O barulho que o silêncio faz

O barulho que o silêncio faz

por Giovanni Perlati

Reveillon, Carnaval, festas e baladas o ano todo, qualquer hora é hora, qualquer lugar é lugar. Um carro bonito, um som potente, garrafas de vidro e ruídos estridentes. Selam angústias, amnésias temporárias. O barulho é a companhia que desejamos para esquecer quem somos por algum momento? Mas o silêncio pode ser ainda mais ruidoso que qualquer barulho, porque promove o encontro de nós com nós mesmos.

Imagine o seguinte cenário: a torcida eufórica, milhares de pessoas nas arquibancadas, 22 homens concentrados no gramado. O árbitro caminha até o centro do campo e quando todos esperam o apito inicial do jogo, ele pede um minuto de silêncio. Alguém morreu e precisa ser lembrado, precisa deste respeito. E se o silêncio representa o aquietar em memória de alguém que se foi, ele está muito além de um simples cessar de ruídos. Ele vai até a mente de poucos que ali se importam para representar boas memórias e o luto, o silêncio é importante ao ser humano.

O luto, o respeito, a memória e a homenagem são da cultura e do comportamento humano, assim como o silenciar. Sendo assim, podemos nos provocar sobre o que é, quando e como o silêncio se manifesta em nós e porque as pessoas optam por ele. Afinal de contas, o silêncio se refere somente à fala e escuta? A Revista Ethos provocou esta reflexão em três pessoas que se relacionam de formas diferentes com o silêncio. Um professor de yoga, um músico e um deficiente auditivo. As conclusões a partir do próximo parágrafo são subjetivas, mas podem ajudar a pensar mais sobre os diversos tipos de silêncio.

O fato é que independentemente das diferentes facetas do silêncio, vivemos em um mundo cada vez mais ruidoso. Talvez reflexo da vida moderna, das tecnologias, das ansiedades e do imediatismo, talvez um efeito colateral do estilo de vida que escolhemos. As pessoas falam cada vez mais alto, tem equipamentos cada vez mais barulhentos, carros, escapamentos, buzinas, som, sapatos, roupas e badulaques de todos os tipos. Aplaudem sem necessidade, soltam fogos e gritam umas com as outras. E a existência se torna um liquidificador de barulho, desencontros e ansiedade.

“A necessidade cada vez mais aguda de ruído só se explica pela necessidade de sufocar alguma coisa.” A frase foi citada pelo escritor austríaco e prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina, Konrad Lorenz. Embora antigo, o tema nos encaminha para uma discussão filosófica sobre algo tão banal e que incomoda tanta gente de forma inconsciente. Mas a falta de silêncio da sociedade pode refletir não só as suas angústias da alma, mas também fatores comportamentais do humano nos dias de hoje.

Analisando isoladamente a frase de Konrad, podemos refletir sobre estes fatores comportamentais. De acordo com o psicólogo Rubens Reinaldo Ruiz, de Jaú, para analisar a frase solta e descontextualizada, é preciso buscar entender o que o autor quer dizer com necessidade de ruído. A que tipo de ruído o autor se refere de fato? “Para ele, a única explicação está na ‘necessidade de sufocar alguma coisa’. Mas pode ser, também, por desejo de incomodar. Pode ser por desejo de chamar a atenção. Pode ser um tipo de protesto”, conclui.

Silêncio que eleva

Meditar se torna um desafio para muita gente, pois se trata não só de calar a boca e o corpo, mas aquietar a alma, a mente e o coração com um exercício cada vez mais raro, parar tudo o que está fazendo. “Tudo é muito sonoro, colorido, chamativo, luminoso, estas coisas agitam muito nossa mente, são informações que ficam gravadas no subconsciente. Raramente fazemos uma pausa durante o dia e nos voltamos para nosso interior e nos aquietamos”, afirma o professor de Yoga, Rodrigo Furuta, 29 anos.

Para ele, entender o silêncio e praticar a meditação pode provocar grandes mudanças nas pessoas de modo individual e também na sociedade. “Se todos tivessem o hábito de parar alguns minutos por dia, se afastar de estímulos sensoriais e aquietar-se por alguns instantes, seguramente a sociedade estaria mais em paz e trilhando um caminho mais próximo do amor.”

Furuta explica que as pessoas confundem a busca por meditação ou Yoga com práticas religiosas ou pensam que é necessário se enquadrar em algum grupo social ou seita. “Qualquer pessoa, de qualquer idade, sexo, religião, crença, formação pode praticar. Existe muita mistificação na cabeça das pessoas para algo que é simples e puro, algo que na verdade está na essência do ser humano: buscar a paz e a felicidade.”

O psicólogo Rubens Reinaldo Ruiz reitera que a concentração, a questão da inquietação e geração de ruídos, são fenômenos que não podem ser generalizados pois não dependem única e exclusivamente do silêncio. “É impossível generalizar e determinar razões. O máximo que se pode fazer é descrever possibilidades e, mesmo assim, poderão aparecer outras que não pensamos. O ser humano é surpreendente e fantasticamente único. Ninguém é ou faz as coisas como outra pessoa.”

De olhos fechados

Quando nos queixamos de muito barulho no ambiente, quase sempre é por uma questão de incômodo. Queremos realizar alguma tarefa simples, mas o ambiente agitado não possibilita a concentração, o que para muitos é perturbador. Mas você já parou para refletir como essa necessidade de silêncio vai além dos sons e pode ser percebida e sentida por todos, inclusive por um deficiente auditivo? Com o auxílio do intérprete de Linguagem Brasileira de Sinais (Libras), Adauto Antonio Caramano, entrevistamos uma pessoa para tentar compreender como é essa percepção.

A professora Mariana Didone, 22 anos, nasceu com surdez profunda após a sua mãe ser acometida por rubéola durante a gestação. A sua deficiência foi descoberta aos 23 dias de vida, quando seu irmão José Augusto, estourou uma bomba perto do carrinho de bebê onde ela dormia, após o estrondo sua mãe percebeu que ela não acordou com o forte ruído. Ela provavelmente teria acordado com o susto ou esboçado alguma reação como o choro. Como reagimos de forma intuitiva com relação aos ruídos, é fascinante tentar compreender como ela percebe a questão do silêncio nos ambientes.

“Para meus ouvidos, há silêncio, mas para existir a tranquilidade e concentração é necessário fechar os olhos, pois como sou surda, a visão fica mais 'sensível' à qualquer manifestação do que acontece ao meu redor”, traduz o intérprete de Didone. Ela usa um aparelho auditivo que permite que ela ouça alguns ruídos sonoros como gritos, ‘cantadas de pneus’ e sirenes, o que se complica em ambientes barulhentos. Seus olhos assumiram o papel sensível dos ouvidos e a paz, contemplada no silêncio de quem ouve, pode ser alcançada por ela ao fechar os olhos.

Entre pausas e notas

Não dá para refletir sobre barulho, silêncio, alma e estímulos sensoriais, sem falar de música. Os sons emitidos de forma linear, organizada e compassada, são talvez a melhor forma de representar o poder que a manifestação do som tem de intervir em qualquer ambiente. É assim com o canto dos pássaros e com os sons da natureza. Tudo se resume a palavra harmonia e talvez ela seja o retrato fidedigno de que é possível conviver com os ruídos e sons, desde que estes interfiram de forma coerente em nossa realidade.

A pianista e professora de música Carolina de Oliveira Corrêa, 31 anos, de Botucatu, tem uma relação direta com a harmonização de sons e durante as suas aulas procura ensinar na prática a diferença entre o que é ruído, o que é som e porque o silêncio é importante. “Acontece muito em aulas minhas, por exemplo, eu ouvir buzina aqui, da rua, carro com som alto, isso é muito comum e normalmente eu paro a aula, espero passar, e depois dou continuidade.”

Para ela o silêncio compõe de forma fundamental a estrutura harmônica das músicas e talvez, em alguns tipos de música, seja mais possível perceber a interferência que o som organizado e o silêncio tem em nós. Algo como um efeito que ameniza ou afasta o caos interno. “Inclusive usamos figuras musicais para representar o silêncio também, as chamadas pausas ou figuras negativas. A música é um equilíbrio de som e silêncio, o efeito ‘anti-caos’ é percebido dentro de cada um”, conclui.

Gritaria interna

Ficar um dia, dois ou três sem falar absolutamente nada pode ser algo inimaginável para alguém que está acostumado a se manifestar a todo instante. Imagine que existe uma técnica de meditação com mais de 2.500 anos que tem como proposta o silêncio absoluto por 10 dias, apenas meditando e observando a respiração.

Para o professor de Yoga, Rodrigo Furuta, 29 anos, a incrível experiência teve efeitos e resultados muito particulares. “Durante os 10 dias muita coisa passa pela tua mente e apesar do silêncio geral entre as pessoas, posso afirmar que a ‘gritaria interna’ faz muito mais barulho que se todos estivessem falando ao mesmo tempo. É uma experiência muito profunda e te faz crescer muito.”

O curso de meditação Vipassana acontece o ano todo no interior do Rio de Janeiro e agora também no interior de São Paulo. Vipassana é o nome da técnica de meditação que Buda usou para se iluminar e foi mantida intacta por gerações e gerações de mestre. Mesmo com o budismo tendo se misturado com diversas culturas orientais a técnica permaneceu inalterada ao longo destes 2.500 anos.

Matéria publicada originalmente na Revista Ethos, de Barra Bonita(SP), edição de maio de 2014

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