Private Eye, a imprensa que funciona
O Private Eye é o quarto semanário mais vendido do Reino Unido. São 233 mil cópias. É mais do que The Economist (221 mil), The Week (198 mil) e quase duas vezes a venda da Time (130 mil). A tradução aproximada de “Private Eye” é “detetive” ou “investigador”. O jornal é um meio-tabloide de 50 páginas e custa duas libras. Para efeito de comparação, o Guardian é vendido a 2,90 libras, enquanto a luxuosa Vanity Fair britânica sai por 6,99.
Nunca existiu nada parecido com o Private Eye no Brasil, mas a publicação que mais se aproxima dele é o Pasquim. O jornal se define como satírico e de centro-esquerda. Tem cartuns, reportagens, crônicas, resenhas e a capa é sempre uma “fotopotoca” (a imagem jornalística da semana com balões de diálogos). A massa de texto é sólida, com três colunas em corpo 12 por página. E a pancadaria rola solta. Mesmo alinhado à esquerda, o jornal não poupa Jeremy Corbyn, atual líder do Partido Trabalhista, tratado sempre como um picareta oportunista. O Brexit e a direita apanham ainda mais. E a realeza é ridicularizada semana sim e outra também, assim como jihadistas, imigrantes, celebridades e a intelectualidade. Uma das seções mais divertidas do jornal é o “Pseuds Corner”, que reproduz as frases mais pernósticas e patéticas de artistas, filósofos, colunistas e escritores.
Isso tudo é impensável no Brasil, onde a maior parte do humor se reduziu a linha auxiliar de correntes políticas. A seção “Street of Shame” (Rua da Vergonha), então, seria impublicável. São três páginas que revelam os bastidores mais comprometedores da mídia britânica. A coluna fala de puxadas de tapete, assédios, relações promíscuas entre editores e governo e, frequentemente, aponta discrepâncias entre as políticas editoriais e os anunciantes dos jornais. Também ridiculariza semanalmente as chamadas de primeira página.
Private Eye foi fundado em 1961 por Richard Imgrams, Paul Foot, Christopher Book e o cartunista e escritor Willie Rushton. Dois anos depois, à beira da falência, foi comprado pelo ator, escritor e humorista Peter Cook. Com o argumento de que a sátira precisava ser preservada na Grã Bretanha, ele juntou amigos ricos e sugeriu que eles se quotizassem para financiar o jornal.
Nos anos 80, o Private Eye passou a ser editado por Ian Hislop, que está lá até hoje. Ele se orgulha de ser o homem mais processado da Inglaterra. Com a morte de Peter Cook em 1995, os “quotistas-celebridades” saíram e o jornal, hoje, é publicado pela Pressdram Ltd, que tem sete shareholders. Um deles é Hislop.
O Eye sempre teve grandes colaboradores. Entre eles, o diabólico Auberon Waugh, autor de engraçadíssimos “Diários” falsos, que ridicularizavam o mundo literário e jornalístico. O cartunista Gerald Scarfe, responsável pelas sequências animadas do filme “The Wall”, do Pink Floyd, também foi assíduo nos primeiros anos. Craig Brown segue por lá até hoje, parodiando semanalmente cartas e diários íntimos de celebridades. Graydon Carter, o longevo editor da Vanity Fair americana, era um fã declarado e manteve Brown como colaborador da revista até 2017, quando deixou a redação.
O site do Private Eye é espartano e funciona mais como teaser para assinaturas . Os perfis no Twitter, Instagram e Facebook são institucionais e só publicam cartuns esparsos. Textos completos, nunca.
A “crise do meio impresso” é uma realidade que precisa ser enfrentada com originalidade e atrevimento. O Private Eye é um grande exemplo de como fazer isso com graça e coragem.
(publicado originalmente no Portal Imprensa)
Mestrando em comunicação, cartunista e publicitário.
5 aGostei especialmente de: "O site do Private Eye é espartano e funciona mais como teaser para assinaturas . Os perfis no Twitter, Instagram e Facebook são institucionais e só publicam cartuns esparsos. Textos completos, nunca." Isso vai na contramão da produção insana de conteúdo que vemos em muitas esferas da comunicação. Essa produção desenfreada torna o produto cada vez mais barato aos olhos do leitor.