Racismo e Direito: Precisamos de um Dia da Consciência Negra?

Racismo e Direito: Precisamos de um Dia da Consciência Negra?

Não me descobri negra, fui acusada de sê-lo
Joice Berth

 

Desde que passei a dar relevância ao Dia da Consciência Negra, não teve um ano em que não ouvi que não precisamos de um dia desse, mas sim de um dia da consciência humana. Que ter um dia da consciência negra é nos afastar da igualdade, pois todos somos iguais. Com o tempo, percebi que essas falas são uma reprodução do racismo estrutural que vivemos.

Com esse brevíssimo texto busco trazer algumas reflexões, as quais são marcadas pela minha formação e posição social e não necessariamente refletem uma unanimidade do tão heterogêneo movimento negro.

Escrever sobre isso aqui no LinkedIn, pelo segundo ano, para mim já é uma quebra do racismo estrutural que de algum modo eu mesmo reproduzia. Marcela Bonfim nos alerta com frequência que a maioria dos negros brasileiros precisam aprender a ser negros. E mesmo para nós esse é um processo doloroso. A ideia da igualdade racial no Brasil é vendida reiteradamente como uma verdade, ao custo do silêncio dos oprimidos, quebrar esse falso mito é complexo, uma vez que o racismo é uma característica de nosso sistema.

A estrutura social brasileira construiu-se a partir de uma hierarquia marcada pela raça que passa por todos espaços da vida social. Na ciência, por décadas as maiores referências sobre povos negros foram professores brancos. Nas artes, o racismo recreativo, como em Os Trapalhões, tornou opressões piada e buscou normalizá-las. No sistema penal, a cor virou prova de culpa.

No contexto em que me insiro, reproduzi o racismo estrutural na medida em que nos primeiros anos nunca aceitei convites para palestrar sobre negritude. Dentre vários argumentos, sempre apontei que existem professores negros e professoras negras mais capazes do que eu, pois as teorias raciais até então não eram um objeto de meu estudo. Com o tempo, vi que vivia o medo do epistemicídio. Para epistemicídio, gosto da definição da Djamila Ribeiro que nos informa que é o apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos. Ocorre tanto com a não indicação de negros como bibliografia como pelo processo de apagamento deles de obras nas quais são parte fundamental.

Desse modo, tinha medo de ao tratar de teorias raciais ser invalidado como internacionalista ou maritimista. Como se de algum modo estivessem me colocando cientificamente no pequeno espaço que me cabia.

Com o tempo, descobri que o melhor caminho para o autoconhecimento e para compreensão de meu papel social era compreender o ser negro também do ponto de vista científico. Negro e filho de mãe negra, sempre frequentei espaços dominados pela branquitude: meus pais me deram oportunidade de estudar nos melhores colégios, estudei idiomas, fiz intercâmbio. Nesses espaços, a violência não é tão explícita como vemos em outros, o que nos faz por vezes acreditar em igualdade social. Lembro até hoje do dia que percebi que por 8 anos estudei sem que tivesse nenhum outro negro na minha sala em um país onde mais de 56% da população é negra.

Por vezes também tive medo de que o discurso da teoria racial de algum modo parecesse vitimização, pois assim também nos faz sentir as estruturas do racismo em que vivemos. Hoje sei que as teorias raciais são libertação, pessoal e social.

Falar sobre negritude hoje é um compromisso social que assumo. É preciso que todos, independentemente de raça, busquemos cotidianamente romper com a reprodução do racismo estrutural. Estrutural pois está em todos os elementos estruturantes da nossa sociedade e é reproduzido involuntariamente. Todos são racistas de algum modo, o que os diferencia é capacidade de enxergar e de se libertar dessas crenças.

O Direito Marítimo e o Direito Internacional ainda são campos majoritariamente brancos, reproduzindo de certo modo a configuração do nosso direito. Lembro até hoje da primeira vez que despachei com uma juíza negra, do primeiro professor negro que tive. A ausência de um censo nacional da advocacia nos dificulta trabalhar com números, mas a Aliança Jurídica pela Equidade Racial apontou poucos anos atrás que menos de 1% dos sócios e advogados de grandes escritórios são negros. No judiciário, temos apenas 6% de juízas negras.   

Ocupar cargos e atingir posições de liderança é uma forma muito efetiva de mitigar o preconceito. A autonomia intelectual permite que os oprimidos se libertem, bem como enfrentem seus opressores. Escritórios de advocacia e associações profissionais devem assumir compromissos cotidianos com a diversidade racial, mesmo que para tanto tenham de apoiar instituições transformadoras.

Falo de instituições transformadoras por ouvir recorrentemente que não há profissionais negros capacitados para determinadas funções. Embora discorde dessa afirmação em sentido amplo, em parte a estrutura racista que dificulta o acesso de negros, principalmente os mais pobres, aos sistemas de ensino torna isso verdadeiro em parte. Quantos negros cursaram inglês com você? Havia negras no seu LLM? Por isso instituições que auxiliam a permanência e ingresso de negros e negras em espaços de formação são tão relevantes.

Nos últimos meses o ESG tomou conta dessa rede social, mas ainda vejo pouca maturidade na forma com que o recorte racial é observado. Mais do que um produto, uma consultoria, ESG deve ser uma cultura genuína. Não há dúvidas de que é um processo complexo, reconhecer-se como racista ou até mesmo sua empresa é desafiador, mas é passo fundamental para que transformações existam.

Em um país majoritariamente negro, a pouca relevância que a negritude tem no contexto do ESG, seja como atores ou sujeitos, demonstra a necessidade a construção de uma perspectiva nacional. A consciência social depende antes de tudo do conhecimento social. Prática premiadas em contextos europeus podem ser inócuas em nossa realidade.

Ter passado de um depoimento de traços pessoais para considerações sobre ESG parece até uma falta de habilidade redacional, mas é como respondi aos colegas que me questionaram sobre a relevância do Dia da Consciência Negra nesse ano. A preocupação crescente de empresas brasileiras e instaladas no Brasil com sua função social não pode ser estabelecida sem considerar a importância da população negra.

Nesse contexto, embora seja um tema cujo debate devesse ser diário, 20 de novembro traz ao centro dos debates temas que são esquecidos ao longo do ano. Discutir e assumir racismos é essencial para enfrentá-los. Não há como solucionar um problema cujos contornos são desconhecidos.

Por isso o Dia da Consciência Negra é e continua a ser importante.

Até o fim do mês devo voltar à essa rede para falar de representatividade!                                                                  

Roberto Miller Feliciano

Assessor Jurídico Comercial ; Commercial Legal Advisor

1 a

Paulo, irretocável seu texto parabéns.

Luciana Stukart

Advogado na Kincaid | Mendes Vianna Advogados

2 a

Que texto ❤️

Thiago Miller

Partner at Advocacia Ruy de Mello Miller

2 a

Parabéns Paulo Henrique Reis de Oliveira pelo belíssimo depoimento e esclarecimento sobre o racismo que nos cerca, de forma quase silenciosa.

Perita Bianca C .

Grafoscópia - Papiloscopia - Documentoscopia - Perícia Veicular

2 a

Parabéns, o melhor texto que já li.

FREDERICO DOS SANTOS MESSIAS

Juiz de Direito no TJSP desde o ano de 2000. Especialista em Direito Público. Coordenador do Núcleo de Justiça 4.0 Direito Marítimo do TJSP. Coordenador Regional da Escola Paulista da Magistratura.

2 a

👏👏👏

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