Inatividade ao longo da vida ativa: uma proposta (arrojada) para um novo contrato social
Há já alguns anos que me assaltou uma ideia arrojada de organização social e profissional que me faz muito sentido e me assomou o espírito na sequência de uma experiência pessoal vivida em 2011. Neste ano, após 7 anos de carreira bem sucedida, decidi fazer uma interrupção abrupta na mesma para estudar no estrangeiro. Desvinculei-me, gastei 80% das minhas poupanças e fui para Londres completar um MBA. Estive 15 meses no total fora do ritmo mundo do trabalho. Fiquei fora das estatísticas da população ativa. Não foi uma estratégia de carreira pensada ou planeada previamente, foi antes uma estratégia emergente decorrente de uma necessidade latente de novas experiências, de desaceleração, de vivência no mundo. As circunstancias pessoais favoreceram e não pensei duas vezes. Nem todos me compreenderam mas o apelo foi incontido. E ainda bem. Foi somente uma das melhores decisões da minha vida.
Esta experiência fez-me pensar o porque da nossa forma de organização social do ciclo trabalho/reforma. Vivemos desde sempre num paradigma que pensa o ser humano produtivo imerso em períodos consecutivos de 30/40 anos de trabalho, seguidos de 10/15 anos de reforma, suportada em descontos realizados para a Segurança Social (ou outro complemento de reforma provado) durante o período de vida ativa. E será assim em toda a Europa Ocidental que partilha a nossa forma de organização e proteção social.
Após a experiência que tive pus-me a pensar se não fazia sentido alterar este paradigma. Este foi erigido há 50/60 anos no contexto da "sociedade disciplinar" de Focault e em dinâmicas sociológicas que já não funcionam claramente sobre os mesmos parâmetros. Os sistemas de protecção social encontram-se em crise, existe uma desconfiança geral dos agentes na sustentabilidade do sistema, os indívíduos são mais orientados para curto/médio prazo, o conceito de família está em alteração profunda, os ciclos de vida e trabalho tonaram-se menos lineares, a experança média de vida cresce e a temática de como assegurar um envelhecimento ativo é cada vez mais premente. Vivemos, sem retorno, na era da "modernidade líquida", como afirma Bauman. Se assim é, porque manter um paradigma de muito longo prazo para servir (e taxar) indivíduos que crescentemente possuem outras expetativas de vida?
O que propunha era acabar com a idade de reforma como a conhecemos atualmente. Ou seja, cada individuo poderia, por opção, antecipar os anos de inatividade laboral, reformando-se assim mais tarde. Por exemplo, se a cada 7 anos de trabalho eu pudesse ter um ano de inatividade laboral (financiado pela Segurança Social, com base nas contribuições atuais), ao fim de 40 anos teria gozado 4 anos de inatividade interpolados (e em vez de me reformar aos 67, reformaria aos 71. Caso os indivíduos quisessem obter mais períodos de inatividade laboral financiados pela Segurança Social poderiam propor-se a contribuir mais do que os os 11% atuais (pressupondo que as empresas manterias os 23,75%).
O que estaríamos a fazer era um contrato social mais flexível e transparente com os indivíduos e contribuintes, permitindo-lhes dar espaço para se realizarem não só enquanto agentes produtivos mas também enquanto indivíduos (que Adriano Moreira define, deliciosamente, como fenómenos únicos e irrepetíveis na história do universo) e membros de uma comunidade, durante o periodo em que estes estão no auge das suas capacidades físicas e mentais. De que vale um Contrato em que trabalhamos consecutivamente 40 anos para usufruir de beneficios que são tão longínquos e cada vez mais incertos? De que vale nos reformarmos aos 65 se não teremos uma família de 3 filhos e 10 netos para suportar e cuidar no periodo de inatividade? Como responder à tendência nas sociedades atuais para a presença de fenómenos muito precoces de "burn out" gerados pelo excesso de "positividade" com que somos bombardeados numa socedade totalmente orientada para o rendimento. Somos somente indivíduos de rendimento entregues a uma Sociedade de Cansaço (Byung-Chul Han).
Já lá vão quase 10 anos anos, um amigo meu, Gonçalo Regalo fez-me uma questão que me perturbou até hoje. Certo estava eu tanto dos benefícios indeléveis da economia capitalista, fruta da minha extensa formação económica na FEP, quando o Gonçalo, com fortes convicções de esquerda, me confrontou com a seguinte questão: "Mas qual o objetivo último do modo de produção capitalista? Por que se move? O que a dirige?" Lembrome de ter balbuciado algo à procura de uma resposta convincente, talvez com base na capacidade única de um sistema auto-regulado para a alocação eficiente de recursos baseada somente na informação massiva contida em preços flexíveis, os quais, como demonstraram os economias austriacos são grandes índices agregados de transmissão de informação, conhecimento e coordenação entre agentes produtores e consumidores. Tudo verdade, mas nada diz isto sobre qual o "fim último" entendido como uma acção proactiva do Homem em direcção a algo que transcenda o que atualmente existe. No capitalismo tal não existe na verdade. Não existe um objetivo último que não seja a produção progressiva de riqueza. É um sistema que, em certas condições, é ultra-eficaz na alocação dinâmica de recursos e produção de riqueza, movido pelo interesse individualista dos agentes detentores de capital em investir, rentabilizar e acumular capital, dentro dos limites que a sociedade impõem por via regulamentar. É assim ha 150, 100, 50, 25, 10 anos e atualmente e sempre assim será. Mas visa o mesmo aumentar o bem-estar social? Tem o mesmo subjacente alguma visão mais holistica da sociedade e da realização dos indivíduos? Convive o mesmo bem com divergências face ao objetivo único de acumulação de rendimento na sociedade? É paradigmático que qualquer ideia de reorganização do trabalho é avaliada atualmente na sua contribuição eficaz ou não para a progressão do PIB, do rendimento. Às sociedades "teocêntricas" e "homocêntricas" sucedeu uma sociedade "pibocêntrica". Já não é o Homem mas o Rendimento ou Valor que este produz que é o grande dínamo da acção atual da história.
Sou um pragmático. Não sou um revolucionário nem convivo bem com extremos, onde a ignorância e o senso comum ora pressiste ora escasseia, respetivamente. Por isso acredito que há margem de transformação positiva dentro dos paradigmas atuais, operando dentro das suas macro balizas e fronteiras. É o caso desta ideia de gestão flexível do nosso período de inatividade laboral ao longo do ciclo de vida. Efetivamente consigo enumerar múltiplas vantagens, sociais e até económicas, senão vejamos as seguintes:
1. Os indivíduos poderiam organizar a sua vida ativa de forma mais flexível, conciliando as exigências de uma sociedade capitalista de produção rendimento, com objetivos autodeterminados de realização pessoal enquanto estão na plenitude das suas faculdades e potencial, podendo conviver com a pausa e "negatividade" reequilibradora do espírito, com uma consciência que se pretende mais demorada do que o envolve e da sociedade em que se insere. Indivíduos eventualmente mais conhecedores, mais conscientes, melhores cidadãos, menos exaustos, menos reactivos, mais felizes.
2. Antecipando os períodos de inatividade laboral, os Indivíduos teriam assim uma percepção transparente da contribuição e benefícios que envolem os 33,75% de contribuições totais para a SS (entre trabalhador e empregador). Percepcionando a possibilidade de usufruto dos benefícios num horizonte próximo e não longínquo, mais conciente e proativamente contribuiriam e maior controlo eles próprios exerceriam sobre a colecta do mesmo. Existiriam naturalmente menos "recibos verdes" e isenções de Segurança Social nos primeiros anos de atividade, pois os indivíduos veriam isso como uma perda de usufruto nos anos vindouros de inatividade laboral.
3. As exigências financeiras aos sistema não cresceriam nominalmente na sua globalidade, pois trata-se de um rebalanceamento temporal, de uma antecipação interpolada de usufruto. Obviamente, essa antecipação traria alguns custos reais acrescidos porque 1 euro hoje vale necessariamente mais que 1 euro daqui a 30 anos. Mas tal poderia ser compensado tanto por acréscimos de contribuição como por acréscimos de produtividade induzidos por este novo paradigma. Com efeito, é expectável que, indivíduos que possuam a possibilidade de fazer 1 "ano sabático" a cada 7 anos de trabalho, sejam mais produtivos porque mais motivados , menos exaustos e mais balanceados psicologicamente. Falo por experiência própria, existe uma fenómenos de "restart" que nos dá nova energia, uma vontade de nova "positividade" mas agora de natureza endógena. A própria transferência temporal de rendimento alocados de "reformados futuros" para "jovens adultos presentes", alocaria temporalmente rendimento a segmentos com maior propensão ao consumo, enquanto salários mais elevados continuaram a ser pagos pelas organizações públicas e privadas durante mais tempo a indivíduos no topo de carreira, com benefícios para o montante total de contribuições. Haveriam muitas contas complexas a serem feitas, modelos a estimar impactos, whatever. Mas a discussão nunca poderia ser somente na perspetiva do Rendimento Potencial. Era enfermar do mesmo pecado original que nos trouxe até aqui.
4. Existe um desafio óbvio para as organizações em termos de organização das carreiras, na forma de gestão dinâmica da sua força de trabalho por forma a compensar períodos interpolados de inatividade. Mitos inenarráveis serão erigidos acerca do impacto negativo nas empresas, na produtividade, nas carreiras, na perda de competitividade, na deslocalização de empresas, todo esse "rol" de lugares comuns já gastos. Contudo, as empresas são as organizações mas plásticas e moldáveis que existem, porque não têm tempo a perder e têm de competir por recursos, que se apresentarão potencialmente mais limitados em "stock". Logo encontrarão caminhos para se moldarem eficazmente a essa nova realidade. Possuem os recursos financeiros, o conhecimento e a tecnologia para serem as "lebres" de sincronização rápida com a mudança da sociedade civil, tal como previsto por Alvin Tofler em Revolução da Riqueza.
5. Somente o debate aberto e abrangente desta ideia daria uma centralidade e notoriedade significativa a uma discussão necessária sobre formas alternativas e progressistas de organização da vida ativa dos indivíduos, em que o Homem se concilia com o Rendimento num contrato social de longo prazo. Onde objetivos sociais, políticos e económicos podem discutir-se e coordenar-se sem rupturas desnecessárias. Sem descontinuidades. E Portugal deveria ter o arrojo de, por uma vez, não olhar para um "benchmark" de políticas internacionais e alinhar-se pela triste média. Deveria sim ter a audácia de ser pioneiro, de ser um caso de estudo internacional e de marcar uma agenda social progressista no mundo.
Bem sei que infindáveis variáveis ficaram aqui por analisar, perpectivas por confrontar, contraditórios por afirmar. Mas é assim que nascem e maturam todas as novas ideias. Que se faça esse caminho e que, da discussão aberta e construtiva, melhores soluções se alcancem. O processo em si já será suficientemente transformador.
PETRUS
6 aParabéns uma utopia realista.
CFO | Senior Accountant | Controller | Project Manager | Finance Manager | Treasury
6 aParabéns. Boa reflexão.
Financial Management
6 aMuito interessante. Parabéns! Arrisco-me a considerar a ideia muito mais construtiva do que a do “rendimento minimo universal”. Talvez permitisse até uma diferente rotatividade/politica de promoções no mercado de trabalho em posições que estão de outra forma normalmente “fechadas”.
Executive Board Member | CFO
6 aParabéns pelo artigo. Muitíssimo interessante l!