Jornalismo de padoca

Jornalismo de padoca

Há o jornalismo de telefone (quase inexistente hoje em dia), o jornalismo de contatos (te informam sobre possíveis pautas), o jornalismo de whats (não recomendo fazer e nem ler), o jornalismo de fofoca (sempre vende bem apesar dos estragos que causa na vida de diversas pessoas) e, entre outros, há o jornalismo de rua, que requer literalmente ir pra rua.

 Durante os vários anos que trabalhei em meios de comunicação no interior do país, sempre conciliei o jornalismo de rua com outro que eu adorava, o jornalismo de padaria (em alguns casos se torna jornalismo de boteco).

 No trajeto para o jornal, que fazia a pé, observava a rotina da cidade que amanhecia e parava na padoca para tomar o cafezinho. Enquanto sorvia o líquido calmamente, escutava as conversas, dialogava com conhecidos, fazia descobertas.

 Em cidades pequenas e médias do interior a informação passa por lugares específicos e se você souber captar, tem material para excelentes pautas. A padaria no caminho para o jornal era aquele local mágico que parecia atrair todas as informações da cidade e da região, de política à religião.

Aprendi a valorizar o jornalismo de padoca com o meu primeiro mentor, que logo na primeira semana de trabalho se incumbiu de me levar para todos os lados naquele velho e guerreiro fusca. "Vou te mostrar como a cidade funciona", disse ele. Nessas andanças, o cafezinho na padaria era obrigatório.

Aprendi com ele que a cidade pulsava na padoca.

Há quem prefira o boteco, é claro. Já percebeu quanta informação surge em boas conversas enquanto se toma um café ou um chopp? Muitas! E aprender a filtrar esse volume para selecionar o que realmente valia a pena ser investigado, ampliado, publicado, é um baita exercício.

Quem aprendeu a fazer essa seleção antes da internet e das redes sociais já tem experiência suficiente para fazer curadoria de informações e dados em meio ao excesso que vivenciamos hoje. Não é simples e fácil, mas lá (antes da internet) como cá as mentiras sempre estiveram presentes, da mesma maneira que sempre existiram os responsáveis por "plantar"/espalhar mentiras. Da mesma forma que íamos à padaria em busca de novidades, lá estavam quem sabia fazer daquele ponto comercial o local ideal para divulgar seus pontos de vistas, suas versões dos fatos.

Aos poucos uni o jornalismo de padoca com o de rua. Minhas manhãs eram nas ruas, vivenciando a cidade, encontrando pessoas, visitando instituições, departamentos públicos, indo a centros de saúde, entre outros lugares. Quando fui fazer jornalismo na internet, lá nos anos 2000, levei a prática comigo. E ela se manteve quando assumi a coordenação jornalística de emissora de rádio.

Hoje essa prática é vista como impossível e, mesmo quando se pode adotá-la, preferem o jornalismo de whats e sites. Mais do mesmo, mais do "ouvi dizer", "vi no site tal". Dizem que o mundo acelerou demais e não se pode "perder" tempo na rua. Eu chegava a produzir 12 matérias por dia a partir das descobertas que fazia nas minhas caminhadas e que levavam dias de pesquisa, checagem, realização de entrevistas, entre outras apurações.

E em uma época que não se tinha tanta informação disponível nas pontas dos dedos, era preciso verificar informações em livros, revistas, outros jornais, ouvir especialistas, confrontar dados e informações com variadas fontes. E, quando comecei, antes do IBM com a telinha verde e seus grandes disquetes, datilografávamos tudo.

Hoje é tudo mais prático, dinâmico, melhor. Entretanto, por diversos motivos, os profissionais se trancaram nas empresas ou em suas casas e não vivenciam mais a cidade, nem sequer o bairro em que vivem.

Não sabem dizer onde a cidade pulsa, se na padoca da esquina, no boteco ou naquele aglomerado de jovens aposentados que joga damas ou conversa enquanto realiza as suas atividades físicas diárias. 

E, para piorar, não sabem fazer uma pesquisa decente, filtrar informações e dados, comparar o que têm em mãos com outras fontes, ouvir especialistas, ler artigos e livros sobre o tema, apurar bem antes de publicar, entrevistar diferentes pessoas com pontos de vistas múltiplos. Dá trabalho. Melhor só fazer um vídeo e postar, não importa se o conteúdo diz alguma coisa ou é só para satisfazer o ego de quem posta.

O mundo é outro. Mas a padoca está lá. Basta querer ir tomar um cafezinho e deixar a vida pulsar ao seu redor.

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