A DIRETORA-GERAL
Uma interpretação possível: meditabundo sobre Portugal, quiçá para a eternidade...

A DIRETORA-GERAL

De início as coisas na Administração Pública eram mais simples, existia um corpo central de referência composto por ministérios com secretaria - geral e direções-gerais, depois, aberta a caixa de pandora da modernidade, começou a surgir um conjunto enorme e difuso de novas entidades nas Administrações Direta e Indireta, do Estado.

O ponto de partida para a respetiva criação é sempre o mesmo: a necessidade de agilizar procedimentos administrativos e financeiros na Administração Pública, que a legislação em vigor impede ou torna demasiado morosos.

Aparentemente tudo seria mais fácil e claro, reformando-se progressivamente a legislação que se entende ser anti - agility, mas parece que não, mesmo que mais tarde se venham a verificar consequências danosas e evitáveis pelo recurso imprudente a decisões tomadas em sistema de mãos-livres.

As sucessivas gestões políticas da coisa pública em democracia, sempre viveram nesta ambiguidade de quererem fazer coisas novas com as estruturas já existentes na Administração Pública e que lhes são afetas em cada momento, sem cuidarem previamente de assegurar os meios humanos e financeiros, adequados e capacitados, para responderem em pleno à audácia e aos tempos da política.

Daí a usual tentação dos gabinetes da governação para, a um primeiro tempo,  recorrerem à prestação de serviços no exterior para as coisas mais impactantes e urgentes, a que se segue, inevitavelmente, uma nova arquitetura jurídica para modelar as novas entidades públicas que se destinam a suprir, acreditam, as dificuldades encontradas com as entidades pré-existentes – muda a governação (por vezes basta mudar o/a governante), e o ciclo renova-se uma vez mais.

(Nunca ninguém se lembrou até hoje de estabelecer uma coisa simples, objetiva e lapidar: obrigar os decisores públicos a assegurarem, à priori, que aquilo que se propõem fazer nos respetivos domínios de intervenção, apenas será executado com os meios humanos e financeiros previamente disponíveis, a menos que sobrelevem questões de evidência ou excecionais, também elas, devida e previamente explicadas, sustentadas, e aceites)

É assim que o modo e o tempo das Direções-Gerais que restam na Administração Pública são coisas difíceis e delicadas de abordar: os Recursos Humanos que se tem não são os que se quer ter (em quantidade e qualidade), a desconfiança e o afastamento dos decisores públicos face à massa humana dos serviços que tutelam funciona como um espelho no interior desses organismos, e os tempos dos decisores não são os tempos duma parte daqueles que apenas agem como funcionários públicos, com uma carreira a percorrer sem especial rasgo.

 Tudo isto combina com uma afetação financeira que nunca chega para as encomendas mas que frequentemente sobra no fim de cada ano e orçamento, procedimentos internos que não raro desafiam a mais inusitada imaginação, a que se adicionam os variados equipamentos em desajuste, a informática dos serviços sempre um passo atrás (e um poder à frente), escudando-se perante sucessivas falhas nas limitações das tecnologias, e até o frequente desajustamento das instalações  proporcionam  montanhas-russas de surpresas.

(Astutos, há uns bons anos, os ingleses caraterizaram e começaram a incluir nos seus estudos de investigação social uma nova categoria de cidadãos, com peso crescente no posicionamento social, a dos céticos. O ceticismo relativo às práticas democráticas ocidentais correntes é hoje por demais evidente, e expressa-se desde à abstenção ao voto de protesto, da resistência passiva à descredibilização constante do ambiente social.

Por analogia, na Administração Pública e no caso prático das Direções-Gerais, podemos discernir no seu interior três posicionamentos dominantes: os que num determinado momento estão próximos ou aspiram a estar incluídos nos círculos de dominância, no outro extremo os inaptos ou incorrigíveis com posturas comportamentais desajustadas e uma produção de trabalho persistentemente residual ou inexistente, e ainda uma ampla e variável gama de “céticos” que inclui os que deixaram de estar nas boas graças do poder instituído em cada momento e também aqueles que se sentem permanentemente injustiçados, seja pelo não reconhecimento e aproveitamento das suas putativas qualidades, seja por nunca caberem nas quotas das promoções...um caldo de cultura perfeito, onde nenhum poder se atreve a pôr a mão na massa e tentar corrigir.

 Pelo contrário, ao abrir-se sem mais a mobilidade de Recursos Humanos entre serviços, criou-se uma nova categoria: a dos profissionais da Administração Pública que estão em permanente rotação pelos muitos serviços sempre ávidos de preencher vagas, mas sem estarem de corpo e alma ou deixar marca assinalável em qualquer dos serviços por onde rodam em curtos períodos de tempo,  construindo currículos muito preenchidos pela variedade de lugares por onde passam, mas sem efetividade de trabalho relevante e à medida da razão da respetiva contratação...)

Assim, para além das peripécias e incongruências dos tempos, em 50 anos de democracia o que é que mudou de facto nas Direções-Gerais?

Pois, muito pouco.

Já quase “não existem” ou perderam importância estrutural as Bibliotecas e os Centros de Documentação (verdade seja dita que o respetivo usufruto ficou quase sempre aquém do imaginado), “caíram” a generalidade das estruturas de Projetos (é preciso a convergência de duas partes para dançar o tango...), perdeu-se o acesso aos jornais do dia impressos que davam tanto jeito na gestão do tempo diário, ainda emerge de quando em vez alguma energia extra materializada em boas intenções para melhorar e tentar simplificar algo, e impuseram-se gradual e irreversivelmente  a computação, mais as tecnologias associadas e uma panóplia de informáticos indispensáveis para explicar porque isto mais aquilo não pode ser feito...

(Uma analogia singular e nunca abordada entre os Recursos Humanos das Direções-Gerais da Administração Pública e os Recursos Humanos, vulgo funcionários, dos partidos políticos clássicos: ora se está em alta, envolvido e motivado porque se é amigo ou próximo de quem lidera, ou se está afastado, quase inoperacional, nostálgico, e a contar pesadamente o passar dos dias quando a situação é adversa.

Ora se isto é a  prática corrente no interior das estruturas dos partidos políticos, como esperar que quem provém deste “magma” possa corrigir, quando ascende ao poder, procedimentos análogos na Administração Pública?)

Com algum esforço de imaginação é lícito pensar que as Direções-Gerais, as Agências, os Institutos Públicos, as equipas de Missão e demais estruturas hodiernas de suporte ao funcionamento da Administração Pública, serão substituídas por qualquer outra coisa no futuro.

Sim, já se deveria estar a trabalhar afincadamente nesse sentido há bastante tempo, a experimentar e a tentar inovar para agarrar o futuro mais cedo, até porque estas estruturas do hoje correspondem de alguma forma ao analógico, e mesmo quando se está em modo compassivo tem de se perceber (e é simplex de perceber), que a projeção dominante do digital e da Inteligência Artificial no pensamento e na organização do Estado, de qualquer Estado, é e será irreversível.

 Mas como se gerem as atuais estruturas ou, escrito de outro modo, como se ascende a Diretor(a) ou a Subdiretor(a)-Geral?

Ser Diretor(a)-Geral na Administração Pública, é ser capaz de incorporar delicados equilíbrios assentes numa gestão de fronteira diluída entre os objetivos políticos e a estrutura técnico-administrativa, portanto, uma função frequentemente mal apreendida e mal resolvida.

É uma questão fulcral de confiança, acessória ou fundamentalmente de presumidas ou evidentes competências?

 Existe algum carnet de teste amadurecido para ser aplicado nas escolhas do quem é quem?

Dir-se-á antes do mais que o critério-base de seleção dos dirigentes, de todos os dirigentes da Administração Pública, mas também de todos os funcionários públicos (naturalmente com modelações diferentes), deveria ser o apurar a respetiva capacitação sobre o interesse público e sobre o serviço público.

É por isso que em diferentes países, o conhecimento prévio e profundo adquirido no ensino especializado sobre Administração Pública é condição sine qua non, para categorizar a avaliação dos Recursos Humanos da Administração Pública (vale para os avaliados e vale para a seleção dos avaliadores).

Escrito isto, pode-se a partir daqui inferir uma parte do erro monumental do modelo e estrutura de suporte aos processos de seleção dos altos dirigentes da Administração Pública portuguesa, mas também dos restantes dirigentes, e que deslaça sequencialmente numa série de erros subsidiários que vão desde a formação à classificação e carreiras dos funcionários públicos.

Dir-se-á: a ser assim, se esse quadro apocalíptico corresponde ou se aproxima da realidade, porque é que isso acontece, e será que ninguém consegue inverter a situação?

Pois essa é exatamente a conclusão a extrair: ninguém conseguiu até à data estabelecer um fio condutor sólido e coerente porque isto  resulta no essencial de um funcionamento deficitário da sociedade como um todo, sem correção à vista, onde as sucessivas forças interagem e entrechocam em cada momento apenas em função dos seus interesses imediatos: poder e dinheiro.

Funcionários públicos em geral e as suas entidades representativas, dirigentes, políticos,  analistas e comentadores, professores,  formadores, ideólogos da matéria, centros de interesses diretos ou indiretos, associados à Administração Pública, os beneficiários da Administração Pública incluindo os que passam a vida a queixar-se dela e assim por diante, isto é, de entre todos nós, ainda não foi possível vislumbrar como quebrar este jogo de soma zero.

Retomando a essência do que está em análise: Diretores-Gerais na Administração Pública, agora na perspetiva da qualidade, consistência e aproveitamento.

A imagem da Administração Pública é bastas vezes projetada a partir das decisões políticas e da governação, isto é uma nebulosa em que Estado, Administração Pública e poder político se confundem. Então, e se a imagem da Administração Pública por si só fosse, com seriedade, arrojo e autonomia, avaliada externamente e em profundidade, autonomizando das suas demais componentes, o perfil e o desempenho da globalidade dos seus Diretores-Gerais?

No essencial, as Direções-Gerais são estruturas operativas de suporte a domínios da governação, mas que também desenvolvem procedimentos e projetos afetos à sua natureza que estão para além das decisões conjunturais, e que por princípio são do interesse da da coisa pública e, mais latamente, da gestão do próprio Estado.

Por isso, as respetivas estruturas-tipo operativas deveriam contemplar um núcleo central restrito, estável, e prever a possibilidade de acoplar a si estruturas flexíveis, a serem preenchidas e extintas, com naturalidade e caso a caso.

A base dos Recursos Humanos especializados afetos a cada Direção-Geral deveria ser enxuta, sendo a restante estrutura flexível e recomposta sempre que necessário, com funcionários requisitados/selecionados a partir de uma bolsa móvel de funcionários públicos não afetos a nenhuma estrutura em particular, atentos nos perfis de seleção as necessidades decorrentes das novas políticas delineadas para cada setor e respetivos meios financeiros associados.

Mas ser-se Diretor(a)-Geral ou Subdiretor(a)-Geral na Administração Pública foi, é, ou pode ser uma questão de género?

Por princípio natural, não se vislumbra a possibilidade de existir qualquer diferença de capacidades gestionárias ou funcionais entre homens e mulheres.

Embora a crescente afirmação, no discurso e na materialização prática dos direitos das mulheres possa, com grande probabilidade, ter vindo a reforçar a ascensão de mais mulheres ao topo de chefias públicas, não se coloca hoje como não se detetou nestes 50 anos de democracia, qualquer impedimento de género à respetiva ascensão a posições de topo na Administração Pública.

Pelo contrário, há muito tempo que um número significativo destas chefias têm sido desempenhadas por mulheres, e em alguns casos com singular duração.

Pode-se questionar se tal se deve a especial adequação à especificidade dos cargos, a excecionais capacidades e qualidades demonstradas pelas escolhidas ou, predominantemente, como resultante de pulsões relacionais e linhas de força que se estabelecem entre homens e mulheres.

De todo o modo, e fazendo jus ao ideário propalado em determinado momento, já se pode inquirir se a ascensão de mais mulheres ao poder (nas suas diversas cambiantes), fruto das suas características e determinação, do ser e do estar feminino nos vários palcos da vida e da experiência por elas vivida através das variadas discriminações de que foram sendo alvo ao longo dos tempos, significou (até agora), e como foi prometido, exercícios de poder distintivos dos praticados pela generalidade dos homens, isto é exercícios de mais equilibrados e justos, mais humanizados digamos assim.

Talvez seja prematuro exercitar uma avaliação sólida sobre a efetivação desse pressuposto, todavia a experiência do tempo que passa  tende à conclusão de que o acesso, formas e uso do poder estão para além das questões de género, centrando-se, de facto e primordialmente na condição humana.

A regular ascensão e queda dos Diretores-Gerais e dos seus Subdiretores, independentemente das qualidades pessoais e profissionais de cada um(a) e das conflitualidades latentes, tem muito a ver com quem cada governante se sente identificado, tranquilo, ou em quem pretende apostar nessas funções nucleares para o sucesso do seu próprio desempenho.

Independentemente do género, exercer a função de Diretor(a)-Geral na Administração Pública decorre num contexto psicológico muito semelhante ao de outras chefias no aparelho de Estado.

Dos sonhos, ambições e quimeras, como ponto de partida, às interrogações futuras sobre as posturas inter-relacionais com os níveis superior de poder, as dúvidas de ser capaz de corresponder face ao que lhes vai ser exigido, depois o desgaste e a relativa acomodação (ou não), face aos múltiplos episódios da gestão diária, até, por fim,  às incertezas, angústias e algum sentimento de injustiça quando o poder muda e quer novos protagonistas.

(Também aqui, no meio da densidade e pluralidade relacional, as Relações Humanas e pessoais são preponderantes, por vezes até confrangedoras, excessivas e contraproducentes. Mas como evitar, se somos estruturalmente assim?)

No interior das Direções-Gerais, apesar do aparente platonismo de muitas, tudo fervilha, e a sua  projeção  exterior enquanto entidades predominantemente formalistas, já aglutina há muito tempo o singular “todas e todos”, com tradução prática no conjunto de Diretores-Gerais em exercício.

 Assim sendo, talvez seja este o momento de introduzir algum reequilíbrio nos processos de seleção de Diretores e Subdiretores-Gerais na Administração Pública (e bem assim para os restantes dirigentes), isto é, a liberdade, responsabilidade e exigência, na escolha de cada decisor público, carece de sopesar e amadurecer na tomada dos processos decisórios, sobre o peso específico de aguerridas questões de género.

O título «A Diretora-Geral»,  simboliza assim um melting pot de contradições no modus operandi  da organização e funcionamento degenerativo das sociedades que se desgastam em impasses e pequenos remendos.

O que deveria ser normal, coexistirem sem mais, Diretoras e Diretores-Gerais, é muito mais do que isso ou que simples questões de género: espelha aquilo que somos, o caldeirão fervente em que vivemos.

Surgirá e quando, algum chef qualificado e determinado a pôr as mãos na coisa, qualificando esta massa encaroçada?

 

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