O dia mais quente de sempre
Resposta ao desafio da newsletter semanal de Martim Mariano , por Filipa Tomás
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— Dizem que quando corvos sobrevoam a casa é mau sinal. Hoje vi dois... esta manhã.
A Raquel sorriu, mas um sorriso tenso… Coça a cabeça e bebe um golo de água antes de retorquir: — Lá estás tu com as tuas superstições! Isso são coisas de gente velha... Não passam de tretas…
Rute persiste mexendo-se, com uma ponta de dor no pé da barriga, na cadeira.
— Não sei... Onde há fumo, há fogo, não achas? Lembras-te da avó? Antes do incêndio, ela também falava em presságios…
Raquel fez uma pausa, como que hesitando entre o ceticismo e uma sombra de preocupação. Acaba por responder, tentando quebrar o clima - que por sinal, estava abafado e com a humidade muito alta: — O que é que há de acontecer? Estamos aqui, as duas, estamos bem. E os bebés também. Este calor insuportável…Haja água!
A velocidade em que uma Água das Pedras virou uma garrafa partida no chão, gritos,sangue, dor, foi imperceptível e angustiante.
Não se sabe o que é que o tempo fez ao tempo, mas ficou claro que tempo era uma coisa que a vida estava a roubar a Rute.
Raquel limpava o suor da testa enquanto olhava para a irmã gémea que se retorcia na cama do hospital.
Ambas tinham chegado a este mês de Agosto, grávidas, felizes por partilharem mais uma experiência de vida.
Desde pequenas que estas gémeas ruivas eram inseparáveis.
Onde uma estava, a outra estava também.
Frequentemente, recordavam as brincadeiras no quintal da casa dos pais, do apoio que trocaram durante as dificuldades da adolescência, e, mais recentemente, da emoção partilhada ao descobrirem que iriam ser mães quase ao mesmo tempo.
Era como se os seus corpos, mesmo adultos, ainda conversassem numa linguagem que só elas compreendiam, vinda do útero da mãe.
Uma cumplicidade que ultrapassava as palavras.
Mas, naquele dia, algo estava diferente.
Depois de desmaiar e da perda de sangue repentina, a Rute estava pálida, muito pálida.
A médica entrou no quarto, com uma expressão grave, e a Raquel percebeu imediatamente que algo não estava bem.
— Há uma complicação grave, Raquel — começou a médica, sem rodeios. — A placenta da Rute descolou, o que provocou uma hemorragia interna muito grave. Estamos a tentar estabilizá-la, mas é provável que tenhamos de tomar uma decisão difícil: salvar a mãe ou o bebé.
A Raquel sentiu-se a sufocar.
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O calor parecia apertar-lhe o pescoço como uma força invisível. Rute,que sempre foi a mais corajosa das duas, olhou para a médica e depois para a irmã.
— Salva o meu bebé — murmurou, com a voz entrecortada, mas sem conseguir conter mais os gritos de mãe desesperada - Salva o meu filho, Raquel! Eu não vou saber viver sem ele, prefiro morrer eu! Ninguém mais pode tomar esta decisão que não eu…Salvem o meu filhoooooo - e o eco do grito de Rute invadiu os corredores do hospital como um terramoto.
Os minutos seguintes foram uma mistura de caos e desespero.
Raquel segurava a mão de Rute enquanto os médicos se moviam freneticamente pelo quarto.
O calor sufocante tornava o ar irrespirável, e o coração da Raquel batia tão rápido que parecia que ia explodir…
Ela sabia, no fundo, que algo de terrível ia acontecer e mesmo sem querer, não conseguia parar de amaldiçoar os corvos! Eram dois…
— Raquel... — sussurrou Rute, com um fio de voz, enquanto as máquinas apitavam ao fundo, com cada vez mais força mas aquele som que mais importava parecia parar de apitar. — Preciso de te dizer uma coisa... antes de ir...
— Não digas isso, Rute! Tu vais ficar bem! — protestou a Raquel, embora soubesse que era mentira. A morte estava ali, presente no quarto, a fumar um cigarro, farta de esperar pela Rute.
— O bebé que estou a ter... — A voz de Rute tremia. — É filho do teu Eduardo.
Raquel ficou gelada.
O mundo, que já parecia desabar, transformou-se num vazio ensurdecedor. Eduardo, o seu namorado, o homem que ela amava, tinha traído a sua confiança da forma mais cruel.
Olhou para a irmã, tentando encontrar algum indício de arrependimento, mas tudo o que viu foi dor — física e emocional.
— Perdoa-me, Raquel... — As palavras mal saíam da boca de Rute. — Eu... eu não queria... foi um erro...
Antes que Raquel pudesse responder, o alarme soou.
Os médicos apressaram-se ao lado de Rute, mas o corpo da irmã já estava a desistir.
A Raquel gritou, implorando para que ela aguentasse, mas era tarde. A gémea soltou um último suspiro, enquanto uma lágrima escorria pelo canto do seu olho.
Raquel sentiu como se uma parte dela também tivesse morrido naquele momento.
O calor do dia mais quente de sempre parecia agora insignificante quando comparado com o vazio que tomava conta do seu peito..Eram mesmo dois corvos.
Horas depois, enquanto segurava o pequeno bebé nos braços, Raquel sentiu-se quebrada em dois.
Por um lado,amava aquele ser inocente, que era parte da sua irmã, mas a dor da traição ainda ardia como uma ferida aberta.
A única coisa que sabia, naquele momento, é que a Raquel morreu junto com a gemea, nascera um bebe e havia ainda um bebe por nascer e uma mulher nova, com um bebe ao colo e outro na barriga, despedaçada em raiva.
Estás a uma DM de mudar a tua história! ✍️
1 mBom twist no final da história, Filipa Tomás!!! Well done. Keep writing.