A raiva, minha amiga.
Conhece alguém que poderia contar esta história?
Não sei ao certo por onde começo a contar. Vou contar de onde me lembro de sentir alguma coisa “ao lado” do que achava que devia sentir.
Foi ali no início dos 20s, ali depois de acabar o curso. Fui trabalhar, foi na minha área, tive sorte, diziam-me. Fui para uma empresa, o ambiente era competitivo, eu tinha muitas certezas, tinha o conhecimento fresco da faculdade. Olhando para trás não sabia grande coisa, mas na altura tinha certezas. Se me sentia inseguro arranjava forma de ter mais certezas, tinha que marcar posição, não podia ficar para trás. Não sei se gostava disso ou não, estava focado nos resultados.
Por um tempo isto funcionou bem, trabalhava demais, mas estava no início, fazia-me sentido. A parte chata é que nunca abrandou, nunca cheguei a ter menos carga laboral, pelo contrário fui tendo mais. Se fazia bem o meu trabalho a recompensa era ter mais trabalho. Era muito valorizado, diziam-me. Ansiava pelo momento em que essa valorização passasse para o ordenado, ingénuo.
Os meses foram passando, os anos também. Fui passando por uma coisa estranha, sem me aperceber. Fui dando muita importância ao trabalho, fiquei um pouco obcecado. Fui recebendo cada vez mais coisa para fazer, passei muitos fins-de-semana a trabalhar. Os meus colegas não pareciam trabalhar tanto, via as fotos deles, dos fins-de-semana. Na altura nem liguei, convencia-me que o que eu estava a fazer era mais correcto. Os meus amigos convidavam-me para fazer coisas, eu nunca tinha tempo, até me chateava com eles, será que eles não percebiam que o que eu estava a fazer era mais importante que isso? É pena, perdi momentos únicos.
No meio deste ritmo, sem perceber, tinha deixado de sorrir. Andava muito zangado, achava que estava zangado com os outros. Com colegas que não cumpriam prazos, com chefes que não faziam as coisas tão bem-feitas como deviam… com pessoas que conduziam mal. Passou a ser a minha forma de estar. Quando alguém me dizia para relaxar, ficava ofendido, só podiam estar a gozar, eu tinha tanto para fazer.
Ficava com dores de cabeça, tomava aspirina, depois tomei outros analgésicos, depois tentei daqueles remédios naturais, mas as dores voltavam sempre. Fui ao médico, ele aconselhou-me a ir ao psiquiatra, zanguei-me com ele, achei um disparate, não fui. Continuei com dores de cabeça, fui a um massagista, aliviou-me a tensão das costas, deixou de me doer a cabeça por uns dias, depois voltou.
Acabei por ir a outro médico, também me aconselhou psiquiatria. Contrariado lá fui. No fim da consulta o psiquiatra disse-me que eu estava deprimido, receitou-me uns comprimidos. Eu recomendei-lhe que enfiasse o seu diagnóstico num determinado sítio, exaltei-me um pouco. Mas guardei a prescrição. Umas semanas depois cedi, comecei a tomar a medicação. Ajudou-me muito na altura, confesso. Andei mais calmo, dormia melhor, conseguia concentrar-me no trabalho.
Mas com o passar do tempo comecei a perceber que alguma coisa não estava muito bem comigo. A primeira reacção foi culpar a medicação, hoje já não acho que fosse disso, acho que tinha mais a ver com ter percebido que podia estar a precisar de ajuda e não queria aceitar.
Acabei por recorrer à psicologia, fui acompanhado por uma pessoa que me tinha sido recomendada por uma amiga. No início gostei, apesar de me parecer estranho, desabafei muito, senti-me aliviado. Depois foi-me sendo devolvido, aquilo que eu estava a dizer… zanguei-me muitas vezes, rejeitei. Faltei a umas marcações…, mas acabei por voltar. Sem entrar em demasiado pormenor, o que posso dizer é que a certa altura deixei de andar zangado, passei a andar triste, desmotivei muito, fiquei sem vontade de fazer nada, depois fui-me levantando e hoje sinto-me tranquilo com quem sou, o que faço e o que quero.
O que é que eu estava a fazer? Compreendo isto agora, não me foi dito, nem foi um diagnóstico que me convenceu, foi a falar sobre as minhas atitudes, as minhas emoções, os meus porquês que percebi isto: a zanga, a raiva era a minha forma de estar por defeito, se me sentia inseguro, raiva, se me sentia triste, raiva, se me sentia desvalorizado, raiva, se me questionava demais sobre o que estava a fazer, raiva, etc., etc.
Quando pus a raiva de parte percebi que estava desiludido com muitas coisas, estava triste com tantas outras, estava desiludido comigo mesmo por me ter deixado levar por um comportamento que me fazia mal. Esse foi o início da minha recuperação, perceber onde estava. Sinceramente não me interessa se chamam a isso depressão, negação, ou qualquer outra coisa. É onde eu estava e saí de lá.
O caminho de saída teve altos e baixos, houve momentos difíceis. Felizmente consegui manter-me sem desistir, apesar de ter tido vontade muitas vezes.
Hoje tenho uma forma muito mais equilibrada de estar com o trabalho, já fui aumentado, estou a pensar se fico lá ou se vou para outro sítio, já não me sinto na obrigação de agradar, estou bem comigo mesmo. Voltei a ter tempo para amigos e família, na verdade nunca deixei de ter, mas convenci-me que não era possível.
Esta história, apesar de não ter dono, procura representar um dos inúmeros exemplos dos casos que chegam ao consultório e de como cada história tem o seu tempo e os seus desafios próprios. Se tem uma história, ou conhece alguém com uma história, que não parece fazer muito sentido (tal como nesta história da raiva), saiba que há ajuda, é possível recuperar.