Prevenção de acidentes: teoria e prática.
Acidente com o GIV N121JM, Bedford (EUA), fonte: NTSB.

Prevenção de acidentes: teoria e prática.

Em maio de 2014 um Gulfstream G-IV pertencente a uma empresa americana, matrícula N121JM, iniciou sua corrida de decolagem do aeroporto de Bedford, Massachusetts. As gravações do Voice Recorder indicam que a corrida de decolagem em condições visuais noturnas foi realizada normalmente até cerca de 80 nós, quando os tripulantes começaram um diálogo relativo à impossibilidade alcançar o batente das manetes à frente; apesar disso, a tripulação continuou a decolagem até o call-out de “Rotate” (VR), quando o piloto operando os controles descobriu que o manche estava travado... mesmo assim, não houve tentativa de abortar a decolagem até cerca de dez segundos após a velocidade de “go-no-go”. O avião ultrapassou os limites da pista, colidiu com as luzes de aproximação da cabeceira oposta e sofreu uma desaceleração violenta que seccionou a cabine. Após a parada da aeronave em uma vala, iniciou-se um incêndio que destruí completamente a aeronave. Os dois pilotos, a comissária de bordo e quatro passageiros morreram. A empresa operadora do avião, a SK Travel, havia obtido a certificação “IS-BAO Nível 2” da International Business Aviation Council (IBAC), que vem a ser um dos melhores selos de segurança e qualidade na Aviação Executiva.

Decidi escrever este breve artigo para compartilhar minha visão pessoal sobre a prática da Segurança Operacional ou Safety em organizações de aviação, em especial na aviação na qual voo, a Executiva ou Aviação de Negócios. Minha intenção é dividir algumas percepções acumuladas na prática da segurança operacional, adquiridas ao longo dos cerca de 25 anos no qual atuei em diversas posições na área de prevenção de acidentes, seja como investigador de acidentes, Oficial de Segurança de Voo, Gerente de Segurança Operacional (GSO) e como como piloto.

Tais vivências me permitiram ter uma visão abrangente da maioria dos aspectos da Aviação Civil no Brasil, desde o contato com as escolas de formação, passando pela aviação geral, taxis aéreos, operações em linhas aéreas regulares, certificação de estruturas de safety e, finalmente, na investigação de acidentes. Estes últimos são os eventos mais dramáticos da aviação, a conclusão de uma infeliz cadeia de erros que termina em grandes prejuízos materiais e, infelizmente por vezes, em tragédias que destroem vidas, famílias e empresas.

Desde 2005 a ICAO implantou o Safety Management System (SMS), traduzido no Brasil como Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO) cujo documento guia é o Anexo 19 da ICAO (https://www.icao.int/safety/SafetyManagement). O SMS muito resumidamente pode ser definido como um método sistemático e padronizado de gerenciamento dos riscos associados ao voo. A interpretação dos requisitos do SGSO pode gerar confusão para os gestores das empresas, devido à sua complexidade. Porém, não se deve perder de vista o fim último desse processo: evitar incidentes e acidentes, que são o pior pesadelo de empresas de aviação.

Pois bem, o objetivo desse artigo é que seja um resumo de tópicos ligados à segurança aérea, os quais abordarei de forma menos acadêmica e mais pessoal, tendo por base a minha jornada particular nesse tema.

 

1 Os alicerces de segurança de voo são caros

Uma anedota antiga na aviação diz que o mais importante componente que explica a física do voo dos aviões e helicópteros é o dinheiro. Por óbvio, existe um fundo de verdade nessa história.

Os alicerces da segurança no Brasil são muito mais custosos proporcionalmente do que na maioria dos países ocidentais. Temos um preço de combustível de aviação entre os mais caros do mundo, impostos elevados e anacrônicos, legislação trabalhista complexa, infraestrutura aeroportuária insuficiente e cara, judicialização elevada.

Há muitos anos, quando eu fazia parte do antigo DAC, tivemos que monitorar uma empresa regional operadora de turboélices ATR que – apesar dos bons serviços prestados por décadas – vivia uma decadência financeira e, inevitavelmente, acabou por encerrar suas atividades.

No que me cabia como piloto e inspetor de operações, tínhamos que acompanhar as operações na cabine de comando de um número razoável de voos por semana, de modo a garantir que as aeronaves estavam decolando em plenas condições técnicas e, em grande parte dos voos, que as panes em sistemas estavam sendo devidamente reportadas no diário de bordo. Como a frota restante da empresa fosse uma frota de aviões “cansados”, as falhas não programadas se tornaram comuns. Era muito triste ver o rosto preocupado de tripulantes e pessoal de apoio quando um dos aviões parava por mal funcionamento de um componente, o que gerava vários cancelamentos e atrasos nos voos da empresa, mais insatisfação nos clientes e por fim mais agravamento no quadro financeiro já crítico.

Como voar de maneira segura num ambiente assim?

O fato é que aquela empresa regional, que já tivera uma frota nova, aviões lotados e várias linhas lucrativas (incluindo o destino estratégico de Congonhas), vivera em seu passado um cenário muito promissor. Porém nos últimos dois anos de vida, acumulara o alarmante número de três incidentes graves. Dois desses incidentes foram perdas de controle em voo, sendo um deles associado principalmente ao desempenho dos pilotos e outro associado a uma falha de sistemas. Por sorte – muita sorte na verdade... – nenhuma das três ocorrências implicou em ferimentos ou perda de vidas. Essa tendência era imensamente preocupante, o que causou o citado monitoramento dos voos.

Eventualmente, as rotas ainda operadas pela empresa despertaram o interesse de compra por uma outra linha aérea que estava em fase de crescimento e isso fez com que a empresa e boa parte do quadro técnico fosse absorvido. No final, a maior parte do quadro de pilotos e pessoal de manutenção era de profissionais bem capacitados, mas que estavam operando em condições de suporte financeiro precário.

O que quero trazer neste exemplo prático é que uma empresa aérea não terá condições mínimas de possuir um sistema de segurança operacional ou de qualidade se não tiver um alicerce financeiro mínimo e um suporte de manutenção robusto. Porém quanto mais se economizar em treinamento do pessoal técnico e manutenção preventiva, mais a chance de incidentes que podem levar a quebra das aeronaves e eventualmente a incidentes graves que irão piorar mais ainda a situação financeira da empresa.

 

2 Segurança para “Inglês Ver”

Em todo site de uma empresa aérea nós poderemos encontrar frases como: “para nós a segurança está em primeiro lugar” ou “temos o mais alto compromisso com a segurança”, etc. Isso faz parte do jogo, mas nem sempre representa a realidade.

Frases desse tipo podiam ser encontradas também nas propagandas e nos manuais de empresas como as extintas NOAR e TEAM, duas empresas regionais brasileiras que encerraram suas operações devido a acidentes aeronáuticos fatais.

Alguns dos meus melhores instrutores ou líderes na área de investigação de acidentes destacaram que no Brasil, infelizmente, temos uma cultura de pouca valorização da segurança em geral, em todos os segmentos. Isso ocorre na forma como nos acostumamos a usar nossas estradas, como aceitamos a exposição ao risco de nossos motoboys, construção de casas em áreas sujeitas a deslizamentos, na forma como gerenciamos alvarás de contra incêndio, etc. Já no ambiente de aviação, nossa sociedade teve que importar – obrigatoriamente – noções de elevado padrão de segurança, inerentes à própria indústria da aviação. Esse choque de duas culturas distintas, a cultura do “jeitinho” versus a cultura da excelência na aviação é um fator determinante na gestão da segurança operacional nem nosso país.

É um fato que nas grandes e modernas linhas aéreas, bem como nos bons taxis aéreos do Brasil, as obrigações da legislação a elas aplicadas, as exigências de certificação, exigências das seguradoras e dos próprios fabricantes das aeronaves, implicaram no fato de que em nosso país existam empresas do mais alto nível de operações e segurança de voo. Certificações como o LOSA ou IS-BAO são obtidas por muitas das nossas empresas de aviação.

Porém, quanto menos profissionais as empresas ou quanto mais displicente a cultura de Safety, mais será a exposição ao risco de acidentes.

Nos últimos dois anos, por exemplo, tivemos um aumento indesejado no número de acidentes em taxis aéreos (ou “operações não-regulares”, conforme definição do RBAC 135) sendo talvez o mais relevante deles o que vitimou a cantora Marília Mendonça.

Não pude ler ainda nenhuma conclusão sobre o motivo desse incremento nos acidentes em taxis aéreos – teoricamente organizações cuja certificação e vigilância as tornaria mais seguras – mas quem sabe possamos especular que possa estar associado ainda aos recentes impactos financeiros da crise da COVID-19, bem como pela diminuição da vigilância operacional dos órgãos reguladores sobre os taxis aéreos em passado recente.

A certificação de uma linha aérea ou de um taxi aéreo exige requisitos bastante elevados, derivados da legislação internacional da ICAO e espelhados pelas normas da ANAC. A existência de uma Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO) é um desses requisitos, que por sua vez implica em um sistema de garantia da qualidade voltado à segurança que, na maioria das vezes, é de difícil aplicação prática por empresas com estrutura financeira e operacional mais simples.

Certa feita, quando investigava um acidente em um taxi aéreo de transporte de malotes, comecei a ler o Manual Geral de Operações da empresa. O MGO é por assim dizer “a Bíblia” de uma empresa e na qual estão escritos todos os compromissos e procedimentos gerais voltados ao seu funcionamento e segurança. Em certo trecho, no capítulo de procedimentos para embarque de passageiros, deparei-me com todo um parágrafo o qual descrevia os procedimentos de cuidado para o embarque em helicópteros... ocorre que a empresa só possuía aeronaves de asa fixa! Muito provavelmente esse manual fora simplesmente copiado e não refletia a cultura real da empresa. Fico pensando se qualquer piloto dessa empresa sequer tenha lido alguma vez esse documento. Ainda no decorrer das investigações, quando solicitamos a presença do Gerente de Segurança Operacional (GSO), verificamos que ele era um profissional terceirizado, que residia em outra cidade, com nenhum contato direto com os gestores, pilotos e mecânicos da empresa.

Por certo, dificilmente teremos discrepâncias tão grandes assim em um grande taxi aéreo ou em uma linha aérea regular, podendo nessas grandes organizações a improvisação ocorrer de maneiras inconscientes e mais sutis, que podem gerar efeitos inseguros menos previsíveis. Um dos exemplos ocorreu em uma grande linha aérea regular no Brasil, quando a alta gestão, pressionada pela redução dos custos operacionais, decidiu diminuir o número de funcionários necessários para o reboque de suas aeronaves nos pátios. Mais ainda, decidiu terceirizar os funcionários responsáveis pelos reboques. Ocorre que a mistura de redução de pessoal, pessoal terceirizado e treinamento insuficiente gerou, num curto espaço de tempo, pelo menos três colisões em solo (ou “ocorrências de solo”) com graves danos estruturais nos aviões, que implicaram em grandes reparos, aviões parados por longos períodos e sérios prejuízos financeiros. Toda a economia gerada por essa “otimização” de pessoal escorreu ralo abaixo e ainda se transformou em prejuízos de grande monta.

Exemplo de abalroamento em solo em operações de handling. Fonte: Daily Mail Reporter.


 

3 A cultura punitiva não funciona

Nos filmes policiais americanos temos a famosa figura da dupla que interroga os bandidos presos na delegacia, procurando arrancar uma confissão: de um lado o policial bom (“good cop”) e do outro o policial mau (“bad cop”), esse último é aquele que é ou finge ser um sujeito durão, que dá murros na mesa e coloca o dedo na cara do suspeito, procurando impor medo que leve à confissão.

Em minha opinião, Gerentes de Segurança Operacional deveriam ser em essência os good cops, aqueles que descobrem os crimes por dedução, por métodos mais sutis, oferecendo “cigarros e café quente” para os “suspeitos”. Em outras palavras: cultura punitiva gera medo e não funciona. O trabalho de prevenção deve ser, em essência, colaborativo.

De fato, na filosofia do Safety Management como definido pela ICAO, não existem “infratores” nas operações aéreas, porque o Erro Humano é considerado como um componente inerente ao ser humano e ninguém normalmente erra porque quer produzir conscientemente um acidente. Um piloto não acorda pela manhã e dirige até o aeroporto pensando que naquele dia irá colidir com um fio de alta tensão. Mesmo em organizações supercompetentes e sofisticadas, como a NASA, o erro humano está presente e já causou acidentes. Na maioria das vezes, pessoas comentem erros por falta de procedimentos claros, falta de treinamento ou por pressões externas. Punições indiscriminadas ao erro humano tendem a produzir um clima de “caça às bruxas”, de medo de reportar falhas, de omissão de informações e acobertamento.

Penso em especial nos processos de reportes voluntários, nos Reportes de Prevenção (RELPREV). Se na sua empresa as pessoas em todos os níveis começam a encher as caixas de reportes ou procurar o pessoal de safety voluntariamente para aquele “papo de cafezinho”, parabéns, vocês estão no caminho certo! Se por outro lado, as caixas de RELPREV são depósitos de poeira nos hangares e os mecânicos e pilotos desaparecem do hangar quando o gestor de Safety aparece... lamento, sua empresa está no caminho de incidentes.

A exceção de ouro à regra da não punição ocorrerá nos casos das violações propositais às regras de segurança em que se comprovem violações propositais às normas, conforme amplamente conhecido.

Resumindo: o olhar inteligente das organizações sobre o erro humano é investigar sua causa raiz e construir melhores procedimentos, treinamentos ou tecnologia que minimizem a chance de que tais falhas ocorram novamente. Não se deve “matar o mensageiro” de falhas na segurança.

Eu tive a oportunidade de atuar por cerca de sete anos em funções executivas de gestão de safety dentro de organizações diretamente envolvidas com o voo. Nesses anos, aprendi que o mais difícil não é coletar as informações sobre ameaças à segurança dos voos, mas trabalhar como facilitador de discussões positivas entre gestores e técnicos, de forma a se evitar que “acusações sobre quem falhou” comprometam a melhoria geral dos processos.   

Apesar de ser um fato que o erro faz parte da natureza humana, não faz parte dessa mesma natureza - exceto talvez para monges tibetanos - expor ou admitir seus erros pessoais ou os erros de seu departamento. Com o perdão da piada... o oposto de um monge tibetano parece ser o aviador: um ser que em sua autoimagem flutua acima das imperfeições humanas!

O Gerente de Segurança Operacional deve ser um profissional que saiba conquistar de maneira verdadeira a confiança dos pilotos porque, em última análise, esses são os profissionais da empresa que estão constantemente na linha de frente mais crítica das operações, aqueles que eventualmente terão que lidar com os efeitos finais de uma cadeia de eventos (internos ou externos à empresa, incluindo deficiências no projeto das aeronaves que voam) e que terão que lidar com dificuldades ou ameaças à segurança (infraestrutura, meteorologia, passageiros difíceis, etc.). Embora não seja obrigatório, muitas das organizações designam aviadores para colaborarem com o time de segurança operacional, pelo fato desses profissionais compreenderem toda a criticidade do voo e por possuírem um lugar de fala entre o time dos pilotos.

Eu acredito que o perfil de comportamento de um gestor de segurança deve ser o de um sujeito que aprecie ouvir pessoas, que procure ter racionalidade, que busque o conhecimento técnico e que seja diplomático. Diplomático não significa ser apático ou omisso. Em minha opinião, uma organização inteligente deve saber selecionar para posições no departamento de Safety pessoas que possuam habilidades de comunicação, gestão de pessoas e gerenciamento de conflitos, obviamente no nível proporcional à complexidade de suas operações.

A porta do departamento de Safety deve estar “sempre aberta”, “24 por 7”, mesmo que de forma virtual. O telefone ou o “WhatsApp” do pessoal do time de safety deve poder ser acionado a qualquer momento, não só para emergências, mas sobretudo para o reporte de situações práticas na rotina do voo, muitas das vezes reportadas em confidencialidade.

Um bom gestor de segurança deve andar pelo hangar e saber conversar com todos os envolvidos na operação, desde pilotos, engenheiros, mecânicos, passando pelo pessoal de vendas, suporte administrativo, até o pessoal com tarefas mais simples como o reboque ou limpeza de aeronaves.

O GSO deve ser uma pessoa ética e consciente de que muitas das conversas e relatos voluntários lhe são confiados porque as pessoas se preocupam com as condições inseguras que podem afetar sua empresa, seus empregos ou sua segurança pessoal. Apontar culpados, gerar perseguições, demissões ou provocar discórdia entre departamentos é o caminho perfeito para os gestores de segurança das empresas perderem liderança e protagonismo na prevenção de ocorrências.

Um gestor de segurança operacional que seja temido ou evitado nos ambientes de operação da empresa é, em essência, pouco eficaz em seu trabalho.

Por fim, em nome da segurança, um bom gestor de safety não deve ter receio de falar de forma franca ao Diretor ou Presidente de sua empresa, reportando problemas que afetam a segurança e propondo soluções praticáveis e inteligentes.

 

4 “Lembra-te da Segurança!”.... o papel do Gestor Responsável

Conta-se que no Império Romano os grandes generais quando adentravam Roma, vencedores de grandes conquistas, levavam em suas bigas um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido: “lembra-te que és mortal”! Eu penso que atuais gestores na Aviação deveriam programar sua Alexia ou Siri para pelo menos uma vez ao dia lhes sussurrar: “Lembra-te da Segurança!”.

É um fato que o foco de um Presidente ou Diretor de uma empresa aérea reside no resultado financeiro. Da saúde financeira de uma empresa dependem os empregos de todos os colaboradores e o lucro dos acionistas. Líderes nesse mercado tão complexo que é a aviação estão em constante esforço por atrair clientes, destacarem sua empresa em meio à concorrência acirrada, buscar o equilíbrio financeiro em um negócio extremamente regulado.

Porém um líder na Indústria da Aviação jamais poderá cometer o pecado de não reservar uma parte importante de sua rotina para os assuntos de segurança operacional ou poderá ter a infeliz surpresa de ter seu nome citado num documentário do NETFLIX ou num episódio de um Youtuber “Especialista em Aviação”. A aviação é em essência uma atividade na qual a percepção sobre segurança é parte estratégica dos negócios.  

No que diz respeito à segurança, Presidentes e Diretores devem liderar pelo exemplo e dar irrestrito suporte aos procedimentos de safety. Abrir pelo menos um encontro semanal em sua agenda para seu gestor de safety é essencial.

Presidentes de empresas que frequentam o pátio de manobras ou o DO podem dar uma mensagem muito positiva a todos. Exemplos simples podem fazer toda a diferença. Nos grandes porta-aviões da Marinha Americana, a “Cata FOD” (Foreign Object Debris) já virou uma tradição, na qual o almirante comandante do navio, por alguns minutos do seu dia, desce no convés de voo para apanhar restos de borracha e parafusos junto com marinheiros, mecânicos e pilotos.

A presença do CEO no mutirão de “Cata FOD” está passando uma mensagem muito maior do que a relativa aos objetos que podem furar pneus ou serem arremessados pelas turbinas; estarão passando a mensagem subliminar de que realmente se importam com a prática da segurança no dia a dia. “Se as palavras convencem”...

Caminhada de prevenção ao FOD. Do Comandante ao marinheiro menos graduado, todos fazem a caminhada no


Também a Política de Segurança Operacional fixada nos quadros de aviso e constante dos manuais do SGSO não pode ser um conjunto de palavras para a ANAC ou para o auditor do IOSA ou do IS-BAO ler no dia da auditoria. Se um gestor aprova uma política na qual se compromete a receber reportes voluntários de seus funcionários a respeito de segurança e se está escrito que tais reportes serão bem-vindos, que haverá a garantia de sigilo nos mesmos e que serão devidamente tratados, esse gestor deve ser o garantidor desse processo e seu grande incentivador.

Por todas as organizações onde passei como gestor de Segurança Operacional tive a sorte de ter Presidentes/Comandantes que compreenderam seus papéis como líderes no processo de prevenção de acidentes e que utilizaram a ferramenta do SGSO para melhoria de procedimentos. Jamais fui solicitado a revelar um nome de um funcionário que realizou um reporte sigiloso de segurança de voo e, melhor ainda, tive líderes que souberam dar plena atenção aos assuntos e aos indicadores de segurança do departamento de Safety como ferramentas úteis em sua gestão.

 

5 Cuide do óbvio

Agora voltemos ao acidente do Gulfstream G-IV em Bedford. O relatório de investigação apontou como fator contribuinte determinante que os pilotos não realizaram um cheque de comandos de voo antes da decolagem (cheque este obrigatório no check-list do fabricante), o que teria revelado que o sistema de "bloqueio de rajadas" do avião, que protege as superfícies de comando de rajadas de vento no pátio de estacionamento ainda estava totalmente engajado e, portanto, bloqueando os controles de voo. Uma revisão dos dados do quick access recorder revelou que os pilotos deixaram de realizar verificações completas dos controles de voo antes de 98% de suas 175 decolagens anteriores no avião, indicando que essa displicência era habitual e não um evento excepcional.

Os processos de garantia de qualidade focados em safety, tais como o próprio SGSO, o IATA Operational Safety Audit (IOSA) ou o International Standard for Business Aircraft Operations (IS-BAO) deveriam poder blindar os operadores de cometerem erros tais como os descritos no acidente em Bedford, porém, conforme o exemplo nos mostra, há que se ter uma vigilância contínua e “prática” nas operações para se garantir que tais tragédias não ocorram.

Acredito que as organizações que tenham competência para obter tais certificações estarão sim muito mais protegidas em relação às que não as possuam, mas o erro humano é traiçoeiro e aspectos individuais ou mesmo de comportamento de grupo podem gerar condições propícias aos acidentes.

Meu ponto é que não adianta termos certificações se perdermos a mão na prática da segurança no dia-a-dia. Abaixo alguns exemplos:

(a)    Ameaças tem que ser alertadas continuamente: o tipo de acidente mais “assassino” na aviação é o “Voo Controlado Contra o Solo” (CFIT). Dois exemplos recentes desse tipo de acidente são a tragédia que vitimou o ídolo do basquete Kobe Bryant nos EUA ou a cantora brasileira Marília Mendonça aqui no Brasil. Embora cada vez mais difíceis de ocorrer na Aviação Comercial, devido à tecnologia embarcada e sobretudo ao ambiente de operação em grandes aeroportos, o CFIT é uma ameaça real na Aviação Executiva que opera em aeroportos/helipontos com pouca estrutura, quase sempre implicando em perda total da aeronave e na morte de todos os ocupantes. Não adianta o gerente de safety da empresa listar tal ameaça no manual de segurança operacional da empresa se o tema não for continuamente martelado para os tripulantes através de boletins, relatórios de acidentes, aulas e treinamentos periódicos. Da mesma forma, ameaças como o Runway Excurison, fadiga, influências da meteorologia, etc., devem ser continuamente trazidos à tona e discutidos.

 

(b)    Gestores de safety tem que “gastar sola de sapato”: não basta ministrar uma palestra sobre segurança operacional ao time de manutenção e nunca mais aparecer na oficina. É necessário que a equipe de segurança operacional – que nas pequenas organizações será um único indivíduo – se interesse em percorrer os hangares periodicamente, converse com os mecânicos envolvidos nas manutenções e aprenda suas dificuldades e preocupações. Da mesma forma, deve estar presente na sala dos pilotos, no despacho operacional e na sala do cafezinho.

 

(c)     Procedimentos no papel não se cumprem por mágica: os procedimento e padrões aprovados nos manuais são importantes, mas não garantem que a equipe os cumpra. Nas organizações mais sofisticadas como as grandes Linhas Aéreas, temos ferramentas de monitoramento automático em voo como o Flight Operational Quality Assurance (FOQA), que monitora e indica a extrapolação de perfis de voo. Já nas organizações menores, não há como descobrir se existe aderência aos procedimentos de voo sem que periodicamente haja conversas com as tripulações, participação nas reuniões de padronização, nos voos de treinamento e mesmo nos voos de cheque. De maneira similar, a organização deve verificar por meio de auditorias e vistorias nos departamentos, se aquilo que foi escrito e acordado está de fato sendo cumprido.

 

 

6 Conclusão

A aviação brasileira, apesar das turbulências econômicas dos últimos anos, possui competência técnica para operar em níveis de qualidade e segurança comparáveis ao que de melhor existe nos países mais desenvolvidos nessa área.

Estou convencido de que a evolução da cultura de segurança e a melhoria das estatísticas relativas aos acidentes aéreos no Brasil depende da valorização das técnicas de gestão da segurança operacional. Essa ferramenta não deve ser encarada como um mero requisito formal, mas devemos e podemos aplicá-la em termos práticos no dia-a-dia das operações de voo.

Excelente publicação, Edson! Parabéns!! Forte abraço.

Alexandre Canadas

Comandante de voo na Voar Aviation

5 m

Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos pela sua recente publicação sobre SGSO. Suas insights são valiosos não apenas para profissionais da aviação, mas também para todos os interessados em entender os bastidores e as práticas que garantem voos seguros. Mais uma vez, obrigado por seu trabalho dedicado e por contribuir significativamente para melhorar a segurança aérea. Uma grande influência na minha carreira como aviador! Um grande abraço Edson.

Parabéns meu amigo e grande gestor de segurança de voo, com quem tive a satisfação e honra de trabalhar, pelas execelentes reflexões, que mostram um pouco do seu conhecimemto e competência no assunto. Forte abraço!

Judá Messias

Safety Analyst at the Aviation Command of the Military Police of the State of São Paulo - CAvPM São Paulo.

5 m

Cmte Edson, se todos os GSO e CEO pudessem ler este artigo, poderíamos dizer o mesmo que: se ao menos, fruto deste trabalho, eu puder salvar uma vida, terá valido a pena. Excelente abordagem de segurança de voo direto nas feridas que uma Organização pode ter em sua operação.

Luis Henrique Dietschi

Piloto de King Air 350/360 | ICAO/FAA ATPL avião | PC/IFRH helicóptero | ICAO 5

5 m

Grande amigo Cel. Edson. Como sempre as suas análises são uma excelente fonte de aprendizado e reflexão sobre a segurança de voo. Lembro dos nossos voos de re-check, onde sempre tínhamos um ótimo bate papo sobre tomada de decisão, planejamento e segurança o de voo. Grande abraço e ótimos voo.

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