A PROPAGANDA EM CIMA DO MURO
Caminhamos, mas ainda não chegamos nem perto da representatividade na mídia.
A propaganda articula seus argumentos em torno do que vende. E até aí, nada de novo. Ela também procura se adequar à realidade e aos fatos sociais, mas há um claro descompasso entre o que a propaganda, o marketing e as marcas tornam visíveis e o que a sociedade é na realidade. A sociedade é feita de diversidade e isso é verdadeiro. Não se trata de gosto pessoal. Não se trata de fantasia ou de ideologia. A realidade é feita da diversidade. A humanidade é diversa, singular, diferente e heterogênea. E isso, caros publicitários, caras lideranças, caros blogueiros, caros formadores de opinião, é inquestionável.
Dito isto, temos que refletir se as marcas estão preparadas para aceitarem a diversidade. Creio que não. Pelo menos é o que se percebe pelo modo como aprovam e pagam pelos inúmeros comerciais e anúncios que circulam na mídia e nas redes sociais. De um lado, estão as marcas que sequer enxergam a diversidade e perpetuam estereótipos para lá de antigos e nada criativos. Entre os publicitários fala-se que é a tal da propaganda de margarina. Só tem brancos, só tem magros, só tem casas de classe média “padrão”, só tem papai e mamãe, só tem cachorro. Ou seja, uma chatice. Nem eles mesmos aguentam mais. Na linha do meio, as marcas que perceberam a diversidade, mas patinam na linguagem e só veem a diversidade como mais um segmento de vendas. Nesse grupo, estão aquelas marcas que até fazem uma tentativa de comunicar que estão, sim, do lado da diversidade, mas seus argumentos são tão frágeis que os comerciais saem carregados de ideias fracas, ruins e que até prejudicam a dura batalha pela representatividade de milhares de grupos sub-representados na propaganda. É o caso das propagandas que colocam uma mulher no meio de um grupo de homens, todos com cara de ‘executivos’ estereotipados, mas que entre seus dirigentes só contratam homens alfa e praticam a diferenciação salarial dentro de suas organizações. Ou o caso de marcas que divulgam comerciais em que são vistas juntas pessoas com deficiência e sem deficiência, com o argumento simples do ‘viu como somos bonzinhos e até aceitamos colocar um deficiente (sic) na propaganda’ e perpetuam falas carregadas de preconceito. No extremo oposto, um grupo pequeno, de ponta, alinhado na sua cultura interna com as políticas organizacionais e com o mercado, estão as marcas que perceberam que podem incluir a diversidade na sua missão e nos seus esforços de organização, de inclusão e de relação com o mercado. Esse grupo raro concebe uma gestão e, portanto, uma comunicação revolucionária e se destaca perante consumidores, concorrentes e demais players.
Nesse cenário, é um sinal de que as coisas estão mesmo ruins no mundo do marketing e da comunicação, quando um órgão que deveria promover o respeito moral pela diversidade na propaganda evidentemente demonstra que está do lado errado do campo. Recentemente, o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) publicou nas suas redes sociais e tem divulgado na mídia uma campanha constituída por dois vídeos (Moda e Café da Manhã) onde afirma que “já pensou se todo comercial tivesse que ter opções para agradar todo mundo? Por isso que existe o CONAR. Para separar o que é gosto pessoal do que é ofensivo e ilegal”.
Os vídeos mostram, lado a lado na tela, duas situações em clara oposição conceitual ou simbólica que, segundo o comercial, se tratam de exemplos de gostos pessoais. Ou seja, cada situação na narrativa dos vídeos estariam em uma linha imaginária simbólica de gostos pessoais. Segundo o CONAR seriam exemplos de gosto pessoal: modelo magra X não magra, filmes com etnia no seu conteúdo X filmes sem etnia no seu conteúdo, bexigas 'normais' (sic) X bexigas com gás hélio, cenas contendo diferentes boias de piscina, tipos diferentes de casais, roupas de cores e modelos diferentes entre si, pessoas diferentes e estilos musicais diferentes (vídeo ‘Moda’) e, no outro vídeo (‘Café da Manhã’) família homem-mulher-filhos X família mulher-mulher-filhos, atores gordinhos X atores não gordinhos, café com açúcar X café sem açúcar, bichos de estimação diferentes entre si, torrada de pão não integral X torrada de pão integral, homem-mulher lendo jornal X mulher-mulher lendo tablet, pão não integral X pão integral, filhos-homem-mulher-café da manhã X filhos-mulher-mulher-café da manhã, goiaba branca X goiaba vermelha.
Bem, colocar lado a lado como gosto pessoal goiaba branca X goiaba vermelha e filmes com etnia no seu conteúdo X filmes sem etnia no seu conteúdo ou ainda bexigas normais X bexigas com gás hélio e família homem-mulher-filhos X família mulher-mulher-filhos é, no mínimo, um indício de que não se conhece o conceito da força simbólica dessas comparações. E, por outro lado, indica também um grande desrespeito pelos aspectos morais e éticos que deveriam nortear as decisões de comunicação de massa. Trocando em miúdos, das duas uma: ou quem fez isso não entende nada de propaganda ou não entende nada de diversidade.
A explicação é simples: gosto pessoal diz respeito a apreciar ou não apreciar algo. Ou seja, há quem aprecie goiaba branca e há quem aprecie goiaba vermelha. Há quem aprecie pão não integral e há quem aprecie pão integral. Há quem aprecie café com açúcar e há quem aprecie café sem açúcar. Todos são exemplos de gosto pessoal. E a etnia, como fica? Simples: não é gosto pessoal. É condição social. É diversidade humana. Então, não dá para dizer – CONAR – que se trata de gosto pessoal, pois não é gosto pessoal. Etnia diz respeito a características comuns a seres humanos. Não se trata de gosto pessoal e, portanto, não é questão que se põe na mesma balança. Etnia deve ter representatividade na propaganda e basta. Não se discute mais isso, pois já está ultrapassado, não é verdade?
Outra explicação simples: gosto pessoal envolve paixão, envolve amor. Então, um homem pode amar outro homem, assim como uma mulher pode amar outra mulher, assim como um homem pode desejar um homem, assim como uma mulher transgênera pode desejar e amar uma mulher cisgênera, assim como... infinitas possibilidades. Isso é gosto. O que não é gosto é a representatividade disso na propaganda, isto é, o simbólico expresso na linguagem na mídia. Simplesmente porque o simbólico não é gosto, é condição humana representada. Por isso que não dá para dizer na propaganda que se trata de gosto o conceito de homem-mulher-filhos em oposição ao conceito de mulher-mulher-filhos, pois o gosto não diz respeito à representatividade simbólica. Mulher-mulher-filhos não é gosto, é representatividade. Mulher-mulher-não filhos não é gosto, é representatividade. Homem-homem não é gosto, é representatividade. Transgênera-mulher não é gosto, é representatividade. Etnia X-Y-Z não é gosto, é representatividade. Pessoa com deficiência não é gosto, é representatividade. Não se confunde nada disso com gosto. É um erro grave.
Retomando, das duas uma: ou quem fez isso não entende nada de propaganda ou não entende nada de diversidade. Se não entende nada de propaganda, seria melhor mudar de atividade. Se não entende nada de diversidade, deixo duas dicas. Pare com essa coisa de associar gosto com diversidade que é feio, errado e vai no sentido contrário da humanidade. E, informe-se, conheça, pesquise, abra espaços de diálogo da marca com a humanidade: há milhares de pessoas, grupos, coletivos, organizações que lutam diariamente pela inclusão, pela diversidade, pela representatividade. “Nada de nós sem nós”.
Muito bom! E eu nem sei mais o que dizer da campanha do CONAR. Não sei se foi um baita equívoco, incompetência mesmo, ou maldade, vontade de segurar os avanços evidentes que estamos realizando, mesmo que com as poucas empresas corajosas que fazem diferente e fazem bem. Justiça e gosto não se misturam. :)