DA SACIAÇÃO DO CONSUMO AO “CONSUMO” DA SOLIDARIEDADE. ATIVANDO AS CONEXÕES, INTERPESSOAIS, ATRAVÉS DA SENSIBILIZAÇÃO E DA REFLEXÃO.

DA SACIAÇÃO DO CONSUMO AO “CONSUMO” DA SOLIDARIEDADE. ATIVANDO AS CONEXÕES, INTERPESSOAIS, ATRAVÉS DA SENSIBILIZAÇÃO E DA REFLEXÃO.


Resumo

Esta produção textual faz uma analogia entre a “especialização do trabalho e a saciação de consumo” - máxima normalmente utilizada para explicar como os mercados evoluem espontaneamente -, e a especialização do trabalho na solidariedade, onde o produto será a solidariedade. Convida o leitor a refletir sobre suas conexões interpessoais e seu papel como agente de mudança, em uma sociedade hiperconectada, marcada pelas transformações, tantos nos aspectos relativos à materialidade quanto à imaterialidade.         


Palavras-chave: solidariedade – sensibilização – coletivamente cuidantes – pessoas especiais.

           Em uma sociedade conectada por smartphones, redes, cabos e imagens, que se revela desconectada de interações profícuas, compartilha-se a solidão. E a pandemia do coronavírus, que se pressupunha reconectaria as pessoas, após sua passagem, levou a comprovação do contrário. Zygmunt Bauman (2001) cunhou este novo tempo, como “tempos de liquidez”, em que os relacionamentos não prosperam, estejam eles na seara pessoal, amorosa e/ou profissional.

Os cabos de fibra ótica, que permitem downloads mais rápidos para resgatar memórias, não geram conexões proximais. E a “tela”, de pele, carne e sentimentos, que ansiava pelo touchscreen, vê-se frustrada e angustiada pela súbita perda do toque. “O toque é a linguagem fundamental da conexão”, defende o professor de psicologia, Keltner Dacher, da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Daí uma nítida tendência ao isolamento, comportamento que traz insensibilidade e distanciamento do próximo, consequentemente o enfraquecimento da SOLIDARIEDADE.

           Assim, relacionar a palavra CONSUMO a este contexto, pode levar o leitor ao ceticismo. Será possível que a palavra – CONSUMO - normalmente utilizada em contextos mercadológicos, possa ter uma relação umbilical com a SOLIDARIEDADE? A mente humana despreza o previsível. Quando percebemos qual é o final da piada, acaba a graça. Não pode haver curiosidade sem mistério; não existe deleite sem surpresa.

Inevitavelmente, quando se fala de saciação de consumo, remete-se a mercado e ao marketing, como atividade econômica e sociológica, consequentemente à indagação de como os mercados evoluem. Peter R. Dickson (in CZINKOTA, 2001, p.26) ratifica que os mercados evoluem espontaneamente, através da especialização do trabalho e da saciação do consumo. Os mercados existem porque:

“... fazemos melhor as coisas quanto mais a fazemos (especialização do trabalho) e ficamos menos interessados em consumir coisas quanto mais as consumimos (saciação do consumo). Junte a especialização do trabalho e a saciação do consumo, em qualquer sociedade humana, e os mercados e o marketing serão criados espontaneamente ...”

  Por intermédio da atividade de especialização do trabalho, são produzidos bens e serviços, e que posteriormente serão distribuídos aos membros da sociedade para consumo. Assim, a satisfação das necessidades materiais (alimentação, vestuário, habitação etc.) e não-materiais (educação, lazer etc.) de uma sociedade, obriga seus membros a se ocuparem de determinadas atividades produtivas.

Dessa forma, a especialização de trabalho solidário, dar-se-á pelo reconhecimento de sermos privilegiados econômico e socialmente para FAZER (pessoas como produtores de bens e serviços); de usarmos esse privilégio para nos solidarizarmos com aqueles que precisam; de escutar as demandas da comunidade a ser beneficiada, pois, pressupõe esta ser qualificada para determinar suas próprias necessidades (comunidade equiparada a um “consumidor”). Assim, quanto mais desenvolvermos a especialização do trabalho solidário, mais pessoas serão “saciarão”. Uma evolução espontânea da SOLIDARIEDADE.

O desafio está lançado! A especialização de um trabalho solidário (como um comportamento espontâneo), para ser entregue aos mais vulneráveis. Para que nossa conduta seja a exteriorização de uma vontade autêntica. Uma sensibilidade à aflição alheia – enxergar-se na aflição do outro. Dessa forma, haverá uma dependência recíproca da especialização do trabalho solidário e do consumo da solidariedade.  

Mesmo que estejamos imersos na desconfiança, na incredulidade, no pessimismo, de que ações individuais não surtirão efeito, quando constatamos que os “... sistemas de valores se estilhaçam e se destroem, enquanto os botes salva-vidas da família, a igreja e o estado são violentamente sacudidos ...”, devemos acreditar que “... o mundo não tergiversou para a loucura e que, de fato, sob o matraquear e ranger de eventos insensatos se esconde um esquema surpreendente e potencialmente esperançoso ...” (TOFFLER, 2001, p. 15).

Na companhia de BEJARANO e FERRAZ (2021), percebe-se emergir uma sociedade, que além de hiperconectada, está adoentada/debilitada: hedonista; consumista; preconceituosa; gregária por natureza, mas que busca isolar-se; violenta, excludente, propensa ao embate etc. Porém, a crença que a existência de obstáculos se pressupõe que creiamos na possibilidade de transpô-los! Certamente um ofício desafiador, mas inadiável.

Como discorreu FARREL:

“... O avanço tecnológico alcançado em nosso planeta legou aos seres humanos novos desafios. Vive-se a chamada era da informação, da globalização, a era planetária. Um presente cheio de problemas e um futuro incerto nos colocam diante de dilemas que não podem mais ser solucionados pelos métodos antigos ...” (FARREL, 2010, p. 33). 

  Franciatto (1999, p.1) sustenta que “quanto mais cresce e se expande a tecnologia que nos interliga em rede mundial, mais desejamos nos humanizar”. Utopia querermos nos humanizar? Seria uma reflexão não condizente com a contemporaneidade? “Naufragar” num mar de mesmices e igualdades superficiais, ou “Navegar” através de um processo evangelizador – com os ensinamentos do Evangelho?

“Navegar” sem “naufragar” pode estar associado, ao que brilhantemente BEJARANO e FERRAZ (2021) nos trazem: a oportunidade de “... se constituir em janela para a experiência do Deus Amor que salva o ser humano marcado pela experiência do mal” (p.5).

           Mas, os seres humanos são criaturas sociais. Apesar de a ideia de ser um náufrago em uma ilha deserta parecer interessante, muitos de nós prefeririam compartilhar a ilha com mais alguém (BLACKWELL; MINIARD; ENGEL, 2005). Humanos! Gregários por natureza!

Em uma curta passagem pela Terra, os seres humanos isolam-se, muitas vezes, como se ilha fossem, e não constroem pontes para que relacionamentos possam ser alcançados. O compromisso resume-se a uma pessoa: EU. Oportuno trazer um trecho da Aula Magna na Pontifícia Faculdade Teológica da Sardenha, Cagliari, proferida pelo Papa Francisco, para referendar a reflexão:

“... O isolamento e o fechamento em si mesmo ou nos próprios interesses nunca são o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim ...”.

Sim, os seres humanos são na realidade criaturas emocionais que têm uma necessidade profundamente enraizada de se conectar com os outros e com o mundo que os rodeia (ROBINETTE; BRAND; LENZ, 2002). Uma necessidade de imagem social que é baseada nas preocupações pessoais sobre como as pessoas nos enxergam: queremos ser reconhecidos como boas pessoas, como bem-sucedidos, como pessoas atraentes e sofisticadas. Esta é a necessidade de projetar uma certa imagem em um ambiente social.   

Ser lembrados pelas conquistas é gratificante, mas preferir-se-ia ser dignificado pelas ações em benefício da comunidade. Afirma Boff (Jornal O Povo, 2002) que devemos ser, “coletivamente cuidantes”. De acordo com Boff, o cientista Albert Einstein despertou para a dimensão cuidante de todo saber quando o místico indiano Krishnamurti o interpelou: “em que medida, Sr. Einstein, a sua teoria da relatividade ajuda a minorar o sofrimento humano?” Diz Leonardo Boff, que Einstein, perplexo, guardou nobre silêncio. Mas mudou. A partir daí, se comprometendo pela paz e contra as armas nucleares.

Notadamente, quando o ser humano evoca a existência de “pessoas especiais”, reduz seu espectro àquelas que de alguma forma fizeram ou fazem parte de sua vida: os pais, companheiros (as), irmãos, tios, filhos, enfim, a família, àqueles mais próximos; mas quantas vezes são procurados aqueles que se situam outdoor, para escutar, receber carinho, sorrir em conjunto, festejar a vida, dividir angústias... Essas pessoas são muito especiais... Fizeram a diferença em algum momento da vida.

Feliz aquele que têm numerosa quantidade de “pessoas especiais” em sua vida e sabe cultivá-las em tempos de tempestade e bonança. Feliz aquele que consegue ser visto como especial. Feliz de ter sido presenteado pelo Pai!  

Se essas “pessoas especiais” são importantes na vida de qualquer ser humano, aqueles que ainda não foram privilegiados “com este PRESENTE DO PAI” necessitam que alguém faça diferença na vida delas. Cabendo a indagação: Você faz a diferença na vida das outras pessoas?  

  Jorge Mario Bergoglio - Papa Francisco, defende a ideia de uma Igreja disposta a ir ao encontro das pessoas, estejam elas onde estiverem, inclusive nos ambientes digitais. Encontro! A cultura do Encontro: “tudo que aproxima, une, agrega, conecta pessoas e grupos” (FERNANDÉZ, 2013, In BEJARANO; FERRAZ, 2021, p.8). O caminho para a Cultura do Encontro dar-se-ia através da proximidade, do diálogo, da amizade e o encontro com Jesus Cristo.  Em uma igreja, num templo de oração, num lugar de meditação, assim o SAGRADO terá um espaço onde não haja monopólio de sua interpretação.

           Assim sendo, só a educação na fraternidade, numa verdadeira solidariedade, pode ultrapassar a “cultura do desperdício”, que não diz respeito apenas aos alimentos e aos bens, mas, acima de tudo, às pessoas que são marginalizadas nos sistemas tecno econômicos que, sem sequer se aperceberem, não colocam o homem no centro, mas os produtos do homem, profetiza o Papa Francisco.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em Declarações de Amor, fala sobre “A gente sempre se amando (2009)”:

“A gente sempre se amando

nem vê o tempo passar.

O amor vai nos ensinando

que é sempre tempo de amar”.            

Os versos de circunstâncias, ligeiros e lúdicos, de Drummond, oportunizaram trazer a palavra SOLIDARIEDADE. Desculpas póstumas, encaminhadas ao poeta, mas nestes versos a palavra AMOR poderiam ceder lugar, mesmo que momentaneamente, à SOLIDARIEDADE:          

A gente sempre solidário

nem vê o tempo passar.

A solidariedade vai nos ensinando

que é sempre tempo de se solidarizar.  

Sensibilizar pessoas e mentes quanto à importância da SOLIDARIEDADE requer levar o indivíduo a exercitar a reflexão, a enxergar-se no outro, a inspirar compaixão, a fazer conexões interpessoais. A especialização do trabalho na SOLIDARIEDADE deve ser espontânea, natural e verdadeira, para que, àquele que consuma o “produto derivado desta especialização” sacie suas necessidades de amor, estima e pertencimento. A solidariedade, além de produto, deve ser uma lente pela qual vemos o mundo (um mercado consumidor).

Existe uma grande demanda para o produto SOLIDARIEDADE, assim, quanto maior o número de “produtores”, especializando-se na “produção em massa” dele, maior será o público-alvo beneficiado, saciado.

         

Um convite à reflexão:

1)     Quantas vezes você ouviu falar sobre alguém que alcançou seus objetivos profissionais, e, em retribuição aos PRESENTES DO PAI, vê despertar uma reciprocidade espontânea de “presentear” um irmão? Ou então, o atleta profissional que retorna à sua cidade natal e cria uma fundação dedicada a tirar as crianças da rua. A história pode mudar em alguns detalhes, mas o ponto em comum entre elas é a necessidade de doar, de ser solidário às demandas do próximo. O que podemos fazer, hoje, pelo nosso irmão?  

2)     A solução para exercermos uma solidariedade objetiva pode estar em mudarmos nosso foco das necessidades de todo um país para as necessidades concretas de um ser humano específico, que tem um nome e um rosto? Isso permitirá que este ato solidário reverbere e traga conexão entre os sujeitos?         

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BEJARANO, Marcos Morais; FERRAZ, Chrystiano Gomes. Da desconexão à conexão nos ambientes digitais: acenos teológico-pastorais do Papa Francisco para a evangelização da cultura digital. Revista da Teologia da PUC-RS. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 51, n. 1, p. 1-12, jan-dez. 2021.

BOFF, Leonardo. Críticos, criativos e cuidantes. Jornal O Povo, Fortaleza, 23 abr. 2002.

BLACKWELL, Roger D.; Paul W. MINIARD; ENGEL, James F. Comportamento do consumidor. Trad. Eduardo Teixeira Ayrosa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

CZINKOTA, Michael R. et al. Marketing: as melhores práticas. Trad. Carlos Alberto Silveira Netto Soares e Nivaldo Montingelli Jr. Porto Alegre: Bookman, 2001. 

FARREL, Winesburg. A pedagogia do humor e o novo perfil docente do ensino superior. Uma reflexão na óptica discente. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Universidade Americana, 2010.

ROBINETTE, Scott; BRAND, Claire; LENZ, Vick. Marketing emocional – a maneira Hallmark de ganhar clientes para toda vida. Trad. Arlete Simile Marques. São Paulo: Makron Books, 2002.

TOFFLER, Alvin. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 2001.



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