O crescimento econômico é a saída para crise?
Em tempos de quarentena devido ao novo coronavirus, a atenção de todos nós está voltada – queiramos ou não – para o número de casos de covid 19, lockdown, óbitos, etc. E não é para menos. No momento que escrevo este texto, o Brasil caminha para se tornar o epicentro da pandemia, em curva ascendente de ocorrência e de casos fatais.
Este cenário veio agravar ainda mais a situação econômica em todo mundo – que já não era boa - e, em especial, nos países da periferia do sistema, como é o caso do Brasil, que ainda não se recuperou da recessão de 2015-2016.
Vivemos uma situação crítica de saúde pública, sabemos disso, mas, que tudo indica, deverá ser contornada – a fase aguda - em mais alguns meses ou talvez em um ano e, então, voltaremos a falar em crescimento da economia, aumento do PIB, “desenvolvimento”, ainda com mais urgência e determinação do que antes da pandemia. Ocorre, entretanto, que a crise sanitária que vivemos está inserida em um contexto mais amplo e ainda mais crítico de mudanças globais, decorrentes das gravíssimas alterações feitas no meio ambiente por ação humana, quer seja para o provimento de recursos naturais para a produção de bens ou para execução de serviços, quer seja para o uso das capacidades da natureza para depuração de poluentes das atividades humanas.
O amigo leitor pode estar pensando nesse momento: “estamos vendo o mundo inteiro entrar em crise por causa do coronavirus e você vem me falar em preocupações com meio ambiente?!? Precisamos garantir é o crescimento da economia, gerar emprego, renda...depois que passar a crise a gente fala sobre meio ambiente.”
Bem, entendo perfeitamente o questionamento. Vivemos sob o paradigma da expansão da economia como gerador das condições necessárias de sobrevivência por muitas gerações e é natural que esta seja nossa resposta automática para sairmos de qualquer crise econômica. Mesmo que saibamos que uma parcela significativa da população não tenha garantidas essas condições mínimas de sobrevivência, ainda sim, parece não existir outros caminhos realmente viáveis a se trilhar nesse campo.
Ocorre que mesmo para esta alternativa de recuperação econômica, digamos, tradicional, haverá cada vez mais questionamentos, restrições e, mesmo, dúvidas sobre sua eficácia.
Como sabemos, vivemos em um mundo onde existem recursos naturais que são renováveis e não renováveis, sendo que todas as condições da nossa vida material dependem do uso destes recursos. O problema é que desde a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, exploramos intensamente e ininterruptamente os recursos naturais não renováveis do planeta. E, justamente por não serem renováveis, inexoravelmente chegaríamos ao limite da disponibilidade destes recursos para uso na produção de bens e serviços.
Há algumas décadas – pelo menos desde os anos 1960 - muitos cientistas estão nos alertando que teríamos chegado (ou até já ultrapassado) o limite da capacidade do planeta de garantir as condições necessárias para a manutenção do atual modo de vida que nos trouxe até aqui.
Um desses “avisos” ocorreu em 1972, quando Dennis L. Meadows e um grupo de pesquisadores do Instituto Tecnológico de Massachussets publicaram o relatório “Limites do Crescimento", que asseverou que “se a tendência do crescimento da população, poluição, industrialização, produção de alimentos e exploração de recursos naturais se mantiver, os limites do planeta serão atingidos em 100 anos”. Este estudo teve grande impacto e foi o principal insumo para a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, em 1972, na cidade sueca de Estocolmo.
Outro trabalho também muito emblemático, que mostra o quanto nós já modificamos as condições naturais do planeta, foi elaborado pelo Programa Internacional da Geosfera-Biosfera (IGBP).
Uma das conclusões do IGBP é que a segunda metade do século XX é única na história da existência humana, uma vez que muitas atividades tiveram um crescimento acima do padrão verificado até então (Figura 1) e estas provocaram alterações ambientais sem precedentes (Figura 2). Este período, iniciado por volta de 1950, é chamado de “Grande Aceleração”.
Figura 1. Tendências de 1750 a 2010 em indicadores de desenvolvimento socioeconômico. Fonte: STEFFEN (2015). Elaboração: Carlos Lacerda.
Diante deste cenário, a questão ambiental passou a ocupar um espaço cada vez mais importante nas agendas de organizações governamentais e da sociedade em geral. Entretanto, por mais que haja, inegavelmente, grandes esforços de pessoas e organizações em prol da compatibilização das necessidades humanas com a disponibilidade dos recursos naturais, o fato é que estes esforços ainda não foram suficientes para que este desejado equilíbrio tenha sido alcançado.
Um novo esforço foi acordado entre 193 chefes de estado em setembro de 2015 para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade por meio de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem alcançados até 2030. É a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Figura 2. Tendências de 1750 a 2010 em indicadores ambientais. Fonte: STEFFEN (2015). Elaboração: Carlos Lacerda.
Pesquisadores do Centro de Resiliência de Estocolmo (da Universidade de Estocolmo) e da Escola Norueguesa de Negócios rodaram simulações computacionais que consideravam as condições socioeconômicas dos países, as nove fronteiras planetárias (sendo “mudanças climáticas” e “perda de biodiversidade” as mais importantes) e as estratégias de como as sociedades destes países atenderiam aos ODS, baseadas nas seguintes questões:
- As sociedades mundiais escolherão principalmente esforços convencionais ou extraordinários para alcançar os ODS?
- E se as políticas convencionais continuarem, haverá as mesmas taxas de crescimento ou haverá crescimento econômico acelerado?
E se forem empreendidos esforços extraordinários, serão do mesmo tipo de políticas que já vimos, só que mais fortes e com mais empenho?
- Ou as sociedades adotarão novos tipos de estratégias e ações transformacionais?
A combinação das respostas destas questões gerou 4 cenários de atendimento aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Fig.3).
Figura 3. Esquema lógico de construção de cenários para atendimento dos ODS. Fonte: RANDERS (2018)
A seguir, são apresentadas as descrições dos cenários, conforme o relatório: “A transformação é viável - Como alcançar as metas de desenvolvimento sustentável dentro dos limites planetários”, de Jorgen Randers e outros autores, de 2018.
Da combinação dos inputs, obteve-se 4 cenários de esforços para atendimento dos ODS.
1) O cenário “O mesmo - Business as usual” replica o mesmo ritmo de mudança que o mundo passou nos últimos 35 anos. É a continuação das políticas e esforços convencionais.
Nesse cenário, os governos e a indústria responderão à tecnologia, à desigualdade e às mudanças climáticas da maneira convencional que o mundo fez nas últimas décadas. Apesar das rápidas mudanças tecnológicas, os dados das últimas décadas mostram que a maioria das taxas de mudança socioeconômica é lenta. Em um mundo mais do mesmo, fala-se ainda mais sobre sustentabilidade e ODS, mas, na prática, os países ainda continuam a mudar no mesmo ritmo. Esse ritmo de progresso se mostra insuficiente para cumprir as metas dos ODS até 2030 ou mesmo em 2050. A boa notícia é que a pobreza e a fome finalmente serão erradicadas até 2050, a má notícia é que o aumento do uso de recursos e do fluxo de resíduos levará mais fronteiras planetárias para a zona vermelha. Isso deixará muitos dos sistemas de suporte à vida da Terra em alto risco de declínio irreversível e as perspectivas de bem-estar das pessoas, principalmente os pobres, mais sombrias até 2050. No total, a pontuação dos ODS no mundo só melhora de 9, em 2015, para 11 em 2050, já que a desigualdade entre países cresce e a pegada ecológica total fica muito alta.
2) O cenário “Acelerados - crescimento econômico mais rápido” considera o efeito de taxas mais altas de crescimento econômico convencional.
Esse cenário explora o que acontece se os governos e a indústria obtiverem sucesso com um crescimento econômico mais rápido. Renda mais alta pode dar condições extras para financiar a educação, água potável, comida, mais empregos e outros ODS para todas as pessoas. Para conseguir isso, os governos intensificam as políticas convencionais. Neste cenário, as taxas de crescimento modeladas são 1% mais altas no PIB per capita do que a tendência histórica, o que torna a economia global significativamente maior em 2050. Dessa forma, rendas mais altas estão disponíveis para resolver os problemas do mundo. Entretanto, essa abordagem é apenas um pouco melhor do que a anterior, sendo que, neste cenário, as fronteiras planetárias são atingidas mais profundamente. Muitas pessoas ficam muito ricas, mas as sociedades sofrem desigualdades ainda mais desestabilizadoras e a humanidade como um todo mina o espaço operacional seguro da Terra, afetando demais os sistemas de suporte à vida.
3) O cenário “Mais fortes - tentando mais forte em todas as frentes” considera esforços extraordinários direcionados ao atendimento às ODS, focando no atendimento específico de cada objetivo de desenvolvimento.
Esse cenário explora a realização de trabalho mais árduo pela sustentabilidade em todas as frentes. Os tomadores de decisão do mundo concentram atenção e energia reais na conquista dos ODS. Eles alocam mais fundos para pagar por mais educação, água potável, comida, mais empregos e outros ODS para todas as pessoas. Dessa forma, os governos fortalecem suas ferramentas de políticas convencionais, começando em 2018 e em breve alcançam, em média, 30% mais conquistas rápidas dos ODS do que no período 1990 - 2015. A força de trabalho e o financiamento são redirecionados da atividade atual para projetos que ajudam a alcançar os ODS e / ou reduzir a pressão sobre os limites planetários. Ocorre que, entregando os ODS um a um de maneira fragmentada, existem muitas vantagens e desvantagens. Até 2040 as fronteiras planetárias ainda estarão sob forte pressão, o que leva a pontuações mínimas nos ODS de 2030 a 2050. Muitas regiões ainda viverão com uma desigualdade desestabilizadora que compromete as políticas de sustentabilidade. Este cenário leva a humanidade a afetar os sistemas de suporte à vida da Terra, mesmo que menos do que os cenários anteriores.
4) O cenário “Mais inteligentes – políticas transformacionais” explora a ampliação dos esforços extraordinários, não por trabalhar mais forte nas soluções convencionais mas sim por trabalhar de forma mais inteligente.
Esse cenário explora cinco profundas transformações sociais e econômicas para verificar se estas conseguem levar o mundo ao futuro desejado na Terra. Este é um cenário de desafio que descreve o que é necessário para "atingir o alvo". Em vez de repetir as mesmas soluções convencionais, cada vez mais rápidas ou com mais esforços, esse cenário explora o que poderia acontecer se cinco ações ousadas e extraordinárias fossem executadas por tomadores de decisão e políticos em todas as regiões. Este cenário pressupõe que os países do mundo e seus líderes juntos tomem consciência da enorme escala do desafio à frente e que as mudanças de mentalidade se espalhem pelo mundo. Os cinco pontos de virada são:
1. Rápido crescimento de energia renovável - suficiente para reduzir pela metade as emissões de carbono a cada década, a partir de 2020.
2. Produtividade acelerada nas cadeias alimentares - melhorando a produtividade em + 1% ao ano.
3. Novos modelos de desenvolvimento nos países mais pobres - modelos como China, Escandinávia, Etiópia ou Costa Rica.
4. Redução ativa da desigualdade - garantindo que os 10% mais ricos não recebam mais de 40% da renda.
5. Investimento em educação para todos, igualdade de gênero, saúde, planejamento familiar - estabilizando a população mundial.
A execução completa deste cenário cria sinergias capazes de atingir (quase) todos os ODS, enquanto permanecem dentro (quase todos) dos limites planetários.
Abaixo, é apresentado o alcance dos cenários para o atendimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Fig 4).
Figura 4. Número de ODS alcançados nos cenários modelados. Fonte: RANDERS (2018)
A Figura 5 mostra o quanto cada cenário afeta os limites planetários seguros.
Figura 5. Número de Fronteiras Planetárias Seguras respeitadas nos cenários modelados. Fonte: RANDERS (2018)
Com estas informações, é possível voltarmos a questão inicial: “o crescimento econômico é a saída para crise?”
Vimos que não se trata, exatamente, de crescimento ou não da economia. Trata-se de compreender que estamos diante de uma condição absolutamente nova para humanidade, onde, além dos problemas já conhecidos - como desemprego, desigualdade, violência, etc - temos que lidar com mudanças ambientais globais que cada vez mais afetarão a própria economia e toda sociedade. E, além de compreender a situação, precisamos encontrar soluções para estes problemas.
No próximo texto, pretendo falar com detalhes sobre as várias iniciativas que visam a adoção de uma nova lógica de vida em sociedade. Cito duas movimentações promissoras.
- Em Amsterdã, na Holanda, pesquisadores e dirigentes políticos estudam caminhos para implantar a “Economia Donut”, idealizada pela economista britânica Kate Raworth, na recuperação econômica pós-covid da cidade, atendendo as necessidades das pessoas e levando em consideração os recursos ambientais nas políticas de recuperação econômica.
- Há iniciativas inovadoras baseadas nos conceitos de gestão de bens comuns (commoning) - elaborados pela economista americana Elinor Ostrom - , em várias partes do mundo, que incluem clínicas e farmácias sociais, cooperativas de trabalhadores, hortas urbanas, banco de tempo, redes de trocas, que são “processos de cooperação e compartilhamento que produz não só novas formas de economia, mas, antes, novas formas de vida em comum” (Varvarousis e Kallis, 2019).
É certo que todas estas iniciativas são embrionárias e que não iremos, de uma hora para outra, transformar a sociedade que vivemos mas precisamos nos conscientizar que fazer esta transição é necessário e urgente.
Referências bibliográficas
STEFFEN, Will et al. The trajectory of the Anthropocene: the great acceleration. The Anthropocene Review, v. 2, n. 1, p. 81-98, 2015.
RANDERS, Jorgen et al. Transformation is feasible: How to achieve the sustainable development goals within planetary boundaries. A report to the Club of Rome, for its 50 years anniversary, v. 17, 2018.
VARVAROUSIS, Angelos e KALLIS, Giorgos. Commoning contra a crise. In: CASTELLS, Manuel (Org.). Outra economia é possível. Rio de Janeiro. Zahar, 2019. P.153-186.
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Carlos Lacerda
Engenheiro químico, com especializações em Gestão Ambiental, Direitos Humanos e Gestão Pública Municipal. Atua na área socioambiental desde 2001.
Consultor especializado em estudos socioambientais e auditor de aderência socioambiental de empreendimentos aos Princípios do Equador e aos Padrões de Desempenho da International Finance Corporation /Banco Mundial.
Entusiasta de data visualization e linguagem R.
Sustainability Consultant and Researcher | Nature+Community Based Solutions
4 aMuito bom e didático para ajudar a pensar! O maior entrave do caminho da sustentabilidade está na subjetividade e não nas bases materiais da economia. Mudar o pensamento coletivo destrava as inovações na escala necessária!