De Braços Dados

De Braços Dados

Era um casal desses que vivem discutindo e ofendendo-se, frequentemente causando constrangimento ao entorno. Com o crescimento dos filhos - três, duas meninas e o menino do meio -, a situação foi ficando cada vez mais difícil. A mais velha casou-se, o menino saiu de casa logo que pôde e com a caçula sobrevivendo em meio às altercações, não poderia haver um desfecho diverso: separam-se, mas o litígio continua mesmo após o divórcio com discussões sobre pensão, sobre os filhos, o futuro da caçula, a amante que se revela e depois o abandona e que gera aquele sentimento mesquinho, porém inevitável, de revanche que é, entretanto, substituído progressivamente por uma certa preocupação com a solidão e com a saúde. Saúde e Solidão não costumam andar de braços dados. Vivendo em casas separadas, as festas de fim de ano e aniversários, ao invés de datas de celebração e reunião eram motivo de embaraço e aborrecimento. E vieram netos que paradoxalmente só agravaram a situação.

Foi quando a doença se manifestou. Começou com uma queda inexplicável e hematomas no cotovelo direito e no quadril. Não houve fratura. Caiu novamente no mês seguinte e, após essa segunda queda, ficou evidente que ela tinha problemas na marcha, movimentando-se vagarosa e rigidamente, sempre com alguém de apoio. Ficava, por vezes, perdida em pensamentos e, em outras ocasiões, era muito impulsiva chegando a se comportar mesmo de modo agressivo diante da contrariedade. Nunca fora de seu feitio. Levam-na ao médico ortopedista que cuida das quedas. Passam no cardiologista que constata que os exames estão bons e o coração uma “fortaleza”. Cai outra vez, não dorme bem, se confunde nas atividades diárias, esquece o forno ligado e num dia fatídico a caçula a encontra olhando para o teto. Olha para o mesmo ponto em que a mãe parecia deter a atenção e nada vê. “Mãe? O que a senhora está olhando?”. “Nada, por quê?” “Olha pra mim”. Ao tentar fazê-lo, contudo, ela começou a apresentar espasmos no pescoço e disse que não conseguia. Mesmo chorando, a filha liga para os irmãos e a mais velha consegue agendar uma consulta com o neurologista para o dia seguinte. Na consulta, o nome da doença não impressionou tanto quanto seu ominoso prognóstico. Paralisia Supranuclear Progressiva ou Doença de Steele-Richardson-Olszewski. Um tipo de doença neurológica degenerativa gradual, como o próprio nome diz, e que, dependendo do caso, leva a uma situação vegetativa grave a médio prazo. 

Muda-se a dinâmica familiar completamente. O pequeno sobrado onde viviam ela e a filha transforma-se em uma enfermaria de hospital. Medicações, cama com grades, ajustes no banheiro, os problemas com a escada, técnicos de enfermagem, fisioterapia, medicações. Os problemas só aumentaram com a dificuldade em manter o plano de saúde, as despesas do home-care, as contas de duas residências e os aportes dos filhos começaram a tomar um volume insustentável. 

Foi quando o filho teve uma ideia. “Por que não colocamos os dois para morarem juntos? Fiz as contas e as despesas reduziriam a quase metade”. “Você está louco? Acha que ele vai aceitar?” “Por que não?”. Entreolharam-se os três, pensativos por alguns momentos. Fazia sentido. “Vamos falar com o pai”. Foram os três conversar com o pai em seu pequeno apartamento no centro da cidade. Escolhiam as palavras deixando que a mais velha, com quem ele parecia ter um relacionamento melhor, falasse. Ele perguntou onde iria dormir. “No antigo quarto do Felipe”. Hmmm. “A Leda vai?” “Sim, pai. Podemos arranjar isso, mas teremos que dispensar outras pessoas”. Hmmm. Olhava para baixo, em direção a um tapete azul já meio puído sobre o parquet antigo. Levantou o rosto vincado e fitando a cada filho, disse um simples e resoluto “Vamos”.

Seria muito absurdo dizer que a doença é capaz de unir aquilo que antes era inconciliável, ou que podemos encontrar companhia na enfermidade? Será que esse oportuno, e porque não dizer sublime, momento não ocorreria naquele instante admirável em que Doença e Cuidado se dão os braços? Não é possível buscar sentido em tudo, no entanto. É preciso admitir a imponderabilidade da vida. Muitas vezes, caminhar juntos é o que basta. De braços dados então, como ele volta e meia a transportava pela casa, nem se fala.

Henrique Serra

Gestor de Empresas de Saúde e Tecnologia

2 a

Eterno professor! Que história! Um abração!

Creusa Ferreira

Coordenador na ClassesLaboriosas

2 a

Amei

Paulo R. Chizzola

Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

2 a

Muito bom.

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