Oferta,demanda,teto,piso
José Francisco de Lima Gonçalves
Parece ter começado o debate sobre o teto de gastos do setor público, em meio à persistente indagação a respeito de a economia brasileira não crescer. São temas relacionados e expõem diferentes visões da teoria econômica, da política econômica e da política.
A economia global em desaceleração rumo à recessão faz bancos centrais voltarem às políticas fortemente acomodativas adotadas depois de 2008 e parcialmente revertidas. O caráter desinflacionário de tal ambiente é consenso, havendo alguma divergência sobre se os preços dos ativos de risco e dos imóveis, estimulados pelos juros baixos, descolarão ainda mais da atividade econômica e caracterizarão grau de alavancagem à la um novo e trágico “Minsky moment”.
Falta um gasto que não dependa do nível atual de atividade nem da ociosidade: investimento público na infraestrutura
A virada da política econômica brasileira em meados de 2016, com experimentos em 2015, toma a trajetória fiscal como o problema central, cuja solução é crucial para que o país não “quebre”. As referências são problemas estruturais: rigidez de despesas obrigatórias e redução nas discricionárias levariam a dívida pública a níveis de “insolvência”. Dentre as obrigatórias, o destaque notável das despesas previdenciárias.
A ideia do teto de despesas é controlar seu crescimento deixando evidentes e doídas as restrições legais a seu uso discricionário. Assim, o teto poria a nu os itens do orçamento a serem alterados em função de questões “incontornáveis”. Pela demografia e comparação internacional (despesa sobre o PIB), foi montada uma reforma da previdência que ajudaria a reduzir o ritmo de crescimento de tais despesas.
Aprovada tal reforma, caiu a ficha sobre sua modestíssima contribuição para a “recuperação da confiança”. As expectativas em relação a efeitos da reforma tributária sobre as decisões empresariais também estão sendo revistas, sendo que a incerteza sobre sua extensão e prazo inibe o cálculo econômico e financeiro associado a decisões de produzir e de investir. Mais um motivo para adiar a recuperação.
Reformas microeconômicas, por sua vez, são necessárias e devem ser perseguidas se a ideia é adequar custos às necessidades das políticas de Estado. A temática do ambiente de negócios é óbvia. Só não se pode esperar que tais reformas, junto a outras como a da educação, tenham efeitos descontínuos e tirem a economia da relativa estagnação em que se encontra. São necessárias como medidas de efeitos cumulativos, contínuos e muitas vezes imperceptíveis a não ser em longos lapsos de tempo.
A isso se refere quem faz o diagnóstico de que o Brasil cresce pouco por razões estruturais, dada a transição demográfica e a baixa produtividade. A restrição seria superada por aquelas reformas. Governos anteriores são acusados de erros na política econômica: investimentos errados, subsídios inadequados, exigência de conteúdo nacional, política para o petróleo e a Petrobras, desonerações, gasto mal feito em educação. Desde logo, um mau cozinheiro não condena a gastronomia.
Nada disso implica condenar os instrumentos usados, mas sua direção e intensidade. Isto é, a política econômica e não seus instrumentos. Não se fala que Dilma usou política contra cíclica para acelerar o crescimento sustentado. O argumento dos radicais da ortodoxia vai além: o Estado não sabe investir, logo, não cabe investimento público. Nada é dito sobre reformar o Estado para que ele contrate investimentos e crie externalidades para o setor privado; o importante é comandar despesas de investimento, não esperar que alguém as tome.
Estimular a oferta é uma expressão dúbia. Se há ociosidade, cabe estimular a produção de algo que sobra? Reduzir despesas vai criar demanda? A oferta cresce com o investimento. No curto prazo, está dada e de sobra. Falta demanda. Falta um gasto que não dependa do nível atual de atividade, nem da ociosidade: o investimento público em infraestrutura. O privado vem atrás.
Alterar o teto e criar piso para investimento não é adiar a discussão sobre as despesas obrigatórias ou sobre as reformas microeconômicas. É tentar viabilizar a recuperação da economia e a redução do desemprego antes que seus efeitos sejam deletérios, pela histerese, pela insegurança.
Entre as ameaças colocadas pelos apressados, comparações complicadas. Portugal, Grécia e Espanha cortaram benefícios previdenciários porque não cresceram e não arrecadaram. Suas dívidas foram vistas como impagáveis, mas se esquece que, como aqueles países não emitem euros, sua taxa de câmbio é aquela que viabilizou a forte recuperação alemã. Perderam renda e emprego.
A Argentina é o exemplo da vez para os liberais à outrance. Diz-se que, lá, o lastro fiscal para a moeda nacional e a dívida pública foi perdido por falta de ajuste fiscal, e que a crise da dívida pública em dólares revela o erro de Macri. Argumento de difícil contestação e de difícil comprovação. Mas fica a certeza sobre o governo argentino não criar dólares.
O Brasil é credor em dólares, e a recessão nos deixou, além da inflação baixa e do desemprego alto, conta corrente confortável, com espaço para a economia crescer. Reservas e conta corrente robusta nos afastam da Argentina como acarajés a empanadas. Não fabricamos dólares ou euros, mas temos um colchão cambial de estoques e fluxos que permite alguma margem de manobra.
Argumenta-se que “afrouxar” o teto de gastos demandará mais impostos e/ou dívida. Sim, em relação ao que foi aprovado em 2016, e sob a hipótese de que outro teto de gastos não pode elevar o crescimento e exigir menos carga tributária e/ou menos dívida, de modo a manter trajetória da dívida em relação ao PIB “aceitável”. Principalmente se os juros continuarem baixos e o produto crescer um pouco.
Cabe defender o controle do crescimento do gasto público, a modernização administrativa, a melhoria das carreiras do serviço público, reformas como a tributária, a da previdência, a política, a dos poderes, a do setor financeiro, a política industrial, todas e permanentes.
Nada há de promessas miraculosas quando se fala em estímulos à demanda. Como o BCE de Mario Draghi publicou recentemente, é preciso deixar os estabilizadores automáticos funcionarem livremente. Ou seja, os efeitos da recessão sobre o resultado fiscal abrindo um efeito contra cíclico. Principalmente com o mundo à beira da recessão.