DIREITO SOCIETÁRIO APLICADO - PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA - SOCIEDADES LIMITADAS
Existe uma certa tendência no Direito Societário no sentido de coibir as participações societárias recíprocas, a ponto de que tanto a Lei 6.040/76 em seu art. 244 (aplicável as sociedades anônimas), quanto o Código Civil em seu art. 1.101 (aplicáveis aos demais tipos societários, dentre estes a sociedade limitada), por regra, restringem[1] a participação recíproca entre a sociedade e suas controladas[2] ou coligadas[3].
O objetivo da restrição é nítido, visa preservar a integridade do capital social em sua função de garantia para os credores das sociedades, pois, levando-se a hipótese ao extremo, caso fosse permitida indistintamente a participação recíproca, poderia ser possível que uma sociedade adquirisse a totalidade das quotas/ações de outra, que por sua vez, também poderia adquirir a integralidade do capital da primeira; assim, as duas poderiam gozar de uma aparência de capitalização, contudo irreal, pois no caso de liquidação simultânea das duas sociedades o patrimônio final apurado poderia ser nulo, porque se comporia apenas das participações societárias recíprocas.
Observa-se também que quando a sociedade adquire o controle sobre as quotas/ações de sua controladora ela na verdade está, até certo ponto, adquirindo as suas próprias ações/quotas, pois, estas representam um capital que a grosso modo já integraria, ao menos em parte, ações/quotas da própria empresa controlada, o que equivale na prática a situação de que a sociedade passa a ser sócia de si mesma.
Vejamos o desenho exemplificativo de uma operação para melhor compreender a sistemática da participação recíproca:
Não obstante por regra haver uma certa resistência ao instituto da participação recíproca, a aquisição de quotas/ações da controladora ou de coligada não é proibida e pode se justificar diante de condições particulares a que se imponha aos desígnios das empresas, obedecidas certas disposições legais.
A lei comporta as regras para permitir a operação societária e ao mesmo tempo resguardar o interesse de terceiros, de modo a evitar o esvaziamento do capital social, no seu aspecto de garantia aos credores das sociedades envolvidas.
Para o caso de sociedades empresárias limitadas, que são regradas pelos ditames do Código Civil, aplica-se a norma prevista no artigo 1.101 do Código, que permite a participação recíproca desde que a investida mantenha em saldo de lucros ou reservas (excluída a reserva legal) o montante superior ou igual ao valor da participação societária que será adquirida, sic:
“Art. 1.101. Salvo disposição especial de lei, a sociedade não pode participar de outra, que seja sua sócia, por montante superior, segundo o balanço, ao das próprias reservas, excluída a reserva legal.
Parágrafo único. Aprovado o balanço em que se verifique ter sido excedido esse limite, a sociedade não poderá exercer o direito de voto correspondente às ações ou quotas em excesso, as quais devem ser alienadas nos cento e oitenta dias seguintes àquela aprovação.” (Código Civil – destaques nossos).
Logo, para uma investida adquirir o controle de sua investidora (controladora) ela terá de manter o valor equivalente a participação societária adquirida em saldo de lucros ou reservas (excetuando o valor em reserva legal). Na prática, para que a operação seja possível, a adquirente terá que ter em seu patrimônio líquido no mínimo o montante equivalente a duas vezes o valor da participação societária que pretende adquirir de sua controladora, justamente porque: uma parte será utilizada para pagar pela participação societária, e; outra para manter como saldo de lucros ou reservas, de modo a atender o disposto no art. 1.101 do Código Civil.
Para facilitar o controle financeiro uma sugestão seria a criação de reserva especial só para abrigar esse valor equivalente ao montante da participação societária da controladora.
O valor mantido em saldo de lucros ou em reservas não poderá ser menor que o valor da participação societária recíproca na controladora, caso isso não se verifique: haverá a perda do direito de voto relativos as quotas da controladora, e; a controlada deverá alienar as quotas da controladora no prazo de 180 (cento e oitenta dias).
A perda do direito de voto e o termo inicial do prazo para alienar as quotas começará a contar a partir da aprovação do balanço onde se identificou o descompasso entre o valor da participação societária e o valor que a controlada deveria manter em reservas ou no saldo de lucros, conforme parágrafo único do art. 1.101 do Código Civil.
Diante do tema que se apresenta - aquisição do controle da de uma investidora por uma investida – esta deverá ser precedida de uma due diligence na empresa, de modo a identificar e mensurar o valor da participação societária a ser negociada para se estabelecer com precisão o valor que deverá ser pago e segregado pela controlada em reservas em função da participação recíproca.
Assim, reitera-se a aquisição do controle da investidora pela controlada é possível do ponto de vista jurídico, mas somente se a última mantiver em lucros ou reservas (com exceção da reserva legal) o valor equivalente a participação societária que será adquirida, isto para assegurar a solidez e manutenção da operação e se enquadrar na exceção prevista no art. 1.101 do Código Civil.
Há de se atentar para o fato de que se a equivalência não for respeitada ocorrerá a perda do direito de voto (poder político) advindos das quotas da controladora, o que significará na prática que o sócio minoritário da investidora (no exemplo acima) passaria a controlá-la, porque só ele teria direito a voto.
Uma vez que o minoritário da controladora passar a deter todo o poder político (votos) na empresa, em última análise, isto importaria que o minoritário da controladora passaria a controlar a investida e a investidora, em razão da participação recíproca.
Há que se estar bem certo quando se escolher o caminho da participação societária recíproca, porque o uso desta operação sem todos os requisitos legais pode levar o sócio majoritário a perder o controle de todo o grupo empresarial para minoritários.
Identificada qualquer a diferença a menor entre o valor em saldo ou reservas de lucros e o valor da participação societária da controlada na controladora, a investida deverá alienar as quotas da sua controladora a terceiro no prazo máximo de cento e oitenta dias, como exige a lei.
Tanto a perda de direitos políticos na controladora como o início do mencionado prazo para alienação das quotas começam a vigorar a partir da data em que for aprovado o balanço da controlada, em que se identificou o excesso, mencionado no art. 1.101 do Código Civil.
Para facilitar o controle sugerimos a criação de reserva de lucros especial, segregando o valor dos lucros acumulados e de outras reservas, cuja finalidade seria específica para manter a equivalência entre o valor da participação societária na controladora e o saldo de reservas da controlada, como exige o Código Civil, para o caso de sociedades limitadas.
[1] “Não obstante a existência de uma certa demonização do instituto da participação recíproca, a aquisição de ações de controladora ou coligada, da mesma forma que ocorre com a aquisição das próprias ações, pode, em muitas circunstâncias, ser legítima e perfeitamente justificável. Há várias razões que podem explicar a aquisição das próprias ações, assim como a participação recíproca: (i) quando as ações estão sendo negociadas abaixo do seu valor real, pois o mercado não dispõe de todos os elementos para avaliá-las corretamente; (ii) para sinalizar ao mercado que o preço das ações está abaixo do seu valor no longo prazo; (iii) visando à realização de um investimento, pois, para a administração da empresa, há menos risco do que na compra de ações de Outras sociedades, dados os conhecimentos de que ela dispõe sobre o negócio; (iv) existindo capital excedente, pode ser uma alternativa à redução do capital, que envolve procedimento mais complexo; (v) para que as ações adquiridas sejam utilizadas em planos de opção de compra de ações outorgados aos administradores; (vi) para a defesa contra ofertas hostis de aquisição de controle; e (vii) para fins de fechamento de capital”. (EIZIRIK, Nelson, A Lei das S/A Comentada, Volume Quatro, Ed. Quartier Latin, 2.ª Edição, p. 239).
[2] Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais (art. 1.098 do CC).
[3] Consideram-se coligada a sociedade de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem, contudo, controlá-la (art. 1099 CC).