A MATEMÁTICA É INEXATA!?

A MATEMÁTICA É INEXATA!?

As definições filosóficas de M. por um lado expressam orientações diferentes da investigação nessa área e, por outro, modos diferentes de justificar a validade e a função da MATEMÁTICA no conjunto das ciências. Podem ser distinguidas quatro definições fundamentais:

(*) M. como ciência da quantidade, (*) M. como ciência das relações; (*) M. como ciência do possível; (*) M. como ciência das construções possíveis.

I – "M. Ciência da quantidade". Foi a primeira definição filosófica da M. Essa definição foi claramente formulada por Aristóteles, mas já estava implícita nas considerações de Platão sobre a aritmética e a geometria, que tendiam sobretudo a evidenciar a diferença entre as grandezas percebidas pelos sentidos e as grandezas ideais, que» são objeto da M. (PLATÃO, Rep., VII, 525-27).

Aristóteles dizia:

"O matemático constrói sua teoria por meio da abstração; prescinde de todas as qualidades sensíveis, como peso e leveza, dureza e seu contrário, calor e frio, e das outras qualidades opostas, limitando-se a considerar apenas a quantidade e a continuidade, ora em uma só dimensão, ora em duas, ora em três, bem como os caracteres dessas entidades, na medida em que são quantitativas e continuativas, deixando de lado qualquer outro aspecto delas. Consequentemente, estuda as posições relativas e o que é inerente a elas: comensurabilidade ou incomensurabilidade e proporções" (AM., XI, 3, 1601 a 28; cf. Ms., II, 193 b 25).

Esse conceito de M. persistiu por muito tempo e só no século passado começou a parecer' insuficiente para exprimir todos os aspectos desse campo de estudos. O próprio Kant traduzia-o para a linguagem de sua filosofia. Para ele, a M. distinguia-se da filosofia porque, enquanto esta procede por meio de conceitos, a M. procede por meio da construção de conceitos; mas a construção de conceitos só é possível em VI. com base na intuição apriorístico do espaço, que é a forma da quantidade em geral.

E diz:

"Quem pensou distinguir a filosofia da M. dizendo que esta tem como objeto apenas a quantidade tomou o efeito pela causa. A forma do conhecimento da M. é a causa de ela poder referir-se unicamente a quantidades. Na verdade, só o conceito de quantidade pode ser construído, ou seja, exposto apríori na intuição do espaço" (Crít. R. Pura, Dout. do mét., cap. I, seç. 1).

O conceito de M. como construção— portanto, de algum modo como intuição— retornou na M. contemporânea (v. mais adiante, n. 4). Mas o conceito de M. como ciência da quantidade foi repetido numerosas vezes pelos filósofos. Croce reitera destemidamente ao conceito desta forma: "As M. fornecem conceitos abstratos que possibilitam o juízo numérico; constróem os instrumentos para contar e calcular e para realizar aquela espécie de falsa síntese a priori, que é a numeração dos objetos individuais" (Lógica, 1920, p. 238).

II – A segunda concepção fundamental considera a M. como ciência das relações, portanto estreitamente ligada à lógica ou parte desta.

Os antecedentes dessa concepção podem ser encontrados em Descartes, que afirmava:

"Embora as ciências comumente chamadas de matemáticas tenham objetos diferentes, estão de acordo quanto a considerarem apenas a.s diversas relações ou proporções neles encontradas" (Discours, II).

O conceito leibniziano de ars comhincitoria (v.) ou M universal sem dúvida pode ser considerado o início do conceito da M. como lógica, mas não impedia que o próprio Leibniz aderisse ainda ao conceito tradicional de M. como arte da quantidade (Dearte combitiatoria, 1666. Froemium, 7, em Op., ed. Erdmann, p. 8). Obviamente, a estreita conexão da M. com a lógica começou a evidenciar-se como característica da M. só quando a lógica assumiu a forma de cálculo matemático. Segundo Boole. uma vez. que

"as últimas leis da lógica têm forma matemática",

a apresentação da lógica em forma de cálculo não é arbitrária, mas representa algo que decorre das próprias leis do pensamento (Laws oj 'Ihougbt, 185), cap. I, § 10). Os estudos de Declekind sobreos fundamentos da aritmética (Was sínd un solleu die Zahlen?. 1887) seguem a mesma ordem de idéias. Mas quem mais contribuiu para inscrever a M. no domínio da lógica foi Frege e sua polêmica contra o psicologismo. F. num ensaio de 1884, mostrava a importância do conceito de relação para a definição do número natural; dizia:

"O conceito de relação pertence — tanto quanto o conceito simples — ao campo da lógica pura. Aqui não interessa o conteúdo especial da relação, mas exclusivamente sua forma lógica. Se algo pode ser afirmado sobre ela, a verdade desse algo é analítica e reconhecida a priori" (Hine logisbmathematische lintersuchung überden Begriff der Zabl, 1884, § 70, trad. it., em Aritmética e lógica, p. 139).

A partir daí pode-se considerar consolidada a conexão da M. com a lógica através da teoria das relações; essa conexão foi constantemente pressuposta nas definições de M. Todavia mesmo as definições que têm esse fundamento em comum foram formuladas de modos diferentes. A formulação mais óbvia de uma definição deste tipo é a que considera a M. como "teoria das relações". Poincaré expunha essa definição na forma geral, afirmando:

"A ciência é um sistema de relações. Só nas relações deve-se buscar objetividade, e seria vão buscá-la nos seres isolados" (La valeur de iascience, 1905, p. 266).

Esse conceito foi adotado por Russell, que via a coincidência entre M. e lógica justamente no âmbito da teoria das relações e julgava que o tema comum das duas ciências era a forma dos enunciados, definida como

"aquilo que permanece invariável quando todos os componentes do enunciado são substituídos por outros", ou seja, quando o enunciado se transforma em pura relação (Intr. to Mathematical Philosophy, 1918, cap. XVIII).

Por outro lado, Peirce, mesmo admitindo a conexão entre M. e lógica, procurara distinguir ambas, afirmando que, enquanto a M. é a ciência que infere conclusões necessárias, a lógica é a ciência do modo de inferir conclusões necessárias.

"O lógico nào está muito preocupado com esta ou aquela hipótese ou com suas conseqüências exceto quando isso pode lançar luzes sobre a natureza do raciocínio. O matemático interessa-se muito pelos métodos eficientes de raciocinar, visando à sua possível extensão para novos problemas, mas, enquanto matemático, não se preocupa em analisar as partes de seu método cuja correção é dada como óbvia" (Coll. Pap., 4.239).

Essa distinção, porém, baseava-se na noção de lógica como ciência categórica e normativa (Ibid. 4.240), o que nào fez carreira na lógica contemporânea, cujo caráter convencional se acentuou cada vez mais. Portanto, a melhor definição de M., desse ponto de vista, é dada por Wittgenstein:

"A M. é um método lógico. As proposições da M. são equações, portanto pseudoproposições. A proposição matemática não exprime pensamento algum. De fato, nunca precisamos de proposições matemáticas na vida, mas as empregamos apenas com o fim de, a partir de proposições que não pertencem á M, tirar conclusões que se expressam em proposições que tampouco lhe pertencem" ( Traclalus, 1922. 6.2; 6.21; 6.211).

As equações da JVÍ. correspondem às tautologias da lógica (Ibid., 6.22) e, como estas, nada dizem. Ponto de vista análogo foi expresso por Camap: "Os cálculos constituem um gênero particular de cálculos lógicos, distinguindo-se deles pela maior complexidade. Os cálculos geométricos são um gênero particular de cálculos físicos" (Foundatioris of Logic and Mathematics, 1939, § 13). Esta é a melhor formulação da tese do logicismoiv.). Segundo esse ponto de vista, em primeiro lugar deve-se construir uma lógica exata, para em seguida dela extrair a M., do seguinte modo: V' definindo todos os conceitos da M. (vale dizer, da aritmética, da álgebra e da análise) em termos de conceitos de lógica; 2L) deduzindo todos os teoremas da M. a partir dessas definições e por meio dos princípios da própria lógica (inclusive os axiomas cie infinidade e de escolha) (cf. C. G. HEMPEL, "On the Nature of Mathematical Truth", 1925, em Readíngs in the Phílosophy of Science, 1953, p. 59).

III – A terceira concepção fundamental de M. pertence à corrente formalista e pode ser assim expressa: a M. é "a ciência cio possível", onde por possível se entende aquilo que não implica contradição.

Desse ponto de vista, a M. não é parte da lógica e nào a pressupõe. Do modo como foi concebida por Hilbert e Bernays (Grundlagen der Matbematik, I, 1934; II, 1939), a M. pode ser construída como simples cálculo, sem exigir interpretação alguma. Torna-se, então, um sistema axiomático no qual:

1'-' todos os conceitos básicos e todas as relações básicas devem ser completamente enumerados, integrando-se neles, por meio de definição, quaisquer conceitos ulteriores;

2" os axiomas devem ser completamente enumerados e destes deduzidos todos os outros enunciados em conformidade com as relações básicas. Nesse sistema, a demonstração matemática é um procedimento puramente mecânico inferindo de fórmulas, mas ao mesmo tempo acrescenta-se a M. formal uma metamatemática constituída por raciocínios não formais em torno da M. "Desse modo" — disse Hilbert —

"realiza-se, por meio de trocas contínuas, o desenvolvimento da totalidade da ciência matemática, de duas maneiras: inferindo dos axiomas novas fórmulas demonstráveis por meio de deduções formais e acrescentando novos axiomas e a prova de não-contradição, por meio de raciocínios que tenham conteúdo."

 A M. constitui, então, um sistema perfeitamente autônomo, ou seja, nào pressupõe um limite ou um guia fora de si mesma e desenvolve-se em todas as direções possíveis, entendendo-se por direções possíveis as que nào levem a contradições. Portanto, é essencial para esse conceito da M. a possibilidade de determinar a posübiliãaí/cJ (não-contradição) dos sistemas axiomáticos. Mas foi justamente essa possibilidade que o teorema descoberto por Gõdel em 1931 pôs em dúvida: segundo ele, não é possível demonstrar a nào-contradiçào de um sistema S com os meios (axiomas, definições, regras de dedução, etc.) pertencentes ao mesmo sistema S; para efetuar tal demonstração, é preciso recorrer a um sistema 5i, mais rico em meios lógicos que SCÍJber formal unentscheidbare Sãtze der Principia Mathematica und verwandter Systeme", em MonatschriftefürMathematik und Physik, 1931, pp. 173-98). Esse teorema de Gòdel teve grande ressonância na M. moderna. Até agora foi possível demonstrar a nâo-contradiçâo de algumas partes da M., como p. ex. da aritimética (demostrado por Gentzen em 1936), mas não se avançou muito nessa direção; por isso,

a "ciência do possível" hoje acredita que sua missão mais difícil é mostrar a "possibilidade" de suas partes. Quanto à possibilidade da M. como sistema único e total, obviamente foi excluída pela formulação do teorema de Gòdel, que também mostrou os limites da axiomática ao demonstrar que nenhum sistema axiomático contém "todos" os axiomas possíveis e que, portanto, novos princípios de prova podem ser continuamente descobertos.

Outra conseqüência do teorema de Gõdel é uma limitação das capacidades das máquinas calculadoras, cuja construção toi enormemente facilitada pelo conceito formalista da M. De fato, pode-se construir uma máquina para resolver determinado problema, mas não uma máquina que seja capaz de resolver todos os problemas (cf. E. NAGKL-G. R. NKWMANN, Gõdels Proof, 1958, pp. 9» ss.).

IV – Segundo a quarta concepção fundamental, a M. é a ciência que tem por objeto a possibilidade de construção.

Trata-se, como se vê. da noção kantiana da M. como "construção de conceitos"; por isso, essa corrente comumente é chamada de intuicionismo, mas seus precedentes podem ser percebidos na polêmica antiformalisla de Poincaré, na obra de Kronecker (Uber deu Zahlbegriff, 1887), na tendência empirista de alguns matemáticos franceses (Borel, Lebegue, Bayre), no filósofo vienense R Kuufmann. e em outros. Segundo Brouwer, que é um dos principais representantes do intuicionismo, a M. identifica-se com a parte exata do pensamento humano e por isso não pressupõe ciência alguma, nem a lógica, mas exige uma intuição que permita apreender a evidência dos conceitos e das conclusões. Portanto, não se deve chegar à.s conclusões a partir de regras fixas contidas num sistema formalizado, mas cada conclusão deve ser diretamente verificada com base em sua própria evidência. Desse ponto de vista, o procedimento c/e demonstração matemática não tem em vista a dedtiçào lógica, mas a construção de um sistema matemático. Brouwer insiste no fato de que, mesmo no caso de uma demonstração de impossibilidade através da evidência de uma contradição, o LISO do princípio de contradição é apenas aparente: na realidade, trata-se da afirmação de que Lima construção matemática, qLie deveria satisfazer a certas condições, não é realizável (cf. A. HHYTING, Mathematische Gntndlagenforschung. Inluitioiüsmus nnd Beweistheorie, 1934 [trad. ft\, 1955], I. 5, 1). Na esteira de Brouwer, Heyting demostrou que, apesar de o princípio de contradição poder ser utilizado, o mesmo não acontece com o princípio do terceiro excluído (\.) (Dieformalen Regehi der intuitionistischen Logik, in L. B. Preusz. Akad. Wiss., 1930).

O intuicionismo. apesar cie definir a M. como a ciência das construções possíveis, não recorre, como Kant, á intuição a priori do espaço, nem a forma alguma de intuição empírica ou mística. A construção de que o intuicionismo fala é conceituai e não se refere a fatos empíricos. Heyting resumiu desta forma o ponto de vista de Brouwer: 1" a M. pura é uma criação livre do espírito e não tem relação alguma com os fatos de experiência; 1" a simples constatação de um fato de experiências sempre contém a identificação de um sistema matemático; 3" o método da ciência da natureza consiste em reunir os sistemas matemáticos contidos nas experiências isoladas em um sistema puramente matemático construído com este fim (cf. HEYTING, op. cit., IV. 3).

Se considerarmos essas conclusões, veremos que a distinção entre formalismo e intuicionismo (entre a terceira e a quarta concepção da M.) não é tão radical quanto poderia parecer. Em primeiro lugar, a construção que os intuicionistas vêem como objeto do procedimento matemático é formal e sua possibilidade é determinada por regras formais. Por outro lado, os limites do formalismo evidenciados pelo teorema de Gòdel ressaltam o valor de algumas exigências apresentadas pelo conceito intuicionista da matemática. E já que é difícil ignorar a importância do aspecto lingüístico da AI., que serviu de base para o /ogicismo, o pensamento matemático contemporâneo é dominado por certo ecletismo (cf. p. ex. E. W. BKTH. Les fondements logiques des mathématiqiies, 2- ed., 1955). Entretanto, do ponto de vista filosófico, vale dizer, do ponto de vista dos conceitos básicos e das orientações gerais de estudo, as diferenças nas definições enunciadas neste verbete continuam sendo importantes.

Fabrina Moreira Silva

Doutora em Filosofia pela PUC-SP

2 m

Exata ela é, ela só não é um sistema fechado, hermético. Possui “incompletudes”, o que abre possibilidades para uma certa discussão sobre a sua exatidão.

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