Nos rigores e limites das leis
Desde que me conheço por gente, ouço uma famosa frase sobre as leis que diz: “No Brasil, existem leis que pegam e as leis que não pegam!” Além desta fatídica frase, existem outras na mesma ordem que fazem parte do cotidiano brasileiro e traduzem um pouco da nossa cultura por meio das leis.
Outro exemplo: “Aqui, há lei para rico e lei para pobre!” Leis que privilegiam brancos e que encarceram, preferencialmente, pretos. Existem também leis “para inglês ver”. Essas últimas remetem ao período da escravidão, quando os portugueses criaram uma lei para mostrar para os ingleses que estavam fora do tráfico negreiro. Mas, por baixo dos panos, continuavam traficando vidas humanas.
Essa relação de respeito e desconfiança com as leis tem nos levado a desacreditar – e, muitas vezes, questionar – o principal derivado da lei, que é a justiça, pois não há justiça sem lei. Talvez, por isso, entre as funções mais presentes no Parlamento brasileiro está a dos advogados.
Analisando nossas Câmaras Legislativas, olhando pelo prisma da formação superior de grande parte dos componentes, eles são quase que uma extensão do outro poder: o Judiciário. Enfim, homens da lei.
Nesta semana, dois fatos ocorridos e de grande repercussão midiática ilustraram bastante essa questão das leis, e da interpretação das mesmas, e do poder com que classe, raça, poder econômico e as idiossincrasias correlatas se articulam em torno das leis em nosso país.
Após mais de um mês sob pressão, o empresário Fernando Sastre de Andrade Filho, de 24 anos, foi parar na cadeia, em São Paulo, por se envolver em um acidente de trânsito com morte.
A prisão só se deu por conta da pressão exercida por amplos setores da sociedade que ainda tentam entender como Fernando conseguiu se evadir do local mesmo com a chegada e o flagrante da policia no local do acidente – já que, por lei, Fernando teria que ser interrogado?
Recomendados pelo LinkedIn
Em paralelo ao absurdo desfecho da prisão do empresário, que dirigia um Porsche, também foi preso nesta semana o ex-atacante do Corinthians Jô, pelo não pagamento de pensão alimentícia para a sua ex-mulher.
A lei que pune com cadeia o delito de não pagamento de pensão alimentícia é das mais temidas no Brasil. Afinal, essa não escolhe raça, credo, cor ou condição social – aparentemente na sua essência, uma das mais justas do país, e que demonstra também a sua efetividade.
Olhando as duas sentenças, com os rigores da lei, há de se dizer que a lei foi cumprida – principalmente, a inquestionável lei da pensão. Porém, olhando a grosso modo, há de se pensar quem mais correria risco de ir parar na cadeia por não pagamento de pensão alimentícia: uma pessoa com o perfil do atacante Jô ou do empresário Fernando, do Porsche de R$ 1 milhão?
Em suma, leis que aparentemente deveriam ser justas e iguais para todos, em quaisquer circunstâncias, podem aparentemente ser justas, mas não iguais para todos.
Como entender que a lei do não pagamento de pensão alimentícia leva um sujeito tão rapidamente para a cadeia e uma lei que pune também com cadeia uma morte no trânsito, em que todas as evidências indicam embriaguez ao volante, pode demorar mais de um mês para colocar o responsável na cadeia? São questões que o país dos legisladores e executores das leis ainda não consegue responder.
Texto publicado originalmente pela CNN Brasil e Revista Raça