De Tremoços a Tarot: A Profecia da Gestora de Produto
Resposta ao desafio lançado por Ana Maltez
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Era uma sexta-feira à noite, daquelas em que o ar ainda estava quente, e o cheiro a churrasco das varandas vizinhas flutuava preguiçosamente pela sala.
Fomos a varanda fumar um cigarro antes de começar a jantar. Já não estávamos juntos há perto de 6 meses...
Conhecíamo-nos desde sempre. Eu, o João, a Carla, o Miguel, a Inês e a Raquel.
Tínhamos decidido jantar depois de muitas tentativas falhadas, por muita insistência minha.
Eu tinha algo importante para lhes dizer. Mas primeiro, precisava de preparar o terreno.
- Malta, sabem... há algo que eu nunca vos disse sobre a minha profissão - comecei, a ajeitar a almofada da cadeira nas costas.
Todos os olhos estavam postos em mim, expectantes, mas também com aquele ligeiro ar de desinteresse que se tem quando se espera mais uma história sobre... bom, sobre comida e trabalho.
Estavam habituados. Eu era gestora de produto de uma cadeia multinacional de supermercados. Era isso que fazia há 15 anos, e com paixão.
- Eu sei o que estão a pensar - continuei - lá vem ela falar sobre a vida de uma gestora de categoria e sobre como é emocionante por si só. E têm razão.
- Ui, preparem-se que a missa vai começar! - murmurou o João, arrancando gargalhadas ao resto do grupo. - Não vamos começar a falar sobre cereais, por favor, que eu sou alérgico ao glúten.
- Vá lá,não gozem! - sorri, já com o discurso preparado. - Sabem o que é ser gestora de produto? Eu negoceio com os maiores e melhores fornecedores deste país e fornecedores internacionais... Sou o cérebro por trás de cada barra de chocolate que vocês devoram ao domingo à noite. Eu decido que tipo de café ou bolachas vos vão chamar no corredor 7! Acreditem, malta, isto não é para qualquer um. É preciso sensibilidade.
O Miguel tossiu de forma exagerada.
- Sensibilidade para negociar tremoços?
- Sim, tremoços! - rebati, não me deixando abalar. - Quando estás a discutir preços, precisas de perceber a textura do produto, o som da embalagem a abrir, o cheiro a fresco quando o cliente a rasga pela primeira vez. Negociar é arte, é emoção, é um bailado, é sinestesia pura! E depois há o pragmatismo, claro... Tem que se ter uma abordagem fria, calculista, como quem discute o preço de perceves ao kilo nos mercados da Nazaré ao fim de semana, sem te deixares levar pelos impulsos. Tens que estar pronta para sair com o melhor preço ou com nada!
A Carla riu-se, mas eu vi que estava a ficar interessada.
- Pronto, admito, fazes parecer que gerir bolachas e chocolates é como negociar a paz mundial.
- Exatamente! - exclamei, apontando-lhe o dedo de forma firme, parecendo o Professor da Casa de Papel - É por isso que sempre adorei o que faço. Pensava que ia fazer isto para sempre. Mas... a vida tem uma forma engraçada de nos surpreender, não é?
O grupo ficou em silêncio por um segundo, sentindo a mudança no tom. Aquele momento em que o humor suave se transforma numa tensão quase palpável. Todos olhavam para mim, agora realmente atentos. Suspirei dramaticamente.
- Despedi-me.
- Desculpa?! - A Inês quase derramou o seu copo de vinho, e a Raquel ficou com uma expressão de puro choque. - Mas... para fazer o quê? Para onde vais?
- Vou ser... taróloga. - fiquei com o peito cheio de ar enquanto os espreitava por cima da armação dos óculos que se espreguiçavam pelo nariz abaixo.
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O silêncio foi mais pesado do que um bolo de chocolate mole, derretido e mal cozido.
O João parecia ter engasgado com o tremoço que mastigava.
O Miguel fixava-me como se eu tivesse acabado de dizer que ia juntar-me ao circo.
A Carla abanava a cabeça, claramente a tentar processar.
- Taro... quê? - A Inês olhou-me fixamente, como se tivesse ouvido mal.
- Taróloga - repeti, desta vez mais devagar, como se estivessem a aprender uma nova língua. - Ler cartas de tarot. Interpretar o destino. Ajudar as pessoas a entender o seu futuro, os seus medos... as suas vidas.
O João engoliu finalmente o tremoço, emaranhado em risos e tentado anuviar a expressividade das sobrancelas que não paravam sossegadas.
- Tragam champanhe para esta, que enlouqueceu. Champanhe ou vinho bag in box... está grave.
Revirei os olhos, mas sorri por dentro.
Era previsível que a notícia fosse cair como uma bomba.
- Malta, estou a falar a sério! Sempre fui boa a sentir a energia, intuição é algo que eu tenho de sobra. E depois de tantos anos a negociar com fornecedores, a adivinhar os desejos dos consumidores, percebi que o meu verdadeiro talento não está nos chocolates, está no futuro. Consigo ler pessoas como leio uma lista de ingredientes. Só que desta vez, o que está em jogo é o destino delas, não o número de calorias por pacote.
- Mas taróloga, Maria?! Não te estou a imaginar a ler cartas num consultório perfumado a incenso, com uma bola de cristal à frente - disse a Carla, incrédula.
- Claro que não! - repliquei. - Nada de incenso, que me dá alergia... Eu sou sinestésica! Tu sabes o que me provoca o cheiro do incenso... Mas as cartas... ah, as cartas, elas falam comigo. Sabem, é como quando eu decido que tipo de bolachas ou cereais entram em campanha, eu sinto a energia certa. Só que agora, vou sentir a energia das pessoas!
O Miguel inclinou-se para a frente, com uma sobrancelha levantada.
- Porra Maria, desculpa, mas tenho de perguntar... Estás mesmo a falar a sério?
- Mais séria do que nunca. Mais séria do que quando consegui negociar a nova gama de bolachas sem ovo e sem lactose que foi, claro, um sucesso. - afirmei, orgulhosa.
A Raquel, que até então tinha estado em silêncio, falou finalmente.
- Eu até te consigo imaginar. Sempre tiveste um ar meio... místico. Mas que cartas são essas? Não são como... cartas de Pokémon, certo? - disse, com um ar sarcástico que lhe era característico, com a boca em biquinho de pato.
Soltei uma gargalhada.
- Não, Raquel, não são cartas de Pokémon. São cartas de tarot. Cada uma com um significado, uma mensagem. Eu estive a estudar, a aprender... e sabem, sinto-me mais viva do que nunca. É isto que quero fazer para o resto da vida.
O João levantou o copo.
- Bem, não sei se é a ideia mais maluca que já ouviste ou se estás a precisar de férias, mas seja como for... brindemos à Maria e ao seu novo futuro de taróloga! Haja tremoços e cerveja. Se não houver, a Maria vê nas cartas qual é o supermercado mais próximo com stock disponível.
Rimos todos, brindámos, e no meio do humor constrangedor, eu sabia que eles, apesar de tudo, apoiavam-me.
Afinal, amigos são para isso mesmo – mesmo quando decides largar o mundo dos doces para ler mensagens doces - ou azedas - das cartas de tarot.
* Sou Consultora de Comunicação * Ajudo-te a Comunicar Melhor 📣 e dou Voz às Tuas Ideias *
4 mMuito, muito bom, Filipa 😂 Muito bom! 👏
Artista, Designer, Técnica de desenho digital 3D
4 mAdorei o nome da futura taróloga, sensacional! Queria escrever assim ! Amei
Chief Happiness Officer | HR Consultant | Human Resources Leadership | Mentora de carreira individual e de grupo | HR Support to Leaders
4 mFilipa Tomás a história e forma como a contas é genial. Conseguimos perceber o teu amor pelo que fazes, e como o fazes. Afinal tudo feito com paixão, entrega e muito sentido de responsabilidade é a fórmula certa do sucesso. Eu acredito que darias uma boa profissional de tarot porque o importante é querer, saber o propósito e objetivo final e sabendo isto com a parte técnica do que temos que fazer (sem a parte técnica somos charlatões) são os ingredientes que levam ao sucesso. Parabéns pela tua escrita. 👏🏼