RELIGIÃO - DEUS ESTÁ EM TODO LUGAR
Nasci numa família de descendentes de imigrantes italianos. Nem precisa dizer que nasci católico.
Quando meu avô Santo Caleffi foi se despedir do seu pai Teodoro Caleffi, lá em Minas Gerais, na fazenda em que eles moravam no município de Monte Santo, Teodoro Caleffi, já bem de idade, Santo junto com sua esposa Maria Uzae Caleffi, estava saindo de perto de seu pai e iria continuar sua vida de migrante, ia agora, começar junto com sua família uma nova vida numa fazenda no município de Guaranésia, ainda em Minas Gerais, Guaranésia que no passado se chamava Santa Bárbara, minha avó Maria Uzae, não esqueço, ela era devota de Santa Bárbara, rezava sempre para a santa, falava sempre da Santa Bárbara, meu avô Santo, depois continuou sua vida de migrante, indo para uma nova fronteira que estava abrindo, um sertão a ser desbravado, veio para o estado do Paraná, ai foi despedir de Teodoro Caleffi seu pai, abraçou-o, Teodoro olhou para seu filho Santo e disse-lhe, olhando nos olhos: "Vai meu filho, Deus está em todo lugar."
Meu tio Valdomiro Caleffi, dizia que meus bisavós e avós eram muito religiosos, mas não eram muito fervorosos, em relação a participação na igreja. Um dos motivos era que, naquele tempo, a igreja ficava muito longe do povo, que vivia no meio rural, além do que o padre quase não ia visitá-los lá na roça. A cidade ficava muito longe e os meios de transportes eram muito raros e difícil, quase não existiam.
A igreja matriz ficava na cidade, e eram raras as capelas rurais naquele tempo, era difícil ter uma capela por perto, quando havia era distante do sítio, onde o padre raramente aparecia. Mas isso não significava que não praticavam a sua religiosidade natural, assim como seus antepassados faziam, não que não tinham fé, muito pelo contrario, eram extremamente religiosos e acreditavam profundamente. Havia uma intuição de Deus.
O jeito de praticar sua religiosidade e sua profunda fé, de realizar suas orações, que era diferente, era por conta própria, familiar, as vezes comunitária, quase sem a presença da igreja oficial, do padre.
Faziam novenas, rezavam o terços, na família e na comunidade, benziam-se, havia benzedores e benzedoras entre eles, se alimentavam espiritualmente do jeito deles, como podiam. Raramente iam a missa, não porque não queriam, mas sim porque era muito difícil, e muito raro, longe para eles. Respeitavam muito, do jeito deles, os dias santos. Neste dia não trabalhavam de jeito nenhum, as vezes tinham rezas e festas em homenagem aos santos. Na semana santa então, o respeito era total, silêncio.
Eles vivam e praticavam a religião popular, feita pelo próprio povo, seguindo a tradição que vinha de longe, passando de pai para filho, de geração a geração, quase sem a igreja. Praticavam a sua fé. Era muito bonito.
Lembro que meu avô Santo Caleffi era benzedor. Eu ficava pensando: Como pode? Um homem sério, de poucas conversas, que quase não ia a igreja, não ficava muito perto dos padres não, de pouca instrução, mas era sábio, era livre religiosamente, podia ser benzedor?! Como explicar isso? Sei que ele benzia todo mundo que precisava dele, que o procurava, gratuitamente, lá no sítio de Marialva. Havia muita procura, muitos o procurava, sua fama correu toda a região, era imensa, vinha gente de longe. Ele benzia animais e pessoas. Era seu dom. Era gratuidade pura, amor puro, generosidade imensa. Deve ter seguido a orientação de seu pai Teodoro de que Deus está em todo lugar, em tudo. Tenho muito orgulho dele.
Até que um dia, apareceu ali no sítio de meu avô Santo Caleffi, um grupo de missionários xaverianos. Os missionários xaverianos estavam fazendo uma semana de Missão, pregações, rezas e conversões, na Capela Santa Luzia, que ficava perto da nossa casa, uns dois quilômetros de distância de nosso sítio, do sítio do meu avô Santo. Alguém contou para os missionários que meu avô Santo era benzedor. Não deu outra, os missionários deixaram um pouco seus afazeres na capela Santa Luzia e foram até ao nosso sítio, conversar com meu avô Santo. Chegaram com suas batinas, chapéus e tudo, meu avô Santo, já estava bem de idade, estava trabalhando na lavoura, minha avó Maria mandou um neto ir chamá-lo, os recebeu com respeito, mas desconfiado. Um missionário falou para meu avô que era pecado benzer as pessoas sem a autorização da igreja católica, que só os padres tinham autorização para benzer. Meu avô Santo perguntou a onde estava escrito aquilo que ele estava falando. O missionário tirou uma bíblia de uma bolsa, abriu-a, leu um trecho, para meu avô, que estava em silêncio, sereno, só ouvindo, que segundo o missionário, estava escrito que era pecado benzer sem a autorização da igreja. Meu avô Santo, olhou para o missionário, pensou um pouco, deu um tempo, silêncio que faz pensar e disse: "Bom, se é como o senhor está me dizendo, que está escrito ai, então eu paro, eu paro de benzer."
A partir daquele dia meu avô Santo Caleffi parou de benzer, de ser benzedor. Não reclamou. Manteve silêncio. Mas continuou com sua fé natural, verdadeira, genuína. Com sua intuição de Deus.
Os Missionários Xaverianos foram embora, provavelmente para outra missão, nunca mais apareceram lá no sítio, no nosso sítio, meu avô Santo Caleffi ficou morando lá naquele sítio até morrer. No meio do povo, com sua fé, com sua religiosidade, com seu silêncio.
Minha família ajudou a construir a Capela Santa Luzia, onde frequentávamos e tinha rezas e festas. Todos receberam os sacramentos da igreja católica. Havia muita religiosidade, respeito e fé. Mas era uma fé livre, sem amaras, popular, sincera.
Lembro que lá no nosso sítio uma vez até foi rezada uma missa. O Cônego Vicente Magalhães Teixeira rezou uma missa lá. Ele era o vigário da igreja matriz Nossa Senhora de Fátima, que ficava na cidade de Marialva. Ele veio numa camionete muito simples, acompanhado por uma outra pessoa, que dirigia a camionete, lembro, que assim que a camionete do padre Vicente, apareceu na cabeçeira do nosso sítio, no iníco do nosso carreador, lá no espigão, estávamos todos lá para recebê-lo, nós meninos, subimos na carroceria da camionete e viemos, felizes, se divertindo muito, descendo o carreador ate as nossas casas, que ficava no fundo do sítio, perto do rio Marialva, onde iria ser realizada a missa, toda a vizinhança estava lá reunida no nosso sítio, para participar da missa, foi bonito ter vivido este momento único. O Cônego Vicente vinha vestido de uma batina surrada e com um grande chapéu de couro. Era um homem grande, já de idade, afetivo, carinhoso conosco, cativou-nos. Chamava a atenção. Era muito respeitado. Eu era menino, guardei esta imagem na minha memória para sempre. Lampejo de eternidade. Parecia ser uma pessoa muito humilde e bondosa.
Quando no ano de 1974, minha família mudou-se para a cidade de Maringá, começamos a participar das missas nos finais de semana. Depois quando já era jovem participei dos grupos de jovens da igreja católica. Guardei comigo essa fé sincera de meus avós e de meus pais.
No ano de 1980 entrei para o seminário, fui estudar em Curitiba na Universidade Católica do Paraná. No ano de 1985 sai do seminário.
A religião sempre esteve presente em minha vida. Mas segui o exemplo de meus antepassados, uma religião simples, livre, sincera, pura, sem amarras, sem controle, uma fé madura, verdadeira.
Hoje há tantas igrejas e religiões, seguindo a lógica do mercado, a busca do lucro, os interesses particulares, individuais e políticos, cheias de estratégias de marketing, se esvaziando de seu sentido profundo, que vem de longe, se mercantilizando, disputando mercado, como uma empresa qualquer, banalizando-se, como uma mercadoria, perdendo o sentido de existir, se desumanizando, o pior de tudo usando da boa fé do povo para atrelá-lo, alienando-o. O pior dos pecados é o pecado contra o espírito, contra o boa fé das pessoas. Ai vem a pergunta: o que aconteceu?!
Será que não seria melhor voltar àquela religião primitiva, comunitária, até certo ponto ingênua, mas amorosa, sincera, de uma fé verdadeira, de um amor verdadeiro, solidária, livre, sem atrelamento, sem amaras, que fazia sentido na vida das pessoas, ajudava a aliviar a carga, o fardo, a viver humanamente, dava sentido a vida das pessoa e da comunidade. Ou será que ela existe, mas está longe de muitas igrejas, está longe de nós?!
Temos muito que aprender com os nossos antepassados. Jogar luz sobre o presente.
Faz pensar.