Funcionalidades infuncionais: uma breve história da ruína

Funcionalidades infuncionais: uma breve história da ruína

É impressionante o número de pessoas que insistem usar ferramentas inadequadas para a situação observada. Sabe aquele cara que vai tomar sopa usando garfo ao invés de admitir que a colher é um instrumento mais recomendado para essa função? É desse tipo de comportamento que falaremos hoje. 

Não importa a época ou lugar, sempre haverá alguém que forçará a barra pra fazer algo funcionar que visivelmente não funciona. Eu já fiz isso, e provavelmente você também já fez em algum momento. E não estou nem falando de montar uma “gambiarra” ou coisa semelhante, porque na maioria das vezes a gambiarra vai resolver o problema e será a única solução disponível no momento (não quero aqui incentivar gambiarras, se você fizer saiba que e̶u̶ ̶t̶a̶m̶b̶é̶m̶ ̶f̶a̶ç̶o̶ não foi com o meu consentimento), enquanto não se tem uma solução definitiva e mais eficaz; estou falando do uso nitidamente inadequado de uma ferramenta, um método ou um procedimento que não só não resolve o problema, como ele gera o que chamamos no mercado financeiro de assimetria negativa: custa mais caro usá-los do que o retorno que nos trarão, seja esse custo em dinheiro, em infraestrutura, ou recursos muito mais valiosos e não-renováveis, como o nosso tempo e a nossa vida.

Muitas são as razões pelas quais esse comportamento se manifesta, talvez algumas delas só sejam explicadas pelos ramos da Ciência que estudam a mente humana, como a Psicanálise e o Behaviorismo. No livro O Ego E Os Mecanismos De Defesa (FREUD, Anna) até poderíamos encontrar algumas respostas satisfatórias, mas são de difícil compreensão para um papo de boteco, que é o que sempre pretendo com meus escritos, transformar o complexo em simples. Mas nesse caso, tenho humildade suficiente para reconhecer que essa tarefa é difícil até pra mim, não cheguei nesse nível de síntese ainda; algo importante acabaria se perdendo pelo caminho, e seria desastroso se isso acontecesse. Aos interessados em psicanálise (que não sejam profissionais do ramo, porque esses imagino que já tenham lido) sugiro que leiam o livro, é muito interessante. Como não pretendo me concentrar em explicações que derivam da Ciência que estuda a psiqué, e sim da observação cotidiana, destaco aqui cinco razões que levam o indivíduo a forçar o funcionamento de algo que não funciona:

  1. Desconhecimento

Usar uma ferramenta inadequada para resolver um problema pode significar ausência de repertório em alternativas que sejam mais eficazes; quando eu sabia menos sobre análise de dados do que sei atualmente, achava que meus relatórios com gráfico de pizza davam conta de explicar proporções com uma grande quantidade de categorias, até descobrir que ele é pavoroso e visualmente caótico e horrível; ao estudar e me aprimorar na área, percebi que não só ele não é indicado por ninguém que tenha repertório avançado como o nosso olho humano não tem perícia suficiente para compreender a diferença entre ângulos num visual de pizza ou de rosca, existem visuais melhores e que não exigem muita energia do leitor para compreender o que está sendo dito, como o gráfico de barra.

2. Orgulho

A pessoa SABE que está errada e que está usando um método ineficiente, mas não tem humildade suficiente para admitir que existe uma maneira mais assertiva de solucionar o problema; muitas vezes o jeito do colega ao lado resolve e tem um resultado muito melhor e com menos gasto - de tempo, de dinheiro, de energia -, mas a agonia de saber que nem sempre seremos melhores em tudo toma lugar e nos impede de ampliarmos o nosso repertório e de evoluirmos como pessoa.

3. Familiaridade

“Aqui sempre foi feito assim”, quem nunca ouviu frase semelhante a essa? Um desdobramento do item 2, a familiaridade com a resolução de problemas a partir de um método ou ferramenta usada há bastante tempo, seja por hereditariedade no ambiente ou por segurança - o medo de mudar envolve risco, e risco envolve possibilidade de resultado diferente do esperado -, leva indivíduos a não tomarem decisões a partir de novos aprendizados; como já existe um caminho estabelecido, qualquer tentativa para trilhar uma nova estrada resulta numa resistência enorme ao novo; vemos muito isso em operações no mercado financeiro, em profissionais de tarefas artesanais que se deparam com inovação tecnológica, em empresas familiares. Em seu livro A ética protestante e o “espírito” do capitalismo o sociólogo Max Weber já alertava sobre esse risco no início do século XX e as inovações vindouras; você até pode decidir fazer as coisas do mesmo jeito rudimentar que sempre fez e virar as costas para a inovação, mas a evolução é implacável, ela não vai te esperar e tampouco terá pena de ti e de sua ruína, que é inevitável.

4. Indisponibilidade

Tem momentos que o que precisamos simplesmente não se encontra à nossa disposição. Fazer do alicate de pressão um martelo, da faca de serra uma chave de fenda ou do INSS a nossa esperança de aposentadoria muitas vezes é “o que tem pra hoje”, mas atribuir novas funções a objetos que nitidamente não foram desenhados para exercê-las não se trata de “ressignificação”, e sim de empregar muita energia para forçar o funcionamento de algo que não foi feito para funcionar da maneira que esperamos; além do desgaste - nosso e do próprio objeto, seja ele uma ferramenta ou um método -, o risco de frustração é enorme pois a probabilidade de ficarmos na mão é alta demais.

5. Descolamento

É muito comum observar situações onde a pessoa sabe que está forçando operações que não existem precedentes no mundo real, só porque existem soluções no mundo teórico. Nem tudo que a Matemática permite nós de fato conseguimos realizar, e isso vale para a Física, a Química e praticamente tudo que o Sapiens já catalogou ou criou e que envolva abstrações. Na primeira lei da termodinâmica veremos o princípio da conservação de energia, onde matéria não pode ser criada ou destruída, apenas rearranjada para uma nova forma; em tese, a teoria não impede que fenômenos como o cozimento de alimentos ou a morte biológica sejam reversíveis ao seu estado original, porém eu desafio você a fazer com que a carne assada fique crua novamente, que o bolo de chocolate volte a ser uma massa disforme no tabuleiro e tenha seus ingredientes separados ou que consiga reagrupar os átomos de uma pessoa morta e fazer com que ela ganhe vida mais uma vez. (disclaimer: esse texto foi escrito em 2022, se você lê isso num futuro distante ou é viajante do tempo e já conhece soluções para o que foi dito aqui, apenas ignore, não leve para virar piada na mesa de bar, ok?)

Que essa reflexão sirva para que possamos ir um passo adiante, melhorar 1% ao dia, essa é a meta. Devagar também é rápido, conhecimento nunca é demais. Até a próxima!

Curtiu esse assunto? Compartilhe com a galera! Se quiser me dar um feedback estou à disposição, só me enviar um inbox por aqui ou um e-mail no endereço reisph2@gmail.com (;

Victoria Alves

Diretora | Produtora | Roteirista | Curadora

2 a

Muy bueno!

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