Entrevista: “A Sombra do Pai” retrata ausência paterna nas famílias brasileiras

Entrevista: “A Sombra do Pai” retrata ausência paterna nas famílias brasileiras

Publicado no site Pop with Popcorn

Diretora do aclamado Animal Cordial, Gabriela Amaral Almeida volta a explorar o gênero do suspense para falar sobre a realidade brasileira em A Sombra do Pai. O longa-metragem, que estreia dia 2 de maio, conta a história de Dalva (Nina Medeiros), uma garota que, após perder a mãe, fantasia trazê-la de volta dos mortos, enquanto sofre com a ausência do pai (Julio Machado), presente apenas fisicamente. Completa o elenco a atriz Luciana Paes.

Em entrevista exclusiva ao Pop with Popcorn, a diretora comenta o cotidiano brasileiro retratado no filme e as questões existenciais ali presentes, “que estão aí na cabeça de todo mundo que se digna a pensar o mundo”. Confira:

Pop with Popcorn – Primeiro, gostaria que você comentasse um pouco o processo criativo do filme. Como que te veio a ideia de “A Sombra do Pai”?

Gabriel Amaral Almeida – Eu tinha acabado de sair da Escola de Cuba, em 2007, e tinha essa ideia muito forte de trabalhar o conceito materno em cruzamento com a natureza. Então, eu via umas imagens que me conectavam tanto à minha infância quanto a essa questão do feminino e da natureza, da gestação, o que se cria dentro do universo do feminino.

Outra questão era: para onde vai a sensibilidade dos trabalhadores braçais? Aqueles que não têm tempo de ócio para criar, nem para sonhar, ou no caso do personagem, nem para viver o luto. Então, o que esse tipo de organização social produz de monstros, na base da pirâmide que mantém essa sociedade? 

Essas questões ficaram orbitando na minha cabeça e escrevi o primeiro argumento em 2009. Ao longo desses anos, fui voltando a esse roteiro. Enquanto eu descobria o meu lugar no mundo como observadora, como artista, esse filme era como se fosse um porto, para onde eu sempre voltava, trazendo minha vivência. As obras de arte não são mais do que resultado da nossa própria vida, do que a gente pensa, da sombra da luz que cai na gente. Foi um processo longo que acompanhou todo esse processo de desenvolvimento meu enquanto artista. Quando olho para o filme, vejo vários momentos da minha sensibilidade ali.

E por que essas questões foram tão importantes para você, ao ponto de estar sempre voltando a esse argumento?

São questões importantes para todo mundo. Existenciais, mitológicas. Onde acaba as relações familiares, o que é a morte, existe algo depois? São tão universais, estão aí na cabeça de todo mundo que se digna a pensar o mundo. Não só dos artistas, mas dos filósofos, dos pensadores – vou falar aqui da importância da filosofia, das humanas, né, ao contrário do que pensa o nosso atual “gestor”, como é importante ter gente pensando nisso. Nós somos tribais, apesar de parecermos uma sociedade individualista, mas a gente é tribal e tem o momento que a gente precisa se debruçar sobre uma questão e perceber que não estamos sozinhos nessa busca por respostas. Nos unimos como seres humanos nessa busca.     

Você pesquisou o universo das religiões brasileiras antes de escrever o roteiro? O que encontrou de mais interessante e serviu de inspiração para você?

Sabe por que eu não pesquisei? Eu sou baiana, eu cresci nisso. Cresci no sincretismo absoluto de uma Bahia nos anos 80 e 90 que permitia você sair da Igreja e ir ao terreiro. Então, as questões que estão no meu filme são questões que eu vivi, como ser humano. Não é algo que precisei pesquisar e colocar em um tubo de ensaio, como se fosse algo externo, porque sou eu mesma, está dentro de mim. Eu sou o resultado dessa cultura também.

E o que você acha que há mais de você no filme?

Nossa, que difícil falar isso. Quando a gente se propõe a encontrar as histórias no inconsciente da gente, cada um tem um método mas esse é o meu, a gente está dentro do filme. Isso está em várias camadas, pode estar no tom… Acho que está espalhado no filme todo. Na vontade de crença, de comunicação dos personagens. Ver como uma simples comunicação humana poderia resolver aquela situação. Está na minha contemplação melancólica do homem moderno, massacrado, obrigado a viver um papel forte o tempo inteiro, mas que está se desmoronando por dentro. O meu olhar está nesse filme, acho que é isso que me deixa feliz. A maneira como olho as coisas, como acredito que são ou podem ser.       

Em “O Animal Cordial”, você trabalhava o suspense em um ambiente claustrofóbico. Aqui, você explora elementos sobrenaturais para criar o suspense. Como foi essa mudança de estilo dentro do gênero? 

Eu nunca penso em estilo, isso não está na minha cabeça como uma chave. Acho que a história dos personagens pedia esse terreno. Essa coisa de alternar não é uma coisa consciente, mas tem a ver com o que os personagens pedem. Em “O Animal”, era a história de personagens no limite do suportável de cansaço, de exploração, todos eles. O limite é levado ao transbordamento com uma narrativa que é catártica, que tem uma violência bastante gráfica, porque é da ordem da natureza da questão que estou trabalhando.

Aqui já é uma questão de projeção, como é que esses medos geram monstros, então é mais fácil falar a partir dos personagens, que são de uma família que vive um luto não vivido, e esse luto reprimido gera monstros. E daí vem esse gênero e essas marcas. “Animal” fala sobre os limites também em uma sociedade opressiva, que nos coloca em papeis muito rígidos, e o que acontece quando isso estoura. Então, está aí uma narrativa de catarse, gráfica e violenta, e uma narrativa de fantasmagoria, de desejo retido, de medos não expressos.

“Animal Cordial” brincava com essa noção do brasileiro como o “homem cordial”, hospitaleiro, mostrando um gerente aparentemente “boa gente”. Que traços brasileiros acha que são revelados em “A Sombra do Pai”?

Principalmente, a família sem pai – pai virtual, ou não existe, ou existe para botar comida na mesa, mas não no ambiente doméstico nem nas relações afetivas tecidas nesse ambiente. Outra realidade é como crianças se criam sozinhas, principalmente de classes mais baixas, como a Dalva. Realidades bastante pesadas, crianças de sete e seis anos que cuidam de irmãos menores. Então é uma situação do país da gente, basta você ir para a periferia que você vai encontrar essas crianças que têm que amadurecer rápido demais. E aí você olha e pensa: esse pedreiro é um homem como eu, por que a ele não é dada a chance nem de respirar, nem de viver o luto? Por que é negada a humanidade a uns e a outros não? São questões que acho que são bem nossas. 

Pensando no título do filme, qual você considera a importância da figura do pai nessa história?

Esse pai virtual mantém aceso o desejo de afeto da personagem principal. Ele não é um pai que a negou, mas ele não está presente. Por sua vez, ele está trabalhando, para trazer comida à mesa, então acho que ele nutre uma ilusão na menina de que ela pode fazer com que o sensível chegue a esse homem, já entorpecido. Então a presença dele na história, mesmo que virtual, alimenta na Dalva esperança. Acho que ela caracteriza um tipo de esperança que o brasileiro tem, aquela de que, até o restinho de possibilidade, a personagem está se agarrando a isso e tentando ressignificá-lo – acho isso muito da nossa cultura.

Você escolheu colocar no filme cenas de “O Cemitério Maldito” e “A Noite dos Mortos-Vivos”. Qual considera a importância desses momentos para a narrativa do filme? De que modo esses filmes te serviram de inspiração?  

A esses filmes eu assisti quando era criança, passavam muito na TV aberta. Para a narrativa, eles criam um chão para a imaginação da Dalva. Ambos falam da possibilidade de trazer as pessoas de volta da morte. Servem também para que a Dalva construa um raciocínio em relação ao pai, que fala cada vez menos, come cada vez menos, chega sangrando nas costas, aí, na lógica infantil dela, o pai se tornou um zumbi. É necessário que esses filmes existem porque eles dão chão para a imaginação da criança.

E dentro do cinema brasileiro de terror, quais suas inspirações?

Olha, gosto muito do cinema do Walter Hugo Khouri (diretor de Noite Vazia). E gosto de dividir também com os meus contemporâneos Marco Dutra (Quando Eu Era Vivo), Juliana Rojas (Sinfonia da Necrópole), Anita Rocha da Silveira (Mate-me Por Favor) e Kleber Mendonça Filho (Aquarius) que são também interessados nas nossas sombras e estão transformando isso em narrativas que valem a pena serem vistas, então é motivador ser parte de um grupo que está olhando para as mesmas coisas.

Por Gabriel Fabri

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