Conversa Fiada #1 - Sandhyadipa Kar
O Conversa Fiada é o novo projeto Do fio da seda e surgiu de um giro completo do conhecimento no espaço infinito de um casulo, conectando universos dançantes, poéticos e criativos, através do encontro com pessoas que admiramos.
Desejamos ouvir suas histórias, conectar nossos saberes sedosos aos seus talentos e belezas, aprender sobre suas vivências e sobre como a seda está presente em seus melhores momentos.
Nossa convidada do Conversa Fiada #1 é Sandhyadipa Kar, bailarina e professora de dança indiana clássica há mais de 34 anos, discípula direta de Kelucharan Mohapatra, aclamado mestre do estilo Odissi.
Usando sempre a dança e sua linguagem universal como instrumento para mobilizar o outro. Mover, transformar, tocar corações e mentes. Sandhyadipa compartilhou uma tarde ensolarada de outono para fotografarmos os saris de seda pura, quintessência do vestuário feminino indiano, no Teatro Fourvière, o mais antigo teatro romano da França e local emblemático de Lyon, onde ela esteve ministrando aulas durante sua turnê pela Europa.
Suas lindas memórias afetivas da seda se entrelaçam às narrativas da dança nesta conversa inaugural.
Eu mesma pratiquei essa dança com muita alegria por mais de 15 anos e é uma honra fazer parte desse movimento, tendo recebido os ensinamentos dessa arte tão sagrada de forma tradicional (ainda que no Ocidente), e podendo hoje atualizar o meu gesto intelectual através deste pas de deux.
Conversa fiada no linguajar comum de uma trama despretensiosa, leve e sedosa. Ou talvez uma conversa cansada, como diz o filósofo coreano Byung-Chul Han citando Handke: um cansaço que confia no mundo. Ao contrário de um estado de esgotamento, ele inspira. Faz surgir o espírito. Rejuvenesce. “As coisas pestanejam, cintilam e tremulam em suas margens… Essa especial in-diferença que concede às coisas uma aura de amizade". Assim, sentar sob o sol do fim da tarde, e curtir falando ou calando uma conversa mole comum. Uma malha fina, um fio etéreo nos unindo.
As fotos foram realizadas pelos parceiros André & Cecília do Fotos em Lyon
Texto por Deborah Rocha, fundadora do @dofiodaseda
Como é a sua relação com a seda?
O figurino usado hoje na dança Odissi é feito 100% de seda. Então, em primeiro lugar, a conexão entre dança e seda se dá através da natureza: a seda proporciona uma sensação confortável para o corpo. Em segundo lugar, as cores trazem simbolismos míticos e reforçam o clima da dança. Por fim, o design tem um papel importante. Os saris tecidos para a dança Odissi podem ser identificados por formas triangulares no barrado, chamado “kumbha”, palavra que significa “templo”. Esse ícone nos reconecta com a tradição das "maharis", mulheres altamente valorizadas na sociedade hindu e que por volta do século XII incluíam a dança como oferenda a Jaganatha nos templos de Orissa. Quando eu danço no palco hoje, eu carrego exatamente essa mesma tradição, e isso me dá uma sensação maravilhosa de conexão com as minhas raízes milenares. Há um sentimento de orgulho de vestir criações de tecelões da minha cultura e do meu Estado-natal, Orissa.
Como se dá o seu processo de criação do figurino?
Suponhamos que eu vá me apresentar no palco e eu queira um figurino com imagens de bailarinas bordadas no barrado. Eu preciso encomendar um sari feito à mão por tecelões de Sambalpuri e que será exclusivamente feito para mim por um costureiro muito especial da cidade de Cuttack. Na época [meados dos anos 50], esse costureiro foi guiado pelo meu Guru [Kelucharan Mohapatra] para mostrar a ele como melhor adaptar aquele enorme tecido de seda aos movimentos, por vezes extremamente acrobáticos, do Odissi. Antes, usava-se o sari do mesmo jeito que as "maharis" chamado "kachha". Eu fui inicialmente ensinada a me vestir dessa forma pois não existia costureiro, mas logo me adaptei às inovações. Os primeiros figurinos do Odissi tinha um tecido em forma de leque preso na frente da cintura, que se abria até a altura dos joelhos quando o bailarino se sentava em "chouka" [postura básica desse estilo de dança, que representa o aspecto viril com braços e pernas dobrados em en dehors]. Hoje em dia, o figurino se tornou ainda mais prático, composto por top, calça e leque já integrados, este último tendo evoluído para uma forma lateral que enfatiza ainda o "tribhanga" [postura básica, característica do estilo Odissi, que representa o aspecto gracioso através de três dobras no pescoço, torso e joelho]. Toda a beleza do sari é destacada ao mesmo tempo em que enaltece a figura do dançarino.
De que forma você se conecta com as cores?
A cor tem uma importância muito grande no Odissi, uma dança que é mitologicamente associada à Krishna. Nós dizemos “pita basana” em referência à descrição poética de como Krishna adorava a cor amarela. Então quando representamos Krishna no palco, damos preferência a saris nesse tom. E Radha, por ser mulher, vai gostar de tons de vermelho para evidenciar o feminino.
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De que forma o universo da seda entrou na sua vida?
Eu tinha apenas 8 anos quando eu comecei a praticar Odissi na casa do meu guru. Eu usava uma blusinha e uma saia abaixo do joelho. Me lembro do meu guru não ter gostado muito e alguns anos depois me pedir para começar a usar o sari. Foi quando eu pensei: “Meu Deus! Me tornei uma adulta, não sou mais uma criança!”. O sari é o ícone supremo da conexão com o têxtil e com a tradição da cultura indiana. Enquanto criança, eu me lembro de não hesitar nem um segundo em colocar o sari. Fiquei ainda mais interessada pela dança do que antes e me senti muito orgulhosa de mim mesma. Em pouco tempo me tornei uma expert em como dobrar, enrolar o tecido e fazer as pregas da melhor maneira para a dança. A sensação daquele tecido no meu corpo, a maneira tradicional de usar o sari...aquilo tudo me empolgou muito e me fez sentir uma verdadeira dançarina! Para mim, era como se eu representasse muito mais a tradição do que se estivesse usando um simples saiote. Dentro de mim eu senti: “Agora atingi o status de dançarina”.
Você mencionou que a seda teve um papel importante no seu casamento. Conta um pouco dessa história.
Sim, o sari de seda tem tanta graça no corpo da mulher! Ele evidencia os seus maneirismos, a sua graciosidade, mostra o que chamamos de sensibilidade da mulher, que se torna mais sensual e bela. Por toda a minha vida vi minha mãe colocando o véu [a ponta final do sari] para cobrir a cabeça. Em respeito a essa forma tradicional de portar o sari, ao me casar, por 15 dias eu continuei segurando o véu sobre minha cabeça. Eu adorava aquele gesto de segurar o tecido e sentir: “Eu sou uma mulher recém-casada!”. Aquele simples movimento de cobrir o rosto com o véu me tornava muito romântica perante o meu marido. Colocar o véu, segurá-lo e deixá-lo cair...colocá-lo de novo. Esse sentimento era verdadeiramente muito romântico, eu me sentia bela e coberta de frisson!
Já imaginando a hora de tirar o véu...(risos)
Sim, mulheres de uma geração mais antiga como minha mãe provavelmente tinham o véu cobrindo o rosto até a altura do pescoço, quase cobrindo o colo. Ou seja, quando o pai dela fosse vê-la pela primeira vez teria que levantar todo aquele tecido para poder olhá-la nos olhos. Isso dá um toque muito sensual, sutil e romântico para todo esse sentimento de tradição. Isso sim é o que eu chamo de romance.
Quando você se deu conta de que queria ser dançarina?
Na Índia, quando nasce uma menina, os pais a presenteiam com uma tornozeleira de prata com pequenos sininhos. Eu me lembro que aos 8 anos eu adorava tanto o tilintar da tornozeleira que o meu tio me apelidou de “Jumri”, palavra que imita o “jum jum jum” dos sininhos. Um dia, o meu pai, ao me observar bater os pés num estrado de madeira, se sentou perto de mim e me perguntou: “O que você quer ser quando crescer?”. E eu disse sem hesitar: “Eu quero dançar!”. Quando chegou a hora, o meu pai, que era um músico muito respeitado, me levou para a casa do meu guru, a 20 minutos a pé da nossa casa. Eu mal sabia que ele fosse tão excepcional. Aos me desenvolver no Odissi, aos poucos fui compreendendo e hoje, depois de todos esses anos, eu penso a quão sortuda eu fui de ter sido apresentada na mais tenra idade a essa arte e de ter podido trabalhar ao lado daquele grande mestre.
Podemos dizer que a dança indiana tem uma abordagem holística da vida (unindo corpo, mente e espírito) e não algo só físico?
Sim, é uma dança muito espiritual originada nos templos. Mas quando o Leste da Índia foi invadido pelo Império Mogol, as mulheres foram tão reprimidas que até hoje os homens guardam aquela atitude e a dança é ainda considerada uma arte menor que não pode ser mantida como uma profissão por uma mulher. Aos 12 anos anos, eu já estava em turnês com o grupo do meu guru e da aclamada dançarina Sanjukta Panigrahi. Entre 12 e 25 anos eu estive muito ocupada dividindo o meu tempo entre a dança e os meus estudos em psicologia. Foi realmente um período incrível! Kelucharan Mohapatra era um artista que atingiu níveis máximos de criatividade e ele não me considerava uma garotinha de 12 anos, então eu sentia a responsabilidade e uma certa pressão de me aperfeiçoar até alcançar um alto padrão de excelência. Isso me ajudou a chegar no auge da minha carreira com toda energia e disponibilidade da juventude. Eu venerava o meu guru naquela época e até hoje o respeito da mesma forma que venero os meus pais. Essa jornada para mim vai ser vivida até o dia em que eu morrer pois é uma grande parte de mim, eu vivo com isso, eu sonho com isso e respiro dança!
O que te move?
Depois de todos esses anos, do processo de ensino que eu vivenciei e das pessoas que eu conheci, eu sempre pensei que o processo de aprendizagem nunca termina. Depois de mais de 34 anos de carreira na dança como bailarina e como professora, eu basicamente nunca me canso pois eu sinto uma urgência de continuar corrigindo, evoluindo e apreciando cada mínimo gesto que vem até mim diariamente. O fato de continuar aprendendo mantém essa chama acesa e me torna uma melhor profissional a cada dia. Eu me sinto bem assim. Perfeição não existe, então eu tento sempre fazer melhor cada dia. Ter dançado desde tão tenra idade com o meu guru foi muito impactante. Eu pude ver de muito perto o seu trabalho árduo e toda a sua genialidade. Ainda hoje eu consigo vê-lo nas minhas memórias e sinto profundamente a sua presença em cada gesto que chega até mim. Mil vidas não seriam suficientes para reverenciar essa arte! Eu regojizo cada minuto em êxtase.