Insights de um lavador de pratos
Uma vez li um livro chamado A Sabedoria do Guerreiro Pacífico de Dan Millman.
Um dos momentos mais interessantes do livro é quando o autor descreve como percebeu a importância de cada momento ao observar um homem trabalhando na estação de trem.
Ele disse que o sujeito tinha como fatídica tarefa limpar com um pano embebido em algum produto todos os adereços de um corrimão que percorria toda a estação.
Toda a estação.
Eram inúmeros pedaços de metal paralelamente posicionados por algumas boas centenas de metros, espaçados a coisa de 10 centímetros uns dos outros.
Facilmente o número de metais à receberem aquela delicada limpeza beirava o infinito.
Mas o que mais chamou a atenção do autor não era a quantidade de trabalho que o pobre coitado teria que enfrentar naquele dia. O que o Millman percebeu foi o apreço e carinho com o qual o senhor se dedicava ao trabalho que qualquer um teria feito da forma mais rápida e distraída possível.
Como quem cuidava da coroa de um rei, o trabalhador polia centímetro por centímetro com esmero e dedicação, parando de momento a momento para admirar ou corrigir seu trabalho - a despeito da quantidade de serviço que ainda tinha por vir.
Ali estava um mestre.
Como tal, em tudo o que fazem os mestres se dedicam de coração. Para eles, cada ato é uma cerimônia. Cada momento é uma meditação.
Não sei ao certo o motivo, mas essa lição nunca me saiu da cabeça.
E uma vez pude senti-la na pela, graças à uma banda de Rock chamada Audioslave.
Nessa época eu vivia na Austrália e tinha arrumado um emprego num restaurante. Apesar de ter uma equipe que se revezava nas funções, boa parte das vezes eu lavava a louça do recinto.
Toda a louça.
Nesses dias, milhões - para não dizer centenas de milhões - de canecas, copos, pratos, pires, cumbucas, vasilhas, colheres, garfos e tantos outros apetrechos gastronômicos que eu nem sabia o nome estavam à espera para serem lavados. E o mais interessante é que existe um teorema matemático que comprova que quanto mais você lava, mais material aparece para ser lavado. Não fosse a noite chegar para levar os últimos clientes, você provavelmente teria que permanecer no local pelo resto da vida.
Por incrível que pareça, porém, não era desespero nem ódio o que eu sentia (embora ninguém poderia me culpar por sentir isso). Acontece que o local era abençoado com uma caixinha de som com aquelas entradas que servem em qualquer celular. Naquele dia em especial, enquanto me aventurava pelo maravilhoso mundo das louças infinitas, coloquei um Audioslave pra me ajudar na tarefa. Enquanto a canção Out of Exile tocava me lembrei daquela antiga lição. Me lembrei do mestre que ensinou Dan Millman naquela estação de trem.
O som rolava alto: a guitarra fervia ensandecida e o vocalista cantava um refrão ótimo que dizia: "Uuuuuh, quando você vem pra me levar pra casa e levar minha alma embora?". O ritmo, apesar de denso e poderoso, tinha uma levada suave que casava perfeitamente com o clima daquele narrador misteriosamente aprisionado em seu exílio. Em certo momento, a guitarra parou e a bateria anunciou apenas o cantor repetindo a última frase do refrão com sua voz rouca e absurda.
Arrepiante.
Nessa hora tive um insight. Como raras vezes antes na vida, senti que estava vivo de verdade.
Senti que tudo tinha sentido. Senti que qualquer coisa que eu fizesse seria perfeita. Percebi que cada caneca suja me oferecia a oportunidade única de limpá-la - enquanto eu próprio limpava minha mente. Meditei enquanto ouvia aquele Rock. Sorri e admirei meu trabalho como o senhor na estação de trem. Fiz minha cerimônia enquanto trabalhava. E trabalhei com gosto. Logo não havia mais louça e os últimos clientes se foram, satisfeitos, como geralmente acontecia.
Minha missão naquele dia estava cumprida.
Percebi que trabalhar faz parte da vida. Então por quê não trabalhamos com verdadeiro amor e apreço, seja lá em que for? Cada dia é uma batalha, mas cada batalha traz uma chance de vitória. Há aprendizado em qualquer situação, principalmente nas mais difíceis.
Sou grato até hoje por aqueles pratos e por aquela canção do Audioslave ;)
Texto originalmente publicado no blog Músicas de Andarilho