PLANO DIRETOR DE SÃO PAULO E O INSTRUMENTO DE OUTORGA ONEROSA:

PLANO DIRETOR DE SÃO PAULO E O INSTRUMENTO DE OUTORGA ONEROSA:

INSTRUMENTO FOI TRATADO DE FORMA IGUALITÁRIA PARA O TERRITÓRIO COMO UM TODO, EM UM TERRITÓRIO QUE NÃO É HOMOGÊNEO 

Por Adriana Levisky, sócia-fundadora da Levisky Arquitetos I Estratégia Urbana e membro integrante do Conselho Deliberativo da AsBEA-SP.  

Estive este mês no CAU-RJ para palestrar sobre um tema de grande relevância: levar nossa experiência a partir do Plano Diretor de São Paulo, de 2014, e agora na revisão, aos arquitetos e urbanistas que estão trabalhando na elaboração do Plano Diretor do Rio de Janeiro.  

Temos trabalhado junto a um grupo técnico da AsBEA-SP no desenvolvimento e interlocução com o Poder Público, do ponto de vista das legislações urbanísticas, onde estamos debatendo o assunto numa oportunidade sinérgica para calibrar quando possível alguns deles. 

A grande discussão por trás do instrumento Outorga Onerosa, no âmbito do Plano Diretor, é poder analisá-lo sob a ótica da arrecadação, da indução do desenvolvimento urbano e territorial, e da gestão dos recursos. A estruturação dessa visão holística é o que entendemos serem as dores daquilo que hoje podemos analisar, de 2014 pra cá, conseguindo entender a complexidade dessa integração. 

Além da Outorga Onerosa, queria adicionar outros dois pontos à discussão, a Cota de Solidariedade e o Fundurb – responsável pela gestão dos recursos arrecadados. Essa combinação, dentre outros instrumentos, precisaria dar conta dos princípios que regem a política de desenvolvimento urbano das cidades: a função social da propriedade urbana e rural, a inclusão social, o direito à cidade, direito ao ambiente ecologicamente equilibrado e à gestão democrática. É dentro desta pauta que os Instrumentos precisam se valer.  

Dos objetivos do Plano Diretor de São Paulo, ele embasa a análise do uso da Outorga Onerosa. Primeiro é tratar a Política de Desenvolvimento Urbano, dentre esses objetivos, com seu processo de expansão horizontal, reduzir os deslocamentos na cidade e garantir o acesso à terra para funções sociais da cidade que proteja o patrimônio ambiental e cultural. Da perspectiva da aplicação do recurso, poder se utilizar de forma bem-sucedida à arrecadação da outorga para atender a uma dimensão social, ambiental, imobiliária, econômica e cultural. O sucesso do instrumento está relacionado ao atendimento que ele vai se prestar.  

Em São Paulo, o território ficou dividido entre uma macrozona de estruturação e qualificação urbana e recuperação ambiental. A partir daí, o Plano Diretor orientou o que o zoneamento iria estabelecer para cada uma dessas macrozonas, e com isso o potencial básico, máximo ou adicional. 

Para além de ele estabelecer o que seriam as zonas de uso desejáveis para serem regulamentadas na lei de parcelamento e ocupação do solo, inaugurou uma zona específica, o que não era usual para o Plano Diretor estabelecer. O PDE traz esse zoneamento inicial numa proposta de indução do desenvolvimento, onde associa a zona de uso aos eixos de mobilidade com maior capacidade de transformação urbana, atrelando transporte público de alta capacidade à potencialidade de desenvolvimento urbano de maio capacidade.  

Assim foram criados os eixos de desenvolvimento no território, que seguem as linhas de metrô ou corredores de ônibus, tendo um regramento muito especial e de certa forma mais apetitoso do ponto de vista do valor unitário do m2 adicional, o que se acreditou, naquele momento, que seria um fator interessante para induzir o desenvolvimento ao longo desses eixos. 

No entanto, ele não foi plenamente realizado e precisamos entender o porquê. Entre 2014 e 2019, dados da Prefeitura de São Paulo mostram que não houve uma movimentação relevante do posicionamento dos serviços na cidade. A ideia era que os serviços se espraiassem, e isso não aconteceu desta forma.  

Há uma certa inércia, por ser um instrumento novo e que não era uma cultura do paulistano. Vimos a predominância da produção residencial e um número de habitação de interesse social bastante pequeno atrelado aos eixos. Então o que se pretendia era que houvesse um adensamento maior, em m2 maiores, e que os "n" usos estivessem concentrados nestes eixos. 

Pergunta para se fazer, analisando a força e qualidade dos instrumentos é se, de fato, eles se pretendem para indução do desenvolvimento urbano. Se a intenção era essa, é preciso haver uma calibragem e adequação de fatores que precisam ser ajustados. 

A equação da outorga é a relação da área terreno pela área construída computável total. Quanto mais área construída tiver, menor o m2. Uma equação que prevê estimular que o empreendimento se utilize do CA máximo previsto para aquela zona.  

Um ponto que interfere no cálculo é o valor de referência do cadastro de valores de terreno que o PDE estabeleceu por testada de lote. Então você tem o código de logrador, ao longo de uma via, e cada testa de quadra vai ter um valor de m2 específico. Antes era feito pelo valor venal que regrava o IPTU e foi feita uma outra avaliação que tem muitas críticas sobre a maneira como foi calibrado este valor, que tem distorções imensas, sendo um tema que precisa ser olhado com muito cuidado.  

Outro elemento é o fator de interesse social, que varia de 0 a 1, e o fator de planejamento que vai de 0 a 1.3. Cada um deles gera um valor muito particular por cada testada de quadra. E o máximo varia, na cidade como um todo, entre 2 e 4 como potencial adicional. Para alguns usos, conseguimos chegar a 6. Este é um outro ponto de crítica, pois temos áreas bastante infra estruturadas que teriam capacidade de receber um adensamento maior. Por exemplo a área central, com potencial 12.  

O valor por m2 de cada uma das testadas varia de 1.000 a 38.000 reais – isso em lotes próximos, ou seja, tem um erro muito sensível que gera distorção inviável. Se existe algum interesse em desenvolver o eixo urbano, esse erro distorce qualquer possibilidade de estimular o desenvolvimento.  

Em relação ao Quadro Fator Social, a variação é de 0 a 1 – o que rege a variação é a classificação do tipo de atividade (habitacional, institucional, entidades sem fins lucrativos, entendidas mantenedoras lucrativas e demais). Já o Fator de Planejamento está relacionado às macro áreas onde esse empreendimento está localizado na cidade. O quanto esse fator não teria o poder de calibrar com mais sensibilidade outras nuances das diversas atividades que estimulam o investimento no território? 

Dados de arrecadação de Outorga Onerosa em São Paulo são de 1 bilhão de reais de 2016 a 2021, sendo 20% a residencial maior que a do não residencial. A aplicação da outorga está sempre localizada na área central, intrarios, ou seja, indica que não foi um instrumento indutor de desenvolvimento em áreas periféricas - houve um desenvolvimento relevante na Zona Leste (Tatuapé), mas majoritariamente ele ocorreu nas áreas centrais.  

Dentro da análise diagnóstica tem surgido essa discussão de como poder revisitar o Fator de Planejamento no cálculo da outorga onerosa para que ele possa ser induzir o desenvolvimento da cidade. 

A outorga não foi, em si, um instrumento a favor das políticas públicas previstas no Plano Diretor. Afetou a ocupação da cidade do ponto de vista do preço/valor alocado à terra? Sim. Por conta da equação (AT x AC adotada), as zonas de uso com menor potencial construtivo passaram a ter um valor unitário de m2 adicional muito alto. E teve um desenvolvimento mais localizado nos eixos, porque se permitiu uma construção em maior montante, só que nas áreas mais nobres da cidade. 

O instrumento foi tratado de forma igualitária para o território como um todo, em um território que não é homogêneo. Essas nuances para poder calibrar e entender como se utilizar do instrumento da outorga é um tema relevante para se pensar na revisão do Plano Diretor de São Paulo.  

A Cota de Solidariedade, por exemplo, do ponto de vista conceitual pretendia ser um elemento de suporte para produção de Habitação Social, mas não fez cócega nenhuma. Ela passa a ser obrigatória a partir de empreendimentos com mais de 20 mil m2 de área computável, logo, a forma de pagar essa cota está na produção de interesse social, em unidades habitacionais, terrenos ou espécie ao Fundurb. Esta conta estará relacionada ao tamanho do terreno e não ao empreendimento.  

Acredito haver um erro conceitual na estruturação deste instrumento. Na minha opinião, se for para este instrumento existir complementarmente à outorga, ele deveria ser usado para todos os empreendimentos que se utilizassem do potencial adicional, porque a cidade contribui como um todo, e não apenas os acima de 20 mil m2, que são cada vez menos – de 30 empreendimentos, 26 dedicaram recurso financeiro ao Fundurb e 7 para habitação social – de 2014 a 2020, período longo, se a gente pegar os projetos nos eixos que foram produzidos se utilizando da cota de solidariedade, é uma quantidade irrisória.  

Também não conseguimos criar um instrumento que pudesse trazer a AHIS para ser mesclada com esses eixos mais nobres e infra estruturados. É um grande desafio para enfrentar do ponto de vista da viabilidade. Quais tipologias? Tipos de empreendimentos viáveis? Importante entender as dificuldades e tentar desenhar cenários reais. Mas como criar regramento em que essa mescla ocorra de forma mais inclusiva na cidade? 

Outro elemento poderoso que não tem a ver com a Outorga Onerosa, mas que é de arrecadação, são os polos geradores de tráfego. Em São Paulo, a partir do número de vagas ou do porte do empreendimento para determinados usos, ele ganha esse enquadramento: quando é um polo gerador, precisa contribuir com contrapartidas de mobilidade. Como a gente tem previsto que 30% da arrecadação vai para Mobilidade e outros 30% para Habitação, este é outro elemento complementar que gera incremento bastante importante, sem ser com recurso da Outorga Onerosa. 

Se fosse um instrumento aplicado a todos empreendimentos que se utilizam do potencial adicional, talvez tivesse uma relevância para ser aplicado de maneira mais dirigida à AHIS, sendo usado em ciclovias, passeios públicos, requalificação da mobilidade urbana, compondo essa família de instrumentos arrecadatórios.  

Mas quem regra os 30% é o Fundurb. E esta é uma questão sensível na organização das relações entre gestão, indução e arrecadação do recurso que precisam ser pensadas de maneira mais efetiva. O Fundurb trabalha estimulado por projetos, e por um debate democrático de interesses regionais – representando as vozes do território em suas subprefeituras, e suas carências e demandas territoriais. Estas destinações acontecem da seguinte forma: 30% para AHIS, 30% para Mobilidade e o restante para Equipamentos Urbanos, Patrimônio Cultural, Desenvolvimento Planos de Bairros e Espaços Públicos, área ambiental e áreas verdes. 

Tudo isso está relacionado a algo que não temos, um grande banco de projetos. O reconhecimento da existência de um banco de projetos, que tenha uma continuidade de implementação, é o que talvez legitimasse e garantia a disposição de projetos para alocação dos recursos provenientes de outorga. No entanto, fazer esses recursos girarem para a transformação da cidade a partir de projetos legitimados, é um desafio.  

Que instrumentos de análise temos na prática? Há recurso, tecnologia, e se utilizar destas ferramentas para calibrar o planejamento é algo que o Plano Diretor deveria se ocupar para poder criar caminhos de regulamentação de processos, para que isso fosse uma cultura implementada de forma mais sustentável.  

O período para se propor uma revisão é tão longo que não é capaz de acompanhar a dinâmica de transformação da cidade. Este é um desafio que bota em cheque a temporalidade do Plano Diretor, sendo uma questão paradoxal entre o peso de uma Legislação do tamanho de um PDE e a dinâmica da cidade, que se transforma ano a ano.  

Por isso, toda discussão para pelo entendimento e leitura do que é um comportamento de mercado - que vai buscar aquilo que lhe ofereça condições de segurança e estabilidade, que tenha rentabilidade e modelagem financeira adequada - e o que é uma visão dentro das políticas públicas que pautam o desenvolvimento do município e que correspondam ao interesse público, entendendo como associar esses projetos e plano de ação que correspondam o atendimento do interesse público e o poder pagador do mercado.  

Como aproximar esses dois mundos é a grande pergunta. O que mais pode se associar ao Fundurb, por exemplo, garantindo a implementação de ações de interesse público? Quanto mais o mercado produzir e arrecadar, mais poder pagador e arrecadação vai ter. Fazendo uma ponte entre o Fundurb e o Plano Diretor, a partir da experiência das Operações Urbanas em São Paulo, elas têm atreladas um plano de ação e os recursos estão relacionamentos a esse plano. A materialidade disso precisa existir: para onde vai o recurso? Para quais projetos?  

Para esta composição da Outorga Onerosa, o interessante seria uma eventual possibilidade de calibrar o valor do IPTU. Tem um momento que talvez deixe de ser suficiente esse valor, para se buscar uma outra composição para ele. Já o preço da terra está relacionado ao proprietário e não àquele que investe na terra. Quem paga pelo valor agregado, não é quem vende a terra e aí a equação não fecha. Somado a isso, a Outorga não vai baixar o valor da terra. Tem um cuidado a ser tomado para haver uma ação mais positiva de agregar a vitalidade do mercado a favor daquilo que é do interesse público. Assim vamos alocar com agilidade esse dinheiro. Será passando pelo Fundurb? PPPs? Fundo Imobiliário? Há diversos modelos para se dar celeridade a esses processos usando o recurso privado da Outorga. 

Logo, é preciso ter um olhar para essa composição e modelo de implementação do recurso. Não é o valor mais barato ou mais caro que vai mudar a percepção do mercado sobre a criação de um empreendimento. Não é esse estímulo que vai garantir o deslocamento do mercado. Ele ajuda, mas não teve a potência que se pretendia em São Paulo. Talvez tivesse tido mais eficiência a vinculação da Outorga na destinação de um projeto de desejo e alocar a verba neste outro lugar, que para a cidade é importante. O modelo pode ser vários e o Plano Diretor pode regulamentar esta questão. A Outorga ser tratada igual no território todo não vai ser a solução do problema, não é isso que o Plano Diretor tem mostrado. O poder do olhar público de eleger o que é prioritário para configurar projetos, consolidando um banco de projetos, criaria, a meu ver, uma agenda.  

ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤAdriana Levisky 


Rondinelli Martins

Arquiteto e Urbanista | Gerenciamento de Obras | Instrutor Técnico | Analista de Projetos | Especificador Técnico

2 a

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