Vale a pena pensar, Valência.

Vale a pena pensar, Valência.

Resposta ao desafio da newsletter semanal do Martim Mariano


- Oh Miguel, porra… Desculpa lá, deixa-te de merdas… Sim!! Sim!! Eu estou a ouvir-te, mas poupa-me as desculpas! Já chega! Estou farta de desculpas, sempre o mesmo — a entrega tinha uma data, e não era para falhar! - O som da voz do meu colega no outro lado da linha é abafado, hesitante, cheio de justificações que não quero nem consigo ouvir.


Seguro o volante com raiva, enquanto o telemóvel se esforça para se manter agarrado ao suporte no carro.

A chuva começa a cair, mas estou demasiado focada na conversa, na raiva que me queima por dentro.

Tenho a boca seca e os olhos esbugalhados. Olho-me ao espelho pelo retrovisor e reparo que já estou descabelada com os nervos. Continuo, cega e surda, a manter a minha posição:

- Como é que o cliente não foi avisado? Quase duas semanas de atraso e ninguém pensou em contactar o cliente?? Mas está tudo bem?? — A minha voz sobe, não consigo controlar. - Não há desculpa para isto, compreendes? Não há! Que desleixo.. — Uma respiração funda e impaciente escapa-me. - Estou CANSADA! Já me cansei desta falta de compromisso. As pessoas têm de saber que contam conosco, que respeitamos os prazos! Temos datas a cumprir… e não é só comigo, é com eles — com os clientes!

Do outro lado, o meu colega gagueja uma resposta qualquer, algo sobre problemas de transporte, falta de pessoal, uma vaga de doença na equipa. Mais desculpas, mais falhas, e eu aqui, a encher-me de raiva.

As pingas de chuva tornam-se gotas grossas, pesadas, e o céu parece cada vez mais escuro, mas ignoro tudo para o focar no que é preciso resolver.

- Ouve, não quero saber dos problemas internos - digo, quase a gritar - Tínhamos um compromisso, uma responsabilidade, e agora o cliente… com razão! Não interessa o que aconteceu, o que interessa é que não foi feito o que tinha de ser feito! O que me interessa agora é que a encomenda seja entregue hoje sem falta! Agora!! Eu é que estou a ter esta conversa, a defender o nosso trabalho e a nossa equipa, não é?… isto é inaceitável!

Subitamente, a chuva fica mais forte.

Tão forte que se transforma numa cortina espessa de metais que martelam o carro.

- Merda! - Resmungo, quase batendo num carro ao lado ao tentar desviar-me de algo que nem consigo perceber o que é.

Ouço o meu colega a responder, mas o som é cortado, e a chamada cai de repente. Toco no ecrã, o dedo a pressionar o ícone para voltar a ligar, mas nada.

Tento outra vez. Nada.

Olho para o ecrã, e vejo o símbolo da bateria a piscar. Um símbolo de pilha vazia, ameaçadora, castrante.

Mais uma vez, e outra vez, deslizo o dedo no ecrã na esperança de que a chamada volte.

- Miguel?? Miguel?? Não, não agora - sussurro, mas é inútil. O telefone está morto.

E à minha volta, a tempestade ganhar cada vez mais força. O som da chuva transforma-se em pancadas rítmicas e violentas.

Sinto-me sobre ataque.

O som de granizo, uma força bruta a bater no carro, a isolar-me do mundo lá fora, faz-me sentir medo de morte. Sozinha. Tento focar-me na estrada, mas a visibilidade é nula, e as pedras de gelo batem no vidro como se quisessem parti-lo e agarrar-me.

O carro está a tremer e a começar a ceder, e o barulho ensurdecedor faz-me fechar os olhos por um segundo.

O medo que estou a sentir é cada vez maior. Tenho os músculos tensos, o coração acelerado.

É então que noto a água a acumular-se rapidamente nas ruas, uma corrente raivosa que parece ter vindo dos escombros do mundo.

Em poucos minutos, o chão transforma-se numa massa turva, castanha e rápida. Tento acelerar, mas o carro já só está a flutuar ligeiramente, como se estivesse a ser empurrado.

O pânico cresce, um grito silencioso dentro de mim. Há sons que estou a emitir que não consigo controlar, de medo.

Tento abrir a porta, mas a pressão da água contra o carro segura-a como uma prisão.

A água começa a subir, e o frio instala-se por todo o lado.

Tento gritar, mas as palavras morrem-me na garganta, que treme, está gelada e seca. As lágrimas chovem na minha cara como a chuva lá fora. “Tirem-me daqui!!” - a voz não sai!

Só sai ar e pânico.

E medo.

O granizo continua a cair, e a água começa a entrar pelas fendas do carro, e começa a subir lentamente.

Os meus pés já estão molhados, e sei que estou encurralada.

Abro a janela para tentar fugir. Mas o carro do lado está colado, porque acaba de embater no meu.

Já estamos a deriva.

Não há como sair daqui.

Neste silêncio gélido e mortal, entre o som ensurdecedor das chuvas e um grito que se ouve de socorro cortante, uma pergunta surge-me, fria como a água à minha volta:

- Valeu a pena? Passei a vida inteira afogada no trabalho, a lutar por prazos, a gritar por responsabilidades, a exigir compromisso dos outros e de mim própria. Toda a minha vida a tentar evitar falhas, a carregar pesos de todos os lados. E agora, no final de tudo, aqui estou eu — a afogar-me de verdade, sozinha e sem saída.

No fundo, passei a vida inteira a afogar-me.

Para quê?

Filipa Tomás

Mãe 👫| Especialista Desenvolvimento de Negócio - Pessoas | Comunicação Estratégica | Liderança Motivacional | Transformação de Resultados Razoáveis em Vendas Incríveis | Ghostwriter |

2mo
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Rosário Novais

Road Freight Operator | ISCAP | Comércio Internacional | IMP e EXP

2mo

Filipa Tomás , vibro com os teus textos, estou a ler e sinto como se fosse real pois de alguma forma é em algum tempo já vivi estas realidades Obrigada por seres real, por escreveres de forma real e não colocares gliters só porque fica bonito 💚

Filipa Tomás

Mãe 👫| Especialista Desenvolvimento de Negócio - Pessoas | Comunicação Estratégica | Liderança Motivacional | Transformação de Resultados Razoáveis em Vendas Incríveis | Ghostwriter |

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