Correção III - Desafios na execução da disciplina
No último artigo eu me propus a tratar o pilar da correção sob duas perspectivas diferentes: com os olhos voltados para o passado, a perspectiva da disciplina ou punição e, com os olhos postos no futuro, a da evolução e aperfeiçoamento dos processos. Avançando na primeira delas, ao tratar desvios de conduta que demandam uma ação disciplinar, precisamos encarar a enorme complexidade deste pilar da função do compliance. A aplicação destas medidas é algo bem mais difícil e grave do que enganosamente possa parecer. Não poucos desafios, obstáculos ou dificuldades, devem ser cuidadosamente avaliados e superados, até que se possa definir e aplicar uma medida corretiva.
Numa fase bem inicial de um processo disciplinar, já podemos nos defrontar com alguns como fragilidades nos controles, amadorismo e má condução dos passos da investigação, possibilidade de testemunhos falsos, falta de um canal de denúncias independente e confiável, de um Comitê de Conduta maduro e isento e a de um mapa de riscos bem construído. Só para citar alguns de uma extensa lista.
Mesmo que os desafios desta fase preliminar sejam superados, muitos outros ainda se apresentarão ao longo do processo. Alguns, decorrentes da cultura, seja do país como um todo, de uma determinada região e, até mesmo, da própria organização. Nessa linha, chamamos ao palco, a tradicional e já bem conhecida cultura do jeitinho, que é muito positiva no geral, mas, no caso em questão, pode ser uma parede intransponível, que acaba por impedir o andamento do processo e sua conclusão. No judiciário, seria o equivalente aos recursos puramente protelatórios que conduzem à prescrição.
Ainda no âmbito da cultura, quem nunca passou por situações difíceis e constrangedoras nas quais surgiram os portadores dos famosos “panos quentes”, a turma do “Deixa disso!”, ou, pior ainda, a que sustenta que aquilo sempre foi assim? Num ambiente em que influentes atores adotam posturas como estas e ainda alegam princípios humanitários, a condução dos processos disciplinares é muito mais lenta e, possivelmente, chegará ao fim de forma muito pouco efetiva, e isso se houver algum desfecho.
Outro grande desafio é o estabelecimento de uma dosimetria apropriada às inúmeras possibilidades de desvios de conduta. Este anda de mãos dadas com o da aplicação de pesos e medidas diferentes, em função do nível de influência daquele que comete o desvio, mesmo que em casos muito similares. A falta de regras objetivas é uma das causas de infindáveis discussões filosóficas amórficas e inconclusivas e, por fim, de penalidades injustas em alguns casos e impunidade em outros.
Mais um obstáculo, que se constitui numa terrível enfermidade, é conhecido pelo pomposo nome de corporativismo. É impressionante a capacidade de articulação de grupos dentro de uma organização para tergiversar e obscurecer determinados processos, o que os coloca num beco sem saída. Empresas com rotatividades muito baixas são bem mais susceptíveis a este tipo de doença, uma vez que laços de cumplicidade tendem a se fortalecer ao longo do tempo, criando vínculos de interdependência muito fortes entre os membros destes grupos.
Além destes, outros desafios como os intrincados aspectos jurídicos e criminais envolvidos, a cautela necessária para evitar a exposição de pessoas indevidamente, os desvios de conduta da própria alta administração - que deveria dar bons exemplos - se interpõem como barreiras numa corrida de obstáculos.
Citei esses exemplos, para que se possa ter uma percepção da grande complexidade deste pilar. Todos estes desafios precisam ser trabalhados e superados para que a disciplina seja aplicada com justiça, de forma adequada, no tempo e na intensidade que cada caso reclama. É neste complexo e tempestuoso mar que o compliance deve navegar para evitar a tão indesejada e maléfica impunidade.