O que podemos fazer por nossas praias?

O que podemos fazer por nossas praias?

O Brasil possui mais de 4 mil praias marítimas ao longo de 150 quilômetros de litoral. E um total de 15% podem desaparecer em virtude do aumento do nível do mar provocado pelo aquecimento global. E uma outra parte das praias sofrem com ocupação desordenada, poluição de esgoto e descarte de lixo. O que pode mudar esse cenário?

Sobre isso e de que forma a sociedade civil pode contribuir para o uso correto e sustentável das praias brasileiras falei com Rafael Goidanich, diretor executivo do Instituto Aprender Ecologia, na Tal da Live que aconteceu na última segunda-feira, na rede social vizinha. Por aqui, a entrevista muito esclarecedora, em detalhes. Com um lema de ecocidadania eles estão transformando o conceito de uso das praias brasileiras por meio de pessoas comuns e surf.


Lorë Kotínski -  Rafael, o que o Instituto faz, onde ele atua, quais são os principais projetos?

Rafael Goidanich -  O Instituto Aprender Ecologia é fruto de um sonho pessoal meu, por ter essa conexão com a natureza e eu me inspirava muito nos grandes projetos de conservação que existiam no Brasil no final da década de 90, o projeto Tamar, o projeto Baleia Jubarte. Eu queria, de alguma forma, criar uma associação, uma ONG ambientalista e ajudar a proteger a natureza e trabalhar muito também com a educação ambiental.

Então, na época eu morava em Florianópolis, na ilha de Santa Catarina, estava recém formado em direito e eu achei por bem fundar uma instituição pra deixar um legado e contribuir pra conservação dos ecossistemas da ilha de Santa Catarina. Juntei um grupo de amigos e fundei a Aprender Entidade Ecológica. Aprender é uma sigla que se traduz em Ações para a Preservação dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Econômico Racional. Nossa, olha! Essa eu não sabia! Maravilhosa essa ideia, hein? E aí, fundamos a Aprender Entidade Ecológica no dia 22 de abril do ano 2000, com a bandeira da defesa das áreas protegidas, das unidades de conservação e o incentivo também à educação ambiental e aos princípios da participação e da cooperação, que tem lá da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, que são, basicamente, os fundamentos do direito e da gestão ambiental internacional, e que faltaram também a elaboração do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que fala que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tem de uso comum do povo e essencial para a qualidade de vida, impondo-se ao poder público.

LK – E como vocês atuam?

RG - O artigo 225 é o nosso norte de trabalho, o Instituto Aprender Ecologia, onde a gente atua muito com o fomento à cidadania ecológica, o exercício da ecocidadania e projetos de educação ambiental e conservação da biodiversidade. E hoje temos 24 anos de história, já com uma atuação não só local, em Florianópolis, mas também regional e agora nacional, com o Programa Brasileiro de Reservas de Surf. 


LK – Fale um pouco desse projeto para as pessoas, porque queremos mostrar como pessoas comuns, podem se e algo positivo por essa questão ambiental.

RG - Sim, existem diversas formas de nós, cidadãos, participarmos e exercermos a nossa ecocidadania e ajudarmos na proteção do meio ambiente, por intermédio de instrumentos legais, fóruns e conselhos participativos, participação em audiências públicas, até mesmo entrarmos com ações populares em defesa do meio ambiente. 

E nós, no Instituto Aprender Ecologia, e o nosso foco sempre foi a conservação da biodiversidade, especialmente no bioma Mata Atlântica, que abrange 17 estados da zona costeira brasileira. E nosso foco de trabalho é na zona costeira e no bioma Mata Atlântica, que são também considerados patrimônio nacional pela Constituição Federal de 88. E nossa iniciativa, que começou logo após a nossa fundação, foi vincular a prática do surf, de todos os esforços relacionados à natureza, mas especialmente do surf, porque a instituição é formada por surfistas profissionais de diversas áreas do saber, na área ambiental.

E nós passamos, então, a tentar aplicar essa legislação, tirar ela do papel e partir para a prática. E criamos um projeto, na época, chamado Surf em Unidades de Conservação, onde a gente incentivava, através da educação ambiental, o protagonismo da figura do surfista cidadão, ele que está sempre ali na orla, na beira da praia, ele pode ser, sim, um defensor daquele ecossistema, seja através de participação em reuniões, audiências públicas, participação nesses conselhos ou até mesmo com ações concretas, mutirões de limpeza, defesa daquele ecossistema. 


LK - Isso é muito legal, porque qualquer pessoa pode participar de um conselho consultivo de unidades de proteção ambiental, unidades de conservação. Segundo, que é muito importante que as pessoas decidam participar, ter voz…

RG – Sim, a gente fazendo da nossa parte. Pequenas ações fazem a grande diferença, ainda mais quando vão sendo ações que inspiram e educam as pessoas através do exemplo. Então, a gente vai atraindo mais pessoas para esse movimento.

E esse projeto do Surf em unidades de conservação, ele foi evoluindo ao longo do tempo. E em 2015, na nossa instituição, a gente tomou conhecimento desse Programa de Reservas de Surf, que é um programa internacional. Ele foi desenvolvido na Austrália. No Brasil existe uma reserva mundial, que é a Praia da Guarda do Embaú, em Santa Catarina, que foi agraciada com esse título de reserva mundial.

E nós, por ocasião, participávamos de um encontro nacional de gerenciamento costeiro na Universidade Federal de Santa Catarina. E conhecemos o professor australiano Andrew Short, que foi o precursor dessa proposta de Reservas de Surf na Austrália. E ele identificou no Brasil um grande potencial para a criação desse programa e incentivou a nossa instituição a protagonizar, a liderar esse processo. Nós acreditamos nessa proposta e passamos a estudar o tema e trouxemos esse programa para o Brasil, adaptando uma metodologia que nós já havíamos criado, que é a metodologia 3i, que é muito simples. Ela prevê três pilares básicos, que é informação qualificada, para difundir informações ambientais verdadeiras, qualificadas, disseminadas para toda a coletividade, acessíveis ao princípio da participação.

O segundo pilar, que é a integração entre as pessoas e as instituições governamentais, não governamentais e privadas, de forma que elas cooperem entre si, e a gente aplica, posteriormente, o terceiro pilar da metodologia 3i, que é a implementação de projetos de conservação. Então, a metodologia que nós criamos no nosso instituto e que vem dando bons resultados, e a gente adaptou o Programa de Reservas de Surf a essa metodologia. E fomos desenvolvendo de forma participativa a criação desse programa, realizamos workshops regionais, presenciais e online, e contamos com a contribuição de mais de 100 pessoas, todas surfistas de várias modalidades, mas, acima de tudo, pesquisadores da área ambiental, de múltiplas temáticas e áreas do saber, que contribuíram significativamente para a construção desse programa.

E, no ano de 2023, nós lançamos oficialmente esse programa ao Brasil, e, nesse ano, lançamos a primeira chamada pública para praias de qualquer região do Brasil que se candidatassem para ser a primeira reserva nacional de surf. Foi aqui que conseguimos sensibilizar coletivos, pessoas de cinco localidades diferentes, que foi a Praia do Francês, em Alagoas, a Praia de Moçambique, em Florianópolis, a Praia do Sumidor, em São Francisco do Sul, também em Santa Catarina, a Praia de Itamanguca, em São Paulo, e a Praia de Regência, no Espírito Santo. E esse programa é pautado em quatro critérios básicos.

Ele objetiva, acima de tudo, proteger uma onda icônica, uma onda que tem uma significância muito grande para o universo e para a comunidade do surf. O segundo critério são as características do ecossistema de surf que protege essa onda. O que tem na volta daquela praia? Tem um manguezal, tem uma boca de rio, tem uma vegetação de restinga? Quais são os atributos ecológicos que fazem daquele local um local especial no que tange a questão ambiental? 


LK - Aliás, o mangue é o ecossistema que mais consegue sequestrar gás carbono da atmosfera, mais do que a Floresta Amazônica, mais do que qualquer outro, mais do que a Caatinga, que também, por conta das raízes, sequestra muito gás carbono…

RG - Então, todo esse ecossistema, como justificativa, tem muito peso. O manguezal, tem grande potencial de sequestro de carbono, que a gente vem estudando dentro da linha do carbono azul, oportunidades que o oceano e a conservação do oceano e os ecossistemas associados têm para mitigação das mudanças climáticas, mas o manguezal é um grande berçário dos ecossistemas marinho e costeiros.

É ali onde brota a vida, e a vida se multiplica para poder formar toda a cadeia do oceano e povoar as outras áreas oceânicas. Tudo vem a partir da zona costeira e do manguezal. E tem outros dois critérios que também são importantes.

Um deles é toda a parte da cultura do surf naquela localidade, o histórico de campeonatos. E o quarto critério, que é tão importante quanto, é o critério do engajamento da comunidade. A comunidade daquela localidade realmente compreendeu o que é uma reserva de surf e deseja que aquela localidade seja uma reserva de surf e se compromete em contribuir com a proteção daquele local, com a gestão. 

Então, tivemos candidaturas fortíssimas dessas praias e o nosso programa, que previa a criação da primeira reserva nacional de surf, após muitos debates devido a essas candidaturas muito qualificadas, subsidiadas por um conselho técnico, científico, que existe nesse programa, a gente optou por criar quatro reservas nacionais de surf, sendo a Praia do Francês, uma delas, no litoral nordestino, a Praia do Moçambique, em Santa Catarina, Regência, no Espírito Santo e Itamambuca, no litoral de São Paulo. Então, hoje no programa, ele inicia em alto nível porque ele consegue ter representações de quatro praias icônicas, de três regiões diferentes do Brasil e representativas de ecossistemas muito distintos e toda uma cultura muito singular. Então, estamos muito felizes com essa conquista, com esse início em grande estilo, mas temos uma série de desafios agora, que é realmente a implementação da gestão dessas reservas.


LK – Mas o que é uma reserva de surf e, como é que funciona?

RG - A gente parte de uma visão holística integrativa, onde o ser humano faz parte da natureza. A gente, ao contrário do que se pensa, que o ser humano está fora da relação com a natureza e a natureza serve só para gerar sustento, benefícios socioeconômicos, a gente entende que essa visão sistêmica concebe o ser humano como parte desse todo. Então, como parte desse todo, a gente também é responsável por usufruir e ajudar na conservação desse espaço.

A titulação de reserva de surf é um reconhecimento público de um determinado território destinado à preservação de uma onda icônica e de todo um ecossistema associado, não só o ecossistema natural, mas toda a parte física, mas também a parte social e econômica. Então, o tripé da gestão da reserva de surf, do ecossistema de surf, envolve a parte biológica, a parte física e a parte socioeconômica. Por exemplo, não vou fazer construções que invadam praia, sejam elas de exploração comercial, sejam de moradia.

 

LK - Que tipo de coisa, na prática, dá para fazer e não dá para fazer numa praia dessa, por exemplo?

RG - Então, a reserva de surf é um reconhecimento público de um local singular, de um local especial que merece ser reconhecido e ser bem cuidado e preservado. A reserva de surf não é criada por nenhum ato normativo. Ela é apenas uma titulação e é um movimento da sociedade civil organizada. Ela é uma das formas de exercer a ecocidadania.

Ao contrário de outras leis, de outras áreas protegidas, como parques, reservas, estações ecológicas, áreas de preservação permanente, que existe uma legislação que protege aquela área que proíbe ou permite determinadas ações antrópicas, a reserva de surf não é criada por um ato normativo. Ela é um reconhecimento da sociedade civil e ela é junta por um colegiado local representativo de diversos segmentos da sociedade.

Esse é o princípio: temos o privilégio de viver num santuário da natureza e temos a obrigação de cuidar desse local. Como vamos fazer isso? Então a Reserva de Surf, esse título vai trazer um destaque, vai trazer um diferencial para aquela área.

 

 

 

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