“A liberdade religiosa tem sido utilizada como uma desculpa para os evangélicos estimularem ataques contra minorias com seus discursos”

“A liberdade religiosa tem sido utilizada como uma desculpa para os evangélicos estimularem ataques contra minorias com seus discursos”

O jornalista Raphael Tsavkko Garcia publicou uma matéria intitulada Is Brazil Becoming an Evangelical Theocracy? (Página Sojourners, 02/1/2020) sobre os evangélicos no Brasil. Para elaborar a matéria ele fez algumas entrevistas, entre elas ele fez uma entrevista comigo e utilizou alguns trechos desta entrevista em sua matéria. Segue abaixo as minhas respostas sobre a atuação dos evangélicos no Brasil.

O Brasil caminha para uma teocracia evangélica?

O fato é que a sociedade brasileira viu, ao longo de muitos anos, os evangélicos protagonizarem uma redefinição do religioso e parece que tornou-se um caminho sem volta. Hoje os evangélicos já representam quase 30% da população brasileira, há uma grande cultura pública dos evangélicos, a ideia de que as igrejas evangélicas só fazem bem ao país está amplamente disseminada, e no horizonte não há nenhum movimento no sentido de fiscalizar as atividades das igrejas evangélicas, de fiscalizar as movimentações financeiras das igrejas, de fiscalizar os amplos repasses de dinheiro para empresas, de restringir a atuação das igrejas nos meios de comunicação, de restringir a atuação de líderes evangélicos na política e de impedir que partidos políticos sejam controlados por igrejas evangélicas.

Não sei se caminhamos para uma teocracia, mas está claro que os evangélicos no Brasil têm desempenhado um papel muito prejudicial ao jogo democrático. A discussão sobre a liberdade religiosa está hegemonizada, ninguém quer mexer com as grandes igrejas evangélicas, ninguém quer mexer no estatuto jurídico das igrejas, o Ministério Público é simplesmente omisso, e os líderes evangélicos mais moderados têm medo de discutir efetivamente esta questão. A liberdade religiosa tem sido utilizada como uma desculpa para os evangélicos estimularem ataques contra minorias com seus discursos (ataques misóginos, homofóbicos, racistas e de intolerância religiosa). E olhando ao cenário atual de campanhas eleitorais com menos recursos financeiros, com o enfraquecimento dos partidos e dos sindicatos, com menos debates públicos, as igrejas evangélicas representam uma força política muito mais relevante e constituem os principais currais eleitorais.

O que explica, em linhas gerais, o crescimento do neopentecostalismo no Brasil e como tem se relacionado ao bolsonarismo?

Os pesquisadores da religião apontam diversos fatores para este crescimento do pentecostalismo, por exemplo: a presença de lideranças carismáticas; a flexibilidade nos usos e costumes e nos padrões morais; as liturgias mais descontraídas, com muita música e cheias de emocionalismo; a presença na mídia; a pregação da chamada confissão positiva ou da vida vitoriosa; o apego à cura divina e a oferta de serviços mágicos; a teologia da prosperidade; a ênfase na batalha espiritual e no combate ao mal; o papel das igrejas pentecostais como redes de apoio e de integração social; a racionalização empresarial das igrejas; entre outros. Algumas linhas interpretativas enfatizam mais as mudanças culturais, sociais e econômicas que supostamente propiciam o crescimento do pentecostalismo, assim o pentecostalismo seria uma espécie de "resposta" aos problemas econômicos, sociais e pessoais. Outras linhas interpretativas enfatizam mais as próprias estratégias das igrejas e dos líderes pentecostais, assim como a concorrência entre si e entre outras vertentes religiosas, no sentido de atrair frequentadores e membros, e também enfatizam as regulações ou desregulações das atividades das igrejas por parte do Estado. Estes fatores e estas linhas interpretativas não são excludentes entre si, mas talvez não seja possível analisar o pentecostalismo contemporâneo sem olhar para estas formas pelas quais o Estado se relaciona com as igrejas e com os líderes pentecostais.

Tanto o pentecostalismo contemporâneo quanto o bolsonarismo, ambos os movimentos têm se caracterizado pela despolitização das questões, pela defesa de uma concepção de liberdade religiosa que privilegia os evangélicos, pela defesa da cultura pública evangélica, pela associação de determinados valores morais a uma ideia de cultura nacional, pela defesa de agenda em prol da família tradicional, pelo combate à pornografia, pelo combate à pedofilia, pela preocupação com as drogas, etc. São movimentos que estruturam seus discursos e suas práticas sobre uma oposição entre o bem e o mal.

Os dois movimentos convergem em alguns aspectos, mas acredito que é algo conjuntural. O pentecostalismo contemporâneo não é propriamente um movimento que vai no sentido do fundamentalismo ou do literalismo bíblico inflexível; por isso, não vai endossar totalmente as pautas do bolsonarismo. O pentecostalismo vai mudando seu discurso, há uma maleabilidade relativamente grande, e até mesmo o bem e o mal podem ser transmutáveis nos discursos e nas práticas. Pode-se demonizar algum grupo político quando convém e depois estabelecer aliança com este mesmo grupo, pode-se apoiar governos petistas (de Lula e Dilma) e depois apoiar o governo Bolsonaro. Este apoio ao bolsonarismo pode ser só uma estratégia momentânea dentro do projeto das grandes igrejas pentecostais rumo a uma hegemonia religiosa no Brasil.

Quais as possíveis consequências (e o que já estamos vendo) com esse crescimento, em particular para minorias?

Entre as consequências do crescimento do pentecostalismo que já estamos vendo estão: a disseminação da concepção de liberdade religiosa que privilegia os evangélicos, a disseminação de discursos preconceituosos em nome desta liberdade religiosa, a ampliação da cultura pública dos evangélicos, a evocação a um Deus belicoso do pentecostalismo que propaga a guerra espiritual contra o mal, o aumento da presença dos líderes evangélicos na política, a atuação dos evangélicos no legislativo, a ampliação das isenções de impostos sobre igrejas, a ampliação da atuação das igrejas evangélicas na implementação de políticas públicas, a ampliação dos convênios das igrejas evangélicas com órgãos públicos, a associação entre igrejas evangélicas e atividades criminosas, etc. Estas consequências representam impactos negativos para as minorias, principalmente para os adeptos das religiões afro-brasileiras que são amplamente demonizados pelos evangélicos pentecostais e que mais sofrem ataques violentos de intolerância religiosa e racismo.

A escola pública tem sido o palco de diversas disputas encabeçadas principalmente por grupos evangélicos que se opõem ao ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira, que se opõem aos símbolos afro-brasileiros, que se opõem às discussões sobre relações étnico-raciais, sobre relações de gênero, sobre diversidade, etc.; são grupos que utilizam as escolas públicas para realizarem eventos evangélicos, ações sociais das igrejas e até mesmo "atendimentos espirituais". Neste sentido, constata-se um aumento dos casos de intolerância religiosa na educação básica. Eu analisei alguns casos de intolerância religiosa ocorridos no âmbito da educação básica no artigo Intolerância religiosa dos evangélicos na educação básica: breve análise de alguns casos (publicado na Revista Interritórios, 2019).

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Silas Fiorotti é cientista social, mestre em Ciências da Religião e doutor em Antropologia Social, professor-pesquisador, e coordenador do projeto Diversidade Religiosa em Sala de Aula. Desenvolveu pesquisa de doutorado sobre o pentecostalismo contemporâneo em Moçambique e no Brasil. E-mail: <silas.fiorotti@gmail.com>.

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