Setor público ou privado? Na saúde, o melhor é trocar o “ou” por “+”

Setor público ou privado? Na saúde, o melhor é trocar o “ou” por “+”

Com todos os desafios que trouxe, a pandemia da Covid-19 escancarou inúmeras fragilidades da saúde no Brasil. Mas também lançou uma lente de aumento sobre os caminhos que podem ser seguidos para atacá-las. Um deles é a parceria entre os setores público e privado, que tem se mostrado fundamental no enfrentamento da crise.

É verdade que a parceria já existia antes da chegada do novo coronavírus. Mas não nos mesmos patamares. Além disso, não era pensada como uma peça que pode ajudar a resolver o quebra-cabeça de um modelo de atendimento à saúde muito bom em sua concepção, mas que na prática não tem funcionado da melhor maneira.

Atualmente, aproximadamente 78% dos brasileiros têm acesso à saúde exclusivamente pelo SUS. O setor privado fica responsável pelo restante. No entanto, o orçamento é praticamente meio a meio. Ou seja, temos metade do volume de recursos de saúde para os 78% dos brasileiros que precisam do SUS. É um imenso contingente de pessoas que poderia ser mais bem atendido se as quatro esferas de cuidado contempladas em nosso sistema de saúde funcionassem como o previsto. A atenção primária, que é responsabilidade maior do município, envolve os serviços voltados à medicina de família, à prevenção de doenças, aos cuidados básicos e controle das doenças crônicas. A secundária, a cargo dos estados, responde pelo atendimento de média complexidade, geralmente em âmbito hospitalar. A terciária, de responsabilidade do governo federal, contempla hospitais e equipes para a alta complexidade. E a quaternária, também inserida no âmbito federal, abrange transplantes, genômica e medicina personalizada.

Esse modelo faz todo o sentido. Mas, infelizmente, temos um fosso entre esse desenho ideal e o que observamos na realidade. O fato é que, muitas vezes, a coordenação do cuidado e o referenciamento da atenção primária, secundária e terciária acabam não acontecendo. Quando o médico de família ou a unidade básica de saúde não funciona de maneira eficaz, os pacientes acabam batendo à porta dos prontos-socorros e hospitais de atenção secundária ou terciária.

O controle e promoção da saúde e o manejo das doenças crônicas no primeiro patamar de cuidados mitiga o número daqueles que demandarão os serviços das estruturas de assistência secundária e terciária. Quando isso não acontece, gera o efeito oposto. Estima-se que mais de 30% das internações do SUS poderiam ser evitadas com a atenção primária à saúde exercendo seu papel, inclusive promovendo mudanças de hábito como deixar de fumar, combater obesidade e sedentarismo.

Outro problema é que as unidades de atenção terciária estão mais concentradas no Sul e Sudeste, o que se reflete também na distribuição dos profissionais médicos. Em muitas localidades, sobretudo no Norte e Nordeste, simplesmente não há especialistas ou infraestrutura adequada. A pandemia expôs isso de maneira dramática em várias regiões, com uma aguda carência de médicos e outros profissionais especializados nas UTIs para lidar com os complexos quadros de Covid. Essa falta de expertise certamente resulta em prejuízo ao atendimento e aumento da mortalidade.

Ao lado dessa geografia perversa na distribuição das estruturas terciárias, também temos situações insólitas de pequenos municípios com estruturas sofisticadas – uma maternidade de alto risco, por exemplo –, sem que haja uma demanda que as justifique. Por quê? Possivelmente por interesses que não são ligados à melhoria da saúde da população: políticos, financeiros ou sabe-se lá quais.

O fato é que as peças da engrenagem que podem movimentar o motor da saúde em benefício da população e do próprio sistema precisam de ajustes urgentes. E eles podem ser feitos de maneira mais ágil, inteligente e eficiente, inclusive por meio de parcerias público-privadas.

A nossa experiência

Tome-se como exemplo as parcerias do Einstein com a Prefeitura de São Paulo. Respondemos pela gestão de 26 equipamentos de atenção primária, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e dois hospitais públicos – o Vila Santa Catarina, voltado à alta complexidade; e o Dr. Moysés Deutsch, no M’Boi Mirim, que foi o primeiro hospital da rede pública de São Paulo a receber a certificação ONA 2 de qualidade. O que levamos a essas unidades? Levamos a expertise que permite ter padrões de qualidade semelhantes aos que temos no Einstein, no atendimento de pacientes privados. Levamos a capacidade de gestão de pessoas e processos baseada em resultados e experiências pregressas, com colocação de metas e cobrança de seu cumprimento. Levamos a agilidade na tomada de decisões e a busca constante por eficiência – uma equação que significa assegurar qualidade na assistência com custos adequados e sem desperdícios. 

Também temos várias iniciativas no âmbito federal, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS), como a consultoria de gestão para mais de uma centena de hospitais das Santas Casas que permitiram otimizar processos e reduzir desperdícios; o projeto colaborativo Melhorando a Segurança do Paciente em Larga Escala no Brasil, que abrange 116 hospitais do SUS e que, nos 24 orientados pelo Einstein, já superou a meta de reduzir em 50% as três principais infecções hospitalares até o final de 2020; o projeto de Big Data, em parceria com as Universidades Federais de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo, que tem por objetivo entender a saúde perinatal em Minas e Bahia, extraindo inteligência da base de dados para melhor embasar o planejamento e o direcionamento dos recursos públicos; e o serviço de Tele-UTI, com assessoria e visitas horizontais virtuais de nossos especialistas a UTIs da rede SUS.

São mais de 30 projetos Proadi-SUS, mas esses citados bastam para mostrar que o setor privado pode agregar valor ao sistema público tanto no campo assistencial como nos processos de gestão, pesquisa e inovação, sempre com os olhos voltados para a coordenação do cuidado – atenção primária, secundária, terciária e quaternária –, colocando o paciente certo na porta certa.

O que tem acontecido no enfrentamento da pandemia pelo Sars-CoV-2 jogou ainda mais luzes sobre os diferenciais que o setor privado pode imprimir na saúde pública, inclusive com a participação de empresas de outros setores que não a saúde. Os exemplos são muitos, mas vou me limitar a citar alguns em que o Einstein esteve à frente em São Paulo. Transformamos o Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch - M’Boi Mirim em referência para o atendimento de Covid-19. Com 514 leitos (233 de UTI) – entre eles 100 leitos do anexo construído com apoio da Ambev e Gerdau e contribuições do Banco Safra e da Mapfre, entre tantas outras, que ficará como legado no pós-pandemia –, o M’Boi registra indicadores de desfecho bem superiores aos da média nacional. O Hospital de Campanha do Pacaembu, que contou com apoio da Mapfre para a sua UTI, ficou pronto em 10 dias e cumpriu de maneira excelente seu papel de atendimento de casos menos graves para desafogar outras unidades municipais. Através do Proadi-SUS, ampliamos o serviço de Tele-UTI para dar suporte a UTIS de hospitais públicos que contam apenas com profissionais generalistas para atender os pacientes críticos de Covid... Impossível saber quantas vidas ajudamos a salvar com essas e outras iniciativas.

A outra ‘guerra’

Assim como o Einstein, outras instituições do setor privado, em vários estados brasileiros, entraram em campo ao lado do público para ajudar a vencer a ‘guerra’ contra o novo coronavírus. Mas, para além da pandemia, temos outra ‘guerra’ que precisa ser enfrentada: a de levar assistência de saúde de qualidade a todos os brasileiros, de maneira sustentável, fazendo com que aquele modelo de esferas de atenção primária, secundária, terciária e quaternária funcione a partir de uma competente coordenação dos cuidados e gestão dos recursos. E, também nessa ‘guerra’, as parcerias público-privadas podem marcar pontos em favor da vitória. Elas permitem, inclusive, que o setor público, com toda a transparência, contrate o privado naquilo que este faz de melhor e entregar o que o sistema público tem dificuldade ou até impossibilidade de fazer, seja na gestão, na assistência, no uso de tecnologias, na inovação, na capacitação de profissionais e no mapeamento epidemiológico de doenças, entre outros pontos.

O governo teria a vantagem de levar saúde à população de forma mais abrangente, eficaz e com menor custo, melhorando a eficiência, cortando desperdícios, tornando mais ágil o que for impossível na máquina estatal e, em algumas situações, contratando a ociosidade dos provedores privados que podem ofertar serviços a custos mais baixos. Os cidadãos ganhariam com acesso a bons serviços e cuidados coordenados que promovem a saúde, previnem doenças e tratam delas adequadamente sempre que é preciso. O setor privado, por sua vez, teria como escalar mais seus serviços e, no caso do Einstein, intensificar seu papel como instituição filantrópica que tem como propósito entregar vidas saudáveis a um número cada vez maior de brasileiros.

Diz um ditado que o velejador pessimista reclama do vento forte, o otimista espera que ele mude logo de direção, enquanto o sábio ajusta as velas para imprimir velocidade à embarcação. Juntos, setores público e privado souberam ser sábios para enfrentar os fortes ventos da Covid-19. E creio que essa parceria é a vela ajustada para seguirmos navegando cada vez melhor pelos mares da saúde de nosso país.

Rebeca Cocki

Assistente de atendimento Hospital Israelita Albert Einstein

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👏🏻👏🏻

Tania Andref

CHRO | Human Resources VP | HR Senior Director | PX Community Member I Mentor at IVG I Psychologist

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É isso mesmo, excelente Sidney! Precisa-se mais sinergia e protagonismo na Saúde. É preciso ajudar buscando maior eficiência dos recursos, novo desenho organizacional na Saúde pública, gestores mais preparados e melhores resultados. A população precisa ter acesso à saúde de melhor qualidade e em todos as cidades.

Natália de Almeida Torres

Farmacêutica | Farmácia Clínica | Terapia Intensiva | Cardiologia

4 a

Certamente as parcerias público-privadas reúnem a excelência e a organização que as redes e serviços de saúde privados podem oferecer, com os princípios do SUS de equidade e integralidade. Assim, o funcionamento do sistema público de saúde seria otimizado e a cobertura de atendimento da população aumentaria em todo o Brasil. Além disso, a segurança do paciente poderia ser monitorada com maior eficácia, o que também é um ponto muito importante!

Karla Correa Pires

GESTÃO EM SAÚDE - ADMINISTRATIVA | OPERAÇÕES | RELACIONAMENTO | OUVIDORIA | CONTRATOS | AMBULATÓRIO | SADT

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Excelente!

Roberto Olivares

Commercial Director na BIOTECNO MEDICAL DEVICES

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Parabéns pelo clareza e lucidez que trata desse tema.

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