Remoção de conteúdo online (Parte I): O Marco Civil da Internet e a liberdade de expressão.
Foto: Matthew Henry

Remoção de conteúdo online (Parte I): O Marco Civil da Internet e a liberdade de expressão.

A presença da tecnologia é cada vez mais perceptível na vida dos brasileiros, principalmente no que diz respeito ao uso da Internet, que possibilita a troca de mensagens, o compartilhamento de vídeos e imagens, a interação por meio de redes sociais etc. Atualmente, uma das principais discussões está relacionada à responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet (as redes sociais, por exemplo) por conteúdo produzido por terceiros. O tema é tratado pelo Artigo 19 da Lei 12.965/14 – o Marco Civil da Internet – e adota um regime que tem por intuito preservar a liberdade de expressão e evitar a censura na rede.

           Primeiramente, cabe destacar que Ronaldo Lemos (2005, p.25) ensina que, em 1995, os principais formatos de acesso e troca de informações na internet (FTP, SMTP e HTML) eram abertos, ou seja, a forma como a arquitetura foi planejada garantia que haveria dificuldade de exercer algum tipo de controle, logo, não era passível de regulação arquitetônica. Todavia, a arquitetura inicial da Internet está mudando com a chegada de tecnologias de identificação, autenticação, certificação, rastreamento etc.

           Lawrence Lessig (2006, p.32) alerta para o erro de confundir como as coisas são e como as coisas devem ser, avaliando que, no futuro, o ciberespaço será um ambiente extremamente passível de regulamentação. Lessig (2006, p.4) defende que a liberdade no ciberespaço não será uma consequência da ausência do Estado. Neste contexto, o ordenamento jurídico brasileiro conta com o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que entrou em vigor no dia 23 de abril de 2014.

           Daniela Cicarelli, em setembro de 2006, estava no sul da Espanha com seu namorado e, nesta ocasião, foi gravado um vídeo com conteúdo íntimo destes na praia, posteriormente, tal vídeo foi divulgado em diversos portais. A modelo propôs uma ação judicial contra o Google, alegando uma violação à sua privacidade e à sua imagem, seu pedido foi negado em 1ª instância e julgado procedente em 2ª instância.

           Contudo, a decisão se mostrou pouco eficiente: um dos pedidos tratava da retirada do vídeo de circulação, porém, toda vez que o vídeo era retirado, voltava a ser inserido na plataforma. Em 2º grau, Daniela Cicarelli pede que o próprio Youtube seja, então, retirado do ar, o que de fato ocorreu. O bloqueio do Youtube gerou grande discussão na sociedade, pois a plataforma possuía diversos conteúdos com interesse público (liberdade de expressão, acesso à informação etc.) e foi bloqueado devido à interesses privados. Posteriormente, o desembargador que proferiu a decisão voltou atrás e o Youtube foi novamente liberado.

           Eduardo Azeredo, então senador, iria propor um Projeto de Lei para impor uma série de sanções penais para condutas na Internet. Indiretamente, houve o surgimento da ideia de criação de um Marco Civil da Internet, visando impedir a criminalização de condutas na rede. Sergio Branco, Carlos Affonso e Ronaldo Lemos se reuniram com representantes do Ministério da Justiça para discutir possíveis formas de participação popular.

           O processo de elaboração e construção da lei utilizou-se da própria internet para ampliar as bases do debate e mobilizar a sociedade, uma vez que, antes de ser enviado ao Congresso Nacional e durante a sua tramitação, o texto inicial passou por uma fase de consulta pública na internet. Dentre os importantes aspectos tratados pelo Marco Civil da Internet (por vezes, denominado MCI), destaca-se o tratamento conferido à liberdade de expressão.

           A liberdade de expressão está positivada na Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, incisos IV (liberdade de pensamento), IX (liberdade de expressão propriamente dita) e XIV (acesso à informação), e no artigo 220 e seu parágrafo 1º (liberdade de informação). A liberdade de expressão é fundamento e princípio para a disciplina do uso da internet no Brasil (arts. 2º e 3º), é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet (art. 8º) e, por fim, orienta o regime de responsabilidade civil tratado na Lei (art. 19, caput e §2º). Entretanto, a liberdade na Internet não deve ser entendida como absoluta, isto é, os usuários, os provedores de aplicações e os produtores de conteúdo devem ser responsabilizados quando aturem ameaçando ou lesando direitos da personalidade.

É interessante notar que o debate sobre a liberdade de expressão e a proteção da ordem pública também foram ampliados e, hoje, abrangem a Internet. O equilíbrio entre o Art. 19 (liberdade de expressão) e o Artigo 27 (proteção da ordem pública), ambos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, são frequentemente discutidos no âmbito da remoção e controle de conteúdo, gerando debates sobre a censura na Internet.

           No que diz respeito à responsabilidade civil no Marco Civil da Internet, Teffé e Souza (2019, p.10) destacam que, como o legislador estabeleceu que o Poder Judiciário será o responsável legítimo para definir o que deve necessariamente ser removido da rede, determinou-se que a responsabilidade do provedor não advém, em regra, do descumprimento de uma notificação privada. Desse modo, minimiza-se o risco, apontado por Ronaldo Lemos (2005, p.45), de que o provedor, temendo o surgimento da responsabilização, poderia cumprir todo e qualquer tipo de notificação privada recebida, retirando o conteúdo produzido pelo usuário da rede, sem qualquer escrutínio mais cuidadoso.

           A responsabilidade não deriva, portanto, do descumprimento de uma notificação privada. Entretanto, cabe destacar a existência de duas exceções à regra do Art. 19: a primeira delas, prevista no §2º do Art. 19, para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos; a segunda, prevista no Art. 21, para quando o provedor, após notificação extrajudicial, não realizar a remoção de conteúdo que divulga imagens, vídeos etc., sem autorização de seus participantes, contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, englobando, dessa forma, o comportamento denominado revenge porn.

           No próximo texto da trilogia de remoção de conteúdo online faremos uma análise do Recurso Extraordinário nº 1.037.296, que discute a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet.


Referências

LEMOS, Ronaldo. Direito, tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyberspace: version 2.0. New York: Basic Books, 2006.

TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; SOUZA, Carlos Affonso. Responsabilidade civil de provedores na rede: análise da aplicação do Marco Civil da Internet pelo Superior Tribunal de Justiça. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 1, n. 1, p. 01-28, nov.-fev./2019.


Adorei a ideia! É um tema muito relevante e não é difundido como necessário.

Bernardo Araujo

International Data Privacy Counsel Latam | PhD Candidate in Public Law | Privacy | Data Protection | Information Security | Technology Transactions

4 a
Marco Túlio Loureiro

Corporate and M&A associate at Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados

4 a

Ótima proposta!

Ana Continentino

Open Finance | Pix | Drex | Recebíveis | Mercado Pago

4 a

Excelente texto!

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