Cocriação é África
Eduardo Loureiro

Cocriação é África

Cocriação é África!

Pode parecer que estou forçando a barra, mas não.

O modelo de mundo e de civilização europeia é o que prevaleceu, e, portanto, rege nossas vidas, já que as Américas foram colônias do “velho mundo”. Uma cultura que se sobressaiu por meio do individualismo. Não por um acaso, acabaram ganhando destaque nos livros de história, sobre tudo os imperadores, reis, rainhas, príncipes, guerreiros, navegadores, pintores, cientistas, teóricos, inventores etc e etc.

E obviamente o individualismo trouxe consigo um grande senso de competição. Afinal, o “eu contra todos” é o imaginário dominante em uma sociedade que reconhece os que se destacam em detrimento dos outros, ou seja, os que superam as expectativas, os que conquistam, e principalmente os que conseguem impor suas ideias sobre os demais.

Podemos notar e sentir as consequências disso no mundo em que vivemos, nas nossas instituições e na forma como nos relacionamos. Hierarquia, privilégio, comando e controle, poder desbalanceado e por aí vai.

Veja, por exemplo, duas instituições onde esse modelo tem se perpetuado: escolas e empresas. 

Na escola aprendemos desde muito cedo o beabá do individualismo. Ter as melhores ideias, melhores notas, ser o melhor aluno da sala, ser melhor do que a grande maioria em avaliações e concursos. Esses são os valores pelos quais as crianças são estimuladas e recompensadas. E o nosso cérebro, com o poder de adaptação que tem, aprende rápido e passa a fazer e refazer a mesma conexão que liga esse instinto, independente da situação vivenciada.

Já nas empresas, bom, não muda muito. Somos recompensados pelos mesmos valores individualistas, o que aparentemente (há controvérsias) deu certo até o início dos anos 2000. Desde então tem ficado mais evidente uma reflexão crítica, no meio empresarial, em relação a esse sistema. Mas convenhamos, apesar da tendência de mudança ter aumentado, ainda é um movimento incipiente em relação a prática da grande maioria das empresas.

A minha atuação hoje está profundamente relacionada a esse movimento de contestação de valores tão arraigados na nossa sociedade. Tem quase 15 anos que cocriação é um princípio central no meu trabalho. O que começou de maneira sutil, com algumas poucas sessões de brainstorming, acabou se tornando um padrão, com a facilitação de processos criativos para alinhamentos, consolidações, geração e priorização de ideias, prototipagens ou definições estratégicas. Tudo feito de maneira coletiva, diversa e colaborativa. Para mim, cocriação passou a ser um conjunto de conceitos, valores e práticas indispensáveis. Foi o design que me mostrou isso, mas foi preciso escavar além da superfície da abordagem, pois design como disciplina (ambiente, produto, gráfico), acabou seguindo pelo mesmo caminho individualista de atuação.

Os benefícios da cocriação são muitos, mas acredito que o principal seja dar as pessoas a oportunidade real de colocar um pouco de si mesmas em algo importante para os lugares em que trabalham. Elas se sentem corresponsáveis pelo que é concebido, diferentemente do modelo tradicional onde as estratégias e ideias são concebidas nos mais altos escalões das empresas e repassadas goela a baixo dos funcionários.

Amante de música que sou, passei a identificar conexões entre os mundos da cocriação nos ambientes empresariais e os estilos que mais gosto: punk, choro, afrobeat e jazz. O jazz, como quase todas as expressões musicais de raízes africanas, traz consigo a essência da colaboração e criação coletiva, com a improvisação em grupo, as famosas jams.

“O BeBop mudou o conceito e a percepção do que a música era. Deixou de ser o ambiente onde havia apenas um líder e virou um ambiente onde todo mundo virou líder e improvisar era a chave. E o século XXI está sendo o BeBop.” Michael Hendrix

Para mim o elemento coletivo do jazz, onde um músico complementa o outro de forma orgânica e articulada, é uma metáfora perfeita do que acontece em uma sessão de cocriação. O resultado final do que é gerado pelo coletivo não tem dono, não tem autor. Um pedaço de cada um está ali, na sua contribuição particular que apartada pode significar pouco, mas em conjunto com o restante forma um resultado singular. 

Ou seja, cocriação bate de frente com os valores que são perpetuados pela visão de mundo ocidental/eurocêntrica. E aí um belo dia, apesar de ter sido estimulado a pensar e agir a partir de uma perspectiva individualista a vida inteira, você é convidado para um workshop e descobre que precisa deixar isso de lado. Essa chave não vira assim de uma hora para outra e não sendo uma mudança fácil para as pessoas, imagina para as organizações. Mas por mais difícil que seja a mudança, abraçar esse desafio tem se mostrado mais e mais necessário e nesse processo a África pode nos ensinar muito.

“A música africana é uma terapia comunitária e de sentido, uma comunhão humanizadora, uma partilha em humanidade.” Meki Nzewi

A essência da cocriação não está no jazz por um acaso. Jazz é um formato de expressão que nasceu dos descendentes dos escravos oriundos das mais diversas partes da África. Foi influenciado por expressões religiosas, culturais e rítmicas que evoluíram no continente africano por várias gerações. E não precisamos ficar somente em um exemplo norte americano. O nosso choro e o nosso samba também descendem das mesmas origens, trazidas por pessoas que foram tornadas escravas. Essas pessoas tinham uma visão de mundo completamente distinta à visão europeia. E nessa visão o coletivo vem primeiro, a partir da participação particular dos indivíduos.

O que me inspirou a escrever esse texto foi o ótimo episódio ‘Complementariedades: Tocando em Roda’ do podcast ‘Nó na Garganta’ da Escola de Choro de São Paulo, no qual refletem exatamente sobre como a visão de mundo africana influenciou a música afro-brasileira e de certa forma está no DNA da música popular brasileira.

Para os povos africanos o formato complementar e colaborativo de suas expressões musicais é um espelho da sua cultura, profundamente apoiada no princípio de coletividade. Aliás, essa não é uma exclusividade africana. Os povos indígenas, que aqui existiam antes da dominação europeia, também tinham os mesmos valores.

Veja que interessante esse trecho do episódio:

“Os músicos tocam em relação, como engrenagens que se acionam, onde cada nota que entra no espaço da outra, como que pede a próxima nota. A melodia do terceiro músico toca hora notas do plano rítmico de um músico hora do outro, de modo equilibrado soando como resultado da cooperação entre os dois. Esse tipo de característica africana é milenar e a expressão performada de uma tradição de coesão social. Expressa princípios de cooperação, vínculo e imaginação comunitária. Complementariedade entre pessoas, entre trabalhos, entre as ações que se completam em favor do coletivo, onde as partes se somam e se apoiam.

Se isso não é cocriação, eu não sei o que é.

Se a tendência agora é experimentar outras formas de relações, mais integradoras e empáticas e que possam nos munir de valores mais horizontais, coletivos, diversos e criativos, está na hora de procurarmos saber mais de culturas hora negadas, hora esquecidas, hora massacradas pela visão de mundo individualista, que ainda hoje impera. Está na hora de aprender sobre cocriação com a África.

Dudu, adorei as conexões pelos sons!

Maria Luiza Tavares

Sócia-Diretora da Argumento Digital / Trained LEGO® SERIOUS PLAY® Method Facilitator

4 a

Muito bom, Dudu!

Bernardo Araujo

Digital transformation in the AECO industry | Autodesk

4 a

Estou lendo a "African Trilogy", do Chinua Achebe. Baita livro pra entender o processo de atropelamento da cultura européia (no caso britânica) sobre as culturas colonizadas (no caso a nigeriana). Por mais que alguns aspectos da cultura nigeriana sejam completamente repulsivos aos olhos de hoje em dia (machismos, infanticídios, etc.), tem muito disso, do valor da comunidade, nos mais diversos aspectos do dia. Esses livros são tão bons, que começo a ver relação deles com tudo! Tô indicando eles em toda "roda" de conversa.

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