioso modo de vida norte-americano, da justa paga pelo esforço desprendido, e da liberdade de escolhas em todos os aspectos”.
Montesquieu, quando escreveu o Espírito das Leis (L'Esprit des lois, 1748), traçou a vitoriosa teoria da separação dos três poderes, e não pensou em um quarto poder, mas ele, Steven Montefeltro, pensara, sim. Como complemento das doutrinas liberais conservadoras. Pensara, não! Poder-se-ia afirmar que ele constatou o que já existia, escondido. Na sua opinião, os três poderes formalmente constituídos são absolutamente insuficientes. Existe algo envolvente por trás deles, como se fosse o óleo de um motor a azeitar as peças movidas na engrenagem. Trata-se do poder de decidir, de aplicar, que paira acima de todos, e se mantém ativo, mesmo com a troca de cadeiras e o rolar de cabeças das administrações. Quem domina essa discricionariedade das sombras, essa essência invisível; quem molda a vontade dela é quem manda de verdade. Reside aí a verdadeira fonte da força, que elege e destrói líderes visíveis e se perpetua oculto, mas no controle. Ele imaginava que sabia como participar do regimento dessa orquestra, mesmo atuando por trás do biombo, na secreta comunidade de informações.
Esta foi uma das razões pelas quais ele saiu do FBI. A agência era sujeita a muitas limitações legais, tendo que recorrer a planos mirabolantes e atividades extras para bem cumprir o seu papel. Tudo era muito enfadonho, os resultados não eram rápidos. Investigações e mais investigações, muitas delas infindas, inconclusas e inacabáveis, e tudo sem termos definitivos por parte dos próprios agentes, sempre dependentes das análises vindas de órgãos superiores, inclusive de pareceres da Academia de Quantico, Virgínia. Já na CIA, possuía maior liberdade e independência de ação. Ele era muito mais ele! Ademais, na CIA, em Langley, os dotes que ele possuía de docente poderiam ser muito mais valorizados, permitindo-lhe dar os primeiros passos na seara teórica, atuando como ideólogo estribado no olhar do aparato de informações, o corpo de funcionários mais importante de defesa do Estado. Respeitava, em grau máximo, os homens dos serviços de segurança que se estruturavam à base de dados catalogados e se punham em ação a partir da decifração, procurando inimigos no submundo das conspirações secretas e das manobras sinuosas. Os abnegados servidores que partiam anônimos e sigilosos, na frente de defesa, sacrificando o sangue e a própria vida, fortes no analisar e rápidos no agir. Atirando sempre para matar, percorriam os becos lúgubres e os esgotos venenosos e peçonhentos para tutelar a vigilância dos princípios democráticos e livrar a civilização ocidental do dragão da maldade, permitindo-a viver em segurança, conforto e liberdade de escolhas, nunca ficando para trás na luta pela ocupação do planeta. Livrando-a, muitas vezes, até mesmo do conhecimento do inferno movediço que soltava quentura abaixo dos seus pés.
O crepúsculo se anunciava urgente, dando um espetáculo sem par aos que se encontravam na coberta do navio. O sol avermelhado parecia se enterrar, de bom grado, no horizonte caribenho; as sombras dominavam o céu; a brisa do mar esfriou; as águas se tornaram escuras, despidas dos fachos dos raios solares; os pássaros chilreando, dando volteios acrobáticos, sentiam o fenômeno da natureza na própria pele. A noite antilhana, como sem falta, substituiria o dia infernal. Steven Montefeltro, ansioso, triste, irritado, prevendo dificuldade na hora de dormir, desejou que o mais novo dia viesse logo substituir a noite difícil que por certo teria de enfrentar — e que mal começara — acabando de vez com a angústia que o emaranhava. As horas iriam demorar para passar, concluiu, pesaroso. Lembrou-se de Marceline, explicando para o filho o perpassar do tempo, como se este tivesse vida própria e autodeterminação: “É assim, meu bem! Quando você quer algo, quando deseja muito, o tempo demora para passar. Um minuto de hora de relógio pode parecer um século no seu coração. Quando, no entanto, você não quer nada, está em paz, o tempo voa como um passarinho livre, singrando os ares do céu azul”.
O coração de Steven Montefeltro, porém, não estava apascentado! Longe disso. Estava desorientado, não admitia a derrota, a cabeça fervilhando. Afirmou, para si próprio, “A história está queimando debaixo dos meus pés e está subindo”.