DOUTRINAR
Minha última postagem defendeu a ideia de que a inteligência artificial generativa não substitui o humano, pelo contrário, nos torna mais inteligentes e cultos. Mas há um risco que não foi apontado. Essas inteligências são tão convincentes quando conversam conosco, que muita gente pode ser ludibriada por elas. Chamo a atenção para o fato de que se elas foram treinadas lendo tudo o que existe de informação digital, elas a princípio refletem todos os preconceitos da sociedade e não apresentam todos os pontos de vista contraditórios, apenas quando você explicita esta necessidade.
Esse pensamento me levou a outros: como tanta gente ao redor do mundo foi iludida pelo discurso fartamente repetido a respeito de algumas nações, do império e seu governo?
Educar e Doutrinar
Educar deriva do Latim e+ducere, que significa literalmente "conduzir para fora". Para fora do que já se sabe, para fora da mentalidade existente, e para fora de dogmas ou de informações que assumimos como verdadeiras, sem refletir sobre elas. A educação, com esse significado fecundo, é preciosa nesses tempos de manipulação mental.
Doutrinar também deriva do Latim doctrina, que significa "instrução ou conhecimento sistemático". Ela deriva de docere, o mesmo que educar. Mas é totalmente diferente em significado. Hoje, em português, doutrina refere-se a um "conjunto de princípios, ensinamentos ou dogmas que formam a base de um sistema ideológico, religioso ou político".
Em todos esses sistemas, as doutrinas formam um conjunto que só é plausível quando analisado em sua totalidade. Veja o caso das religiões: elas doutrinam um conjunto de dogmas, que é costumeIramente entendido como "verdades absolutas", tanto que não comportam discussões. No limite, a crença religiosa se ampara na fé e não no conhecimento. Chama a atenção a quantidade de pessoas que faz interpretação literal de textos religiosos, desprezando o contexto histórico e a linguagem metafórica de quando foram construídas essas narrativas. O mesmo ocorre com ideologias e com sistemas políticos: refletem um conjunto de verdades que não se deseja questionar. São sistemas que visam atrair e engajar pessoas. No limite, também essas pessoas aparentam basear-se em uma "fé", um conjunto de crenças.
A epistemologia define conhecimento (parece ser a definição mais aceita) como "crenças justificadamente verdadeiras". Assim, para que algo seja tratado como conhecimento é preciso justificar, e o fazemos pelo uso da ciência, que rejeita crenças infundadas e promove crenças apoiadas pelo conhecimento científico, que nunca é uma verdade absoluta.
Diante disso, é melhor educar que doutrinar, dado que a doutrinação só produz crenças e a ausência da discussão impede que elas sejam justificadas. Enquanto "educar" sugere um processo aberto, holístico e inclusivo de desenvolvimento do indivíduo, "doutrinar" implica uma instrução mais rígida e específica, muitas vezes com a intenção de fazer a pessoa aderir a um conjunto particular de crenças ou valores sem margem para questionamentos.
Vulnerabilidade
A doutrinação depende de um contexto social específico, onde há forte pressão do grupo ou pressão pela conformidade social. Para pertencer ao grupo, e essa é uma das necessidades básicas do indivíduo, ele pode se conformar, aderindo às doutrinas ali propaladas. Noto isso no ambiente corporativo, sobretudo em empresas que não desfrutam de grande validade por parte da sociedade. A pressão pela conformidade também ocorre por meio de autoridades incontestes, mas isso traz à tona outro fator.
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A doutrinação também depende de um estado psicológico e emocional específicos. Se o indivíduo vive uma condição de forte insegurança e senso de vulnerabilidade, ele se abre à doutrinação. Muitas vezes a doutrina é percebida como uma "tábua de salvação" fornecida por uma autoridade, para quem está próximo do desespero ou do desamparo. Aqui também o pertencimento a um grupo ou à sociedade se mostra necessidade relevante.
A doutrinação também opera melhor quanto pior a educação do indivíduo. Mesmo com péssima escolaridade, ela sempre ensina a indagar e questionar. Com fraca educação há decerto uma limitação de acesso à informação. O que pode se tornar ainda pior se o indivíduo não desenvolveu pensamento crítico.
Por quem doutrina o processo de doutrinação se inicia com o foco no público-alvo: é desejável abordar pessoas em momentos de transição ou de crise pessoal, portanto vulneráveis. O doutrinador precisa se colocar em posição superior, seja pela autoridade a ele determinada, seja por qualquer outro atributo que o coloque em condição ímpar de fazer aceitar a sua verdade. Repetição e reforço positivo são sempre necessários, ainda mais se forem repetidos por outras autoridades: os grandes meios de comunicação (e de propaganda), os centros educacionais informais ou formais e o círculo social íntimo do indivíduo. O bombardeio é conduzido até a saturação de informação, até que não se tenha mais dúvidas. A existência de rituais serve ao pertencimento progressivo, desde uma posição periférica até posições de maior atuação. Também é fundamental o controle da doutrinação, para que a adesão do indivíduo não se perca em futuras reflexões críticas. Nesse ponto é crucial a censura, o bloqueio de acesso e a imposição de normas de comportamento. O alvo fica tolhido, perde a liberdade de pensar.
Uma ficha que caiu: nesses tempos de promoção da inteligência artificial generativa, aqueles que aceitam uma única resposta à questão que coloca se torna vulnerável à doutrinação. São sistemas cujo texto é tão persuasivo que parecem indubitáveis. Esse é o perigo. Esses sistemas requerem a conversa, isto é, a troca de ideias - a maiêutica socrática.
Os efeitos da doutrinação são horrorosos. A longo prazo criam uma sociedade conformista, quando se trata da doutrinação política e ideológica. Reduzem a capacidade crítica e o pensamento independente das pessoas, portanto padronizam o pensamento. No limite a doutrinação gera polarização, quando cada ponto de vista se torna um polo que rejeita a empatia e o diálogo com os demais polos.
Pela Educação
Escolhi a profissão certa, e sempre me agrada perceber o quanto ela é importante.
Precisamos ter força para não aceitar nenhum tipo de doutrinação. Começa por não dar ouvidos a quem se recusa a discutir ou dialogar - assim não perdemos tempo. Passa por ampliar o diálogo com interlocutores válidos: amigos íntimos, terapeutas, professores e figuras notáveis que fazem do diálogo e da ciência o seu processo de construção de conhecimentos. Não menos importante é se expor a múltiplas perspectivas - é no choque de contradições que fazemos a crítica. Claro que o ambiente democrático da sociedade é um pano de fundo importante - nos regimes autoritários e totalitários a doutrinação grassa. Não deixo de lista a velha e boa educação, aquela que ensina a criticar, a refletir e a adotar um certo ceticismo ao pensar.
Tudo isso compõe uma "resiliência cognitiva". Por resiliência, indico a capacidade de resistir, de enfrentar e de superar tanto a pressão pela conformidade quanto a censura e manipulação mental. Só de enfrentar já reforçamos a individualidade e a autoria das próprias ideias - lembrando que é da autoria que nasce a autoridade, pelo menos em termos etimológicos. Superar vai além: significa não temer a contradição e buscar fundamentação para a verdadeira dialética, a de negar a tese e a antítese para gerar uma nova síntese.
Vamos "dar a volta por cima", contra tanta doutrinação.
Advogado Trabalhista
6 mPreciso como sempre primo! A educação liberta, enquanto a doutrinação aprisiona, simples assim... Que consigamos, sempre, manter-nos livres, com as asas que Gibran nos legou...