SUSTENTABILIDADE ou COLAPSO?                                             
-Uma visão de SISTEMAS COMPLEXOS joga luz sobre presente e futuro da saúde

SUSTENTABILIDADE ou COLAPSO? -Uma visão de SISTEMAS COMPLEXOS joga luz sobre presente e futuro da saúde

O BIG BUSINESS da saúde age como se não houvesse amanhã- grandes negócios sendo fechados e investimentos crescentes.

É o que se espera que faça, mas nesse setor não se deve comprar nada pelo "valor de face". Entenda o que está por trás.

Entenda como a ciência da complexidade define colapso e sustentabilidade de um sistema social como o da saúde, e tire suas próprias conclusões sobre o futuro.

PARTE I- APRESENTANDO AS BIZARRICES DO SISTEMA

a- Quando comprou a AMIL em 2012, a UNITED HEALTH GROUP (UHG)- maior corporação global de saúde- prometia revolucionar o panorama da saúde suplementar no Brasil.

Seu braço de tecnologia- (uma empresa chamada OPTUM) - instalou-se aqui junto com a UHG, com a missão de aportar o ferramental de inteligência de dados necessário para a revolução. Acharam que bastava tecnologia, mas descobriram logo que não. Quebraram a cara, e quebraram feio.

-A OPTUM caiu fora do Brasil em 2019 sem dar maiores explicações. Segundo dizem, foi "por causa da desconfiança de operadoras e hospitais". Mais adiante, a própria UHG também jogou a toalha. Depois de anos mergulhada no vermelho mais profundo (durante os quais acumulou bilhões em dívidas) colocou a AMIL à venda.

Na época, escrevi AQUI :

"A UHG aprendeu que no sistema de saúde brasileiro, fazer o que deve ser feito é mau negócio".

b- Em dezembro de ̳2̳0̳2̳3̳, o mercado fervilhava com boatos de que a AMIL estava na iminência de ser vendida, e sabia-se que os pretendentes eram "gente grande" com bala na agulha", incluindo fundos poderosos .Voltei a escrever AQUI :

"A saúde suplementar é estruturalmente insustentável e os pretendentes à compra da AMIL são espertos demais para não saberem disso".

c- Curiosamente, seis meses antes- em Junho de ̳2̳0̳2̳3̳- Jose Seripieri Filho, executivo experiente e bem sucedido no setor- tinha escrito ESTE ARTIGO em que explicava a disfuncionalidade da saúde suplementar. Recomendo sua leitura. Começa assim:

"Escrevi este artigo para compartilhar com a sociedade – das empresas aos reguladores, passando pelos formuladores de políticas públicas – um diagnóstico e algumas recomendações, mas o resumo é o seguinte: a situação atual é insustentável...[..].

Tomo emprestado essas mesmas palavras dele para descrever meu objetivo com este ensaio.

-José Seripieri explicou seu diagnóstico:

" [..]O setor de saúde tem quatro pilares: (1) os planos de saúde; (2) os prestadores (3) o consumidor, pessoa física ou jurídica; (4) a indústria farmacêutica. Apenas as operadoras são reguladas. Uma mesa de 4 pés não se sustenta em apenas um".

Não sei se ele tinha lido um livro meu de 2015 no qual eu concluíra exatamente o mesmo. No livro, tentei fugir dos achismos e platitudes infantilizantes com que os chamados formadores de opinião nos torturam, e usei modelos da ciência da complexidade para fundamentar minhas conclusões. Achei curioso (e gostei) que uma pessoa -que, segundo suas palavras, "começou como corretor de seguros e construiu e vendeu duas empresas"- verbalizasse o mesmo que eu.

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Mas-surpresa!-apesar do que escrevera, José Seripieri comprou a Amil no finalzinho de 2023, pagando bilhões do próprio bolso incluindo a grana para cobrir a dívida que a UHG deixara.

Se você ler este ensaio até o final, entenderá melhor essa e outras da saúde suplementar. Não são bizarrices isoladas, são sinais precoces de colapso à frente. [tem que ler até o final para entender, não vou dar spoiler!].

d- Recentemente (maio de 2024) o presidente da câmara de deputados, Arthur Lira, se declarou meio que chocado com o êxodo de empresas de saúde estrangeiras do Brasil, mas ninguém precisa ficar chocado- o que acontece no setor é previsível, explicável e inteligível.

Vai lendo.

e- Durante este ano de 2024 -com a AMIL já "sob nova direção"- ela e as demais operadoras da saúde suplementar "deram seu jeito" e saíram do vermelho, como eu também previ que iriam fazer (querem o link?). Acertei de novo, sorry.

Todos os que conhecem o setor um pouquinho, sabem o que significa esse "jeito" que as operadoras deram, e só os (muito) inocentes acreditam que a coisa se estabilizou e "agora vai". Não vai. O diagnóstico que José Seripieri fizera continua valendo.

f- Mas, parece que o "jeito" passou do ponto, e autoridades entraram em cena (foi aí que o Arthur Lira entrou). Eu também previ que entrariam AQUI e AQUI

-Não pensem que estou "me achando". É que num sistema social complexo em processo de colapso (como eu e o José Seripieri sabemos que a saúde suplementar está), o comportamento dos atores individuais é altamente previsível, como veremos.

Algum tipo de medida vai ser anunciado (possivelmente ainda em 2024) para tentar botar alguma ordem na casa.

Afirmo que se os rumores que circulam se confirmarem, a marcha rumo ao colapso vai prosseguir.

Este ensaio é sobre isso.

Quero contribuir, e vou me basear em fundamentos científicos rigorosos, elegantes e fáceis de entender, para sugerir a saída mais sustentável. Ela é perfeitamente possível.

g-Como fiz no livro de 2015, baseei-me nas formulações do antropólogo Joseph Tainter, mas fui mais fundo nos seus conceitos. Para quem se interessar, este ensaio pode servir como texto introdutório ao tema "aplicações práticas da ciência da complexidade em saúde". Um tema que eu gostaria que fosse mais estudado.

Tainter escreveu um livro excepcional baseado em pesquisas minuciosas - "O COLAPSO DAS SOCIEDADES COMPLEXAS". O que chama de "sociedade" vale para qualquer instituição social. Vale para medicina e saúde. No livro, ele explica e prevê sustentabilidade e colapso em sistemas sociais. Todo gestor deveria ler. Você encontra um bom resumo AQUI.

Nassim Taleb (que não é de elogiar ninguém que não esteja morto há muitos séculos), diz em seu livro "ANTIFRAGIL", que as ideias de Tainter são "brilhantes e convincentes".

 

ILUSTRÍSSIMAS AUTORIDADES, FORMULADORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMADORES DE OPINIÃO DA SAÚDE

Sem arrogância, sugiro que meditem sobre o que se segue, aproveitando para aprender um pouco sobre um tema que os senhores sequer sabem que existe, mas que talvez os ajudem a parar de desperdiçar nosso precioso tempo.

Clemente Nobrega

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PS: a partir daqui, este texto se alonga um pouco até chegar às conclusões que prometi. Isso é necessário para manter sua consistência técnica. Há uma versão completa em PDF que você pode baixar deste link seguro se preferir. Compartilhe à vontade.

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PARTE II- CONSTRUINDO AS RESPOSTAS IMPORTANTES

1- A SAÚDE É UM SISTEMA SOCIAL COMPLEXO- O QUE SIGNIFICA ISSO?

-Tainter definiu "COMPLEXIDADE SOCIAL" por meio de duas características que observou em dezenas de sociedades.

Característica I- O sistema tem que ser constituído por MUITAS PARTES e MUITOS TIPOS DIFERENTES de partes. Não basta ser grande, tem que ser grande e segmentado numa grande variedade de tipos.

Muitas partes formando muitos segmentos que fazem o sistema funcionar.

  • Os segmentos são especializações de ocupações, profissões, papeis sociais, normas, regulamentos, tecnologias, hierarquia, infraestruturas físicas etc.- todas as PARTES que têm de "encaixar" para que o sistema seja funcional.
  • ["SISTEMA" pode ser um país, um setor da economia como cuidado à saúde, uma grande corporação, o aparato militar de defesa, o conjunto de atividade de pesquisa e desenvolvimento etc.]
  • Ser funcional significa ser "capaz de funcionar direito" a um custo pagável.
  • Uma sociedade pouco complexa tem poucas PARTES- os bandos nômades pré agricultura não tinham mais de duas ou três - já uma sociedade moderna tem vários milhares.

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Claro que estou pensando nas PARTES de um sistema de saúde: estruturas de cuidado de vários tipos, muitos tipos de profissionais, muitas especialidades, subespecialidades, pagadores, usuários, perfis epidemiológicos, procedimentos diagnósticos, protocolos assistenciais, regulações de vários níveis, medicamentos, próteses, tecnologias, investidores etc.

Vejamos a segunda característica:

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Característica II- Além de muitas partes de tipos diferentes, um sistema social complexo tem que ter mecanismos de organização e controle que façam com que as partes se "encaixem" e se comportem como SISTEMA-ou seja, tem que ter um mecanismo cuja missão seja garantir a INTEGRAÇÃO das PARTES.

Regulação, coordenação e controle são indispensáveis para garantir a funcionalidade de um sistema social complexo. É como se o sistema maior fosse composto por dois subsistemas. Daqui para a frente vamos chamá-los de SUBSISTEMAS 1 e 2.

Toda vez que você lidar com um sistema que tenha as caraterísticas dos subsistemas1e2, está diante de um sistema social complexo. Tainter descobriu o que os faz funcionar sustentavelmente ou entrar em colapso.

2-INTERESSANTE, IMPORTANTE E ÚTIL PARA EQUACIONARMOS A SAÚDE

a- Pela lógica de Tainter, a crise financeira global de 2008 não foi causada pela complexidade, mas pela FALTA de complexidade. Seu argumento é este:

Em 2008 havia uma multiplicidade de PARTES envolvidas na escalada da crise (subsistema 1): fundos, bancos, instituições financeiras diversas, países diversos, vários tipos de investidores e tomadores de crédito, legislações diferente, normas de controle diferentes etc.. Mas o subsistema 2 era inexistente- não havia uma organização (governança global) que fizesse essas partes funcionarem coordenadamente.

Complexidade produtiva depende de DIFERENCIAÇÃO e ESPECIALIZAÇÃO de PARTES que têm de ser INTEGRADAS. Sem INTEGRAÇÃO, a complexidade fica IMPRODUTIVA. Gera mais CUSTOS que BENEFÍCIOS!

Sistemas complexos produtivos têm de ter subsistemas 1 e 2. Sem o subsistema 2 a coisa vira complicação improdutiva

Repita mil vezes: "SEM INTEGRAÇÃO, A COMPLEXIDADE GERA MAIS CUSTOS QUE BENEFÍCIOS". Repetiu? Repita de novo, e continue lendo.

b- Tainter dá o exemplo do desembarque americano no norte da África na segunda guerra mundial.

Foi um caos. Os navios transportavam cerca de 500 mil itens diferentes (partes)- armas, peças sobressalentes, ferramentas, uniformes, materiais, equipamentos, alimentos, remédios etc.. que eram embarcados sem levar em conta a ordem cronológica em que seriam usados no destino. Os itens que seriam usados primeiro, não eram carregados por último. Para pegar um item específico, era necessário descarregar todos os itens. Não havia coordenação para INTEGRAR a variedade dos elementos. Faltou a complexidade requerida para que a coisa funcionasse produtivamente, e sobrou complicação improdutiva.

  • Você deve estar começando a desconfiar que a inoperância do subsistema 2 seja a raiz do mal na saúde suplementar. Bingo!

c- Uma curiosidade: sistemas como bandos de pássaros, cardumes de peixes e formigueiros, também são sistemas sociais complexos, mas estão numa outra classe de complexidade. Não podem ser tratados pela abordagem de Tainter porque não exibem as características dos subsistemas 1 e 2, típicas de sistemas humanos.

Formigueiros e os demais, são constituídos por muitos elementos, mas há pouca diferenciação entre eles (requisito para o subsistema 1). Além disso, esses sistemas biológicos regulam-se sozinhos, não precisam de coordenação "externa" para formarem um todo integrado (subsistema 2). Nós os chamamos de sistemas adaptativos complexos.

Bandos nômades de caçadores coletadores -a organização humana mais primitiva que se conhece- eram sistemas sociais análogos. Não eram complexos porque não precisavam de subsistemas 1 e 2, e não precisavam porque não havia problemas a resolver. Trabalhavam pouco. Dormiam, comiam e copulavam na maior parte do tempo. Não havia fome porque a população se auto regulava instintivamente por meio de abortos naturais e induzidos (não dá para carregar crianças no colo se você tem que percorrer grandes distância a pé). Mas, depois de muito milênios vivendo assim, caça e vegetais comestíveis começaram a escassear, e foi necessário complexificar para sobreviver (criar sociedades complexas por meio de subsistemas 1 e 2) . Foi o que a introdução da agricultura gerou, e, na sequência, fazendas- vilas-cidades-países etc., surgiram como veículos de especialização e integração crescentes, necessários para resolver problemas novos que iam aparecendo.

3-IMPORTANTE PARA A SAÚDE

Complexidade pode ser uma coisa boa para resolver problemas. Não é necessariamente ruim em todas as circunstâncias, só em algumas- SÓ NAS QUE LEVAM AO COLAPSO. Nessas, os subsistemas 1 e 2 não se "encaixam" (não se reforçam, não se complementam).

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Tainter demonstrou outro efeito essencial para entendermos a saúde.

Aumentos de complexidade (via subsistemas 1, 2, ou ambos) sempre levam a aumentos dos custos para "metabolizar" a complexidade adicional. Esse "custo metabólico" é pago em alguma moeda como dinheiro, tempo, energia. Complexidade social é uma coisa econômica, está associada a custos e benefícios.

Exemplos:

-Os ataques às torres gêmeas em 2001, levaram à criação de novas instâncias burocráticas de controle e segurança (Home Land Security/ Transport Security) que exigiram orçamento especial e geraram mais aporrinhação como esperas em aeroportos- "custos metabólicos" adicionais, necessários para resolver um problema emergencial via aumento da complexidade do sistema.

-A COVID forçou a INTEGRAÇÃO rápida (subsistema 2) de uma multiplicidade de PARTES (subsistema 1) em todo o planeta, para viabilizar produção e distribuição de vacinas rapidamente . Custo alto, mas os benefícios compensaram.

-No dia em que estou escrevendo (12 set 2024) discute-se no Brasil a criação de uma "autoridade climática" para dar conta de emergências, ambientais como cheias, incêndios etc. É o mesmo padrão. Os custos metabólicos desse novo ministério só serão compensadores se resolverem o problema para o qual foi criado, se não, serão complexidade improdutiva.

-Outro exemplo: a história ensinou, que sem uma instância de controle (subsistema 2), os governantes tendem a "meter o pé na jaca" endividando-se/imprimindo dinheiro, para atender as demandas da multiplicidade de PARTES que têm de atender (subsistema 1), o que gera inflação.

Inflação descontrolada é a assinatura do colapso numa economia. Qualquer país tem que ter algum tipo de "banco central" com autonomia para atuar sobre a moeda, controlando a inflação para viabilizar sua funcionalidade .

4-ENTRANDO NA SAÚDE-O QUE SIGNIFICA "COLAPSO"?

Sistemas de saúde em várias escalas- desde um grande hospital até um sistema nacional de cuidado- são sistemas sociais complexos. Para serem produtivos têm que ter os subsistemas 1 e 2 bem encaixados.

Qualquer sistema social complexo pode entrar em colapso, e Tainter mostra que isso aconteceu incontáveis vezes ao longo da história. Quanto maior fica o sistema e mais PARTES vai adicionando, mais se aproxima do colapso. Pode demorar séculos como o Império Romano, ou décadas como a antiga União Soviética, mas é inexorável. Tainter estudou e documentou dezenas de casos.

COLAPSO É A DIMINUIÇÃO DE UM NÍVEL DE COMPLEXIDADE QUE TINHA SIDO ALCANÇADO. É UMA SIMPLIFICAÇÃO FORÇADA, QUE OCORRE QUANDO OS CUSTOS DE ADICIONAR MAIS COMPLEXIDADE FICAM IMPAGÁVEIS.

  • COLAPSO de um sistema social complexo não é um evento, é um processo. Não é um "desmoronamento" súbito, é construído aos poucos.
  • Colapso acontece porque adicionar complexidade a um sistema social só resolve problemas se o custo da adição for menor do que os benefícios que gera.
  • A rota para o colapso é traçada ao longo do tempo, por um acúmulo (às vezes imperceptível) de custos gerados por adições de COMPLEXIDADE IMPRODUTIVA.
  • Resolver problemas via aumentos de complexidade, sempre cria novos problemas que exigirão mais complexidade para serem resolvidos.

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Pense no volume crescente de doentes idosos crônicos. Há uns 30 anos havia muito menos deles -doenças infecciosas e outras condições, limitavam naturalmente sua proporção na população. À medida em que se aumentava a eficácia do cuidado, e as pessoa passavam a viver mais, aumentou também a incidência de doenças crônicas- um problema novo criado pela solução de um problema anterior.

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A MEDICINA evoluiu aumentando a complexidade requerida para resolver problemas assistenciais de forma efetiva, mas os SISTEMAS DE SAÚDE que têm a missão de INTEGRAR a multiplicidade de PARTES da assistência, não fizeram o mesmo.

5-MEDICINA É UM SISTEMA SOCIAL COMPLEXO, DENTRO DE OUTRO- O SISTEMA DE SAÚDE

Pense na prática médica em si. Especialidades como cardiologia e oncologia segmentaram-se em subespecialidades como a Oncocardiologia que surgiu para resolver um problema causado por uma solução anterior- novas drogas para tratamentos oncológicos induzindo o aparecimento de problemas cardiológicos.

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Eis meu diagnóstico para a saúde a partir da ciência da complexidade:

-A evolução da medicina fez os sistemas de saúde ficarem mais estressados porque não conseguem integrar os novos tratamentos nos esquemas usuais de financiamento do cuidado. -A multiplicidade de partes oriundas das subespecializações, novas drogas e processos terapêuticos, não é o problema (subsistema1). -O problema é o subsistema 2. O sistema social complexo a que chamamos "sistema de saúde" está disfuncional, gera custos crescentes e caminha para o colapso um dia por causa do sistema 2 (regulação/coordenação/integração), não por causa de causas inerentes à medicina (sistema 1).

  • Perdemos tempo e energia tentando resolver o problema da forma errada. Adicionar mais PARTES (médicos, hospitais ,tecnologias) não resolverá sem a integração proporcionada por um subsistema 2 competente.
  • Médicos não entendem que as taxas de burnout aumentam por isso- é impossível fazer boa medicina num sistema assistencial que depende de um subsistema 2 inoperante.

6- RESUMO DAS CONCLUSÕES DE TAINTER

  • Complexidade é uma ferramenta de problem solving usada por todas as sociedades/instituições sociais que evoluíram a partir dos bandos de caçadores coletadores.
  • Essas sociedades aumentam sua complexidade para resolver problemas novos, e fazem isso porque essa estratégia FUNCIONA.
  • Começam sempre, intuitivamente, pelos problemas mais simples e fáceis de resolver- "as frutas dos galhos mais baixos"- como Tainter chama.
  • A tendência recorrente é continuarem a empilhar camadas de complexidade novas para responder a novos desafios que surgem. Acontece sempre. Você vê isso desde a pré-história.

Adicionar complexidade aumenta custos, e só funciona enquanto resolve problemas cujo custo/benefício compensa. A partir desse ponto, o benefício obtido será menor que os custos da complexidade adicionada.

7- VISÃO GERAL DA COISA

a-  À medida que a complexidade de uma sociedade aumenta, ela amplia investimentos em coisas como produção de alimentos, infraestrutura física, tecnologias/ferramentas, burocracias de controle, processamento de informação, administração, defesa...

b- A dinâmica custo-benefício no início é favorável para as soluções mais simples e de baixo custo que são adotadas primeiro. No entanto, à medida que a sociedade enfrenta novos desafios, as soluções de baixo custo já não resolvem, e as respostas ficam mais custosas. O investimento contínuo em complexidade ainda gera retornos, mas à taxas cada vez menores.

c- A partir de certo ponto o custo não compensa mais. Os retornos são negativos, ou seja, os benefícios são menores do que os custos de investimentos em complexidade adicional. A sociedade está lutando contra a certeza matemática do colapso.        

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-No longo prazo, a tendência de empilhar camadas de complexidade para resolver problemas novos é suicida. As questões globais importantes hoje (tráfico internacional de drogas, aquecimento global, poluição etc.) são sinais de alerta. Da saúde não preciso falar. Investimentos em pesquisas biomédicas já dão retornos decrescentes- inovação também é produto de sistemas sociais complexos- as soluções para os casos simples já foram descobertas, os frutos nos galhos mais baixos já foram colhidos.       

7-COMPLEXIDADE EM MEDICINA É DIFERENTE DE COMPLEXIDADE EM SAÚDE

  • Ao longo dos últimos 100 anos, cuidado assistencial evoluiu do médico que visitava clientes em suas casas carregando tudo o que precisava numa maleta, até os grandes conglomerados que constituem o chamado complexo industrial da saúde de hoje.
  • O aumento da complexidade do sistema garantiu o custo/benefício do cuidado enquanto os problemas mais simples iam sendo resolvidos, mas esse processo já começou a produzir retornos decrescentes- mais complexidade não está se traduzindo em mais benefícios "pagáveis".
  • Os sistemas de saúde estão na trajetória do colapso e necessitam cada vez de mais subsídios para mantê-los num patamar de complexidade produtiva, mas não estão conseguindo. O custo da complexidade adicionada está gerando retornos decrescentes.
  • Não há garantia de que novas tecnologias vão baratear o cuidado em saúde. Continuar adicionando complexidade neste sistema de cuidado que temos - cujo subsistema 2 é completamente disfuncional! -vai aumentar custos.
  • A inflação médica vai aumentar. Cuidado será negado a quem precisa. A judicialização do sistema vai aumentar. Os médicos e profissionais do setor serão ainda mais commoditizados. Taxas de burnout vão escalar.
  • A lógica de Tainter é cortante; a menos que tenhamos a sorte de descobrir algum tipo novo de "energia" para subsidiar a complexidade, na rota em que já estamos, o colapso virá.

8- O CENTRO DA QUESTÃO DA SUSTENTABILIDADE DA SAÚDE- (Vale a pena enfatizar)

A complexidade decorrente da multiplicidade de PARTES no sistema de saúde hoje, é uma complexidade produtiva?

Perguntando de outro modo:

A multiplicidade de PARTES do sistema de cuidado à saúde está sendo coordenada/integrada/organizada e controlada (sistema 2) para resolver problemas de saúde de forma custo efetiva para a sociedade?

A resposta é NÃO. O sistema de saúde está acumulando complexidade improdutiva sem nenhuma razão intrínseca, pois ainda não colhemos sequer os "frutos dos galhos mais baixos. Alguma coisa nos fez saltar para os galhos mais altos, sem ter esgotado os dos mais baixos (ver adiante).

A saúde- COMO SISTEMA! -não tem a complexidade requerida para resolver os problemas de forma custo efetiva.

A MEDICINA -como sistema codificado de conhecimentos e práticas assistenciais, tem a COMPLEXIDADE REQUERIDA para ser produtiva, mas o sistema dentro do qual a MEDICINA funciona, não tem. Por isso, o sistema de saúde está caminhando para o colapso, e eu afirmo que não precisaria estar.

O subsistema 2 na saúde suplementar não funciona porque a regulação só tem ingerência sobre uma das quatro pernas do sistema- as operadoras. Todas as demais estão fora do seu controle. AS PARTES são "embarcadas" de forma embaralhada e em diferentes navios". Não há INTEGRAÇÃO. Pode funcionar?

  • Um sistema social complexo como o da saúde- com infinitas PARTES e tipos diferentes de PARTES - só pode ser sustentável se o sistema 2 estiver operante- um sistema que coordene, regule e integre TODOS os pilares do sistema.

9-É POSSÍVEL GERENCIAR A COMPLEXIDADE EM SAÚDE?

Sim é.

O trabalho de Tainter é considerado pessimista por não apontar saídas realistas para a sociedade. A implicação do que ele descobriu, é que a única saída é SIMPLIFICAR voluntariamente a vida em sociedade-provocar uma espécie de colapso controlado, para voltar a um nível de complexidade pelo qual se possa pagar. Ou isso, ou o colapso.

Das dezenas de casos que examinou, ele só achou um exemplo de sociedade complexa que tenha optado por se simplificar para evitar o colapso (e assim mesmo não foi algo tão voluntário assim), mas eu afirmo que em medicina/saúde isso é possível.

Tainter não tratou especificamente de sistemas de saúde, apesar de citá-los. Quem está fazendo isso sou eu neste ensaio, usando seu framework. E é segundo sua própria lógica que afirmo que o sistema de saúde poderia estar muito mais longe do colapso do que está, implantando uma estratégia controlada de redução de complexidade.

A dificuldade para fazer isso é política, não técnica, como veremos a seguir.

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Em saúde é possível SIMPLIFICAR diminuindo a complexidade com melhoria simultânea de resultados e redução de custos. A estratégia para fazer isso é conhecida há muitas décadas, e se chama ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAUDE.

Vou explicar.

10-RESOLVENDO A SUSTENTABILIDADE DO SISTEMA DE SAÚDE

O colapso não é inexorável em saúde porque os grandes custos do sistema não têm que ser os custos da alta complexidade assistencial. Os custos crescentes que testemunhamos vêm da falta da complexidade requerida para coordenar o sistema (subsistema 2)!

  • Os problemas mais prevalentes de cuidado médico num sistema social complexo, são sempre de baixa complexidade médica.
  • São tratáveis a um custo de complexidade pagável. Sabemos tratá-los. São os "frutos dos galhos mais baixos" do ponto de vista assistencial.
  • Alta complexidade em medicina são "frutos que estão nos galhos mais altos". Existem. Não podem ser ignorados, mas não são os originadores do acúmulo de complexidade improdutiva que colocou o sistema de saúde na rota do colapso!

Examine atentamente a figura abaixo.

A figura diz que numa amostra (suficientemente grande) de usuários, haverá sempre uma proporção muito maior de pessoas que necessitam de cuidados de custo mais baixo, em relação à proporção das que precisarão de cuidado mais complexo/de alto custo.

Vale para saúde suplementar ou SUS. Vale até mesmo para subsegmentos que já tenham diagnostico de alguma doença. Por exemplo, num grupo de diabéticos ou de portadores de alguma condição oncológica, ortopédica etc. haverá sempre mais gente menos complexa do que mais complexa, desde que a amostra seja grande o suficiente (sem viés).

A proporção pode ser algo como 80/20 ou 90/10, não importa. Em volume, o não complexo em saúde (o simples!!) - ganha da alta complexidade médica de lavada!

Se é assim, os negócios em saúde deveriam ter um forte segmento de "varejo" focando na "base da rampa" da figura, onde está o grande volume de necessidades de cuidado . Ali se poderia ganhar dinheiro com estratégias de cuidado que chamo genericamente de ANTECIPAR & PREVENIR- basicamente, atenção primária à saúde. Há tecnologia (barata!) de sobra para viabilizar uma ação decisiva de fomento, incentivos e regulações aí, na base da rampa, nesses galhos mais baixos, que, se bem coordenada (sistema 2) evitaria muitos dos casos em que a alta complexidade assistencial é realmente necessária. Provavelmente evitaria a grande maioria deles Mas...

O BIGBUSINESS da saúde só se interessa pelo "alto da rampa", pois é em DIAGNOSTICAR &TRATAR que estão os retornos financeiros atraentes.

Tudo tende a ser encarado como alta complexidade assistencial- exames caros são prescritos sem necessidade, grandes aportes de infraestrutura e tecnologias sofisticadas, diagnósticos enviesados para forçar internações e outras coisas mais.. [correm até boatos de que certas organizações têm metas para conversão de visitas ao pronto socorro em internações. Será verdade?].

Tudo gravita para intervenções de alto custo nos "galhos mais altos", pois o subsistema 2 é inoperante by design, além de ser, desde sempre, capturado por interesses, adivinha de quem?

𝐀𝐥𝐭𝐚 𝐜𝐨𝐦𝐩𝐥𝐞𝐱𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐝á 𝐝𝐢𝐧𝐡𝐞𝐢𝐫𝐨, 𝐚𝐭𝐞𝐧çã𝐨 𝐩𝐫𝐢𝐦á𝐫𝐢𝐚 𝐧ã𝐨 𝐝á e poderia ser diferente. Líderes informados têm que introduzir políticas concretas para incentivar o aparecimento de modelos de negócios lucrativos a partir da base da rampa e ,para isso, terão forçosamente de regular todos os pilares da saúde suplementar.

O ambiente da saúde privada 𝐈𝐌𝐏𝐄𝐃𝐄 o tipo de inovação que baixaria custos e preços e melhoraria a qualidade do cuidado. O aparato de integração/organização/coordenação necessário para isso (sistema 2) é inoperante. A governança da saúde é como a daqueles navios que transportavam suprimentos para Casablanca na segunda guerra mundial.

11-CHEGANDO AO FIM

  •  Em menos de 30 anos, doentes crônicos tiraram 20 pontos percentuais da margem de lucro das operadoras de saúde, fazendo-o tender a zero. Para lidar com isso, os planos teriam de se complexificar, criando estruturas para dar conta dos problemas desses usuários, mas não conseguem reproduzir internamente a complexidade que existe no ambiente. Fazem parte de um sistema cuja regulação os empurra para a catástrofe. A UHG não saiu do Brasil porque foi incompetente, mas porque foi realista.
  • Notem que a ideia de cuidado com base em valor (VBHC) sofre a mesma restrição. Valor em saúde é sinônimo de custo benefício adequado. Organizações de saúde existentes não têm repertório de respostas para fazer VBHC porque estão inseridas num sistema que não as remunera por valor. Os prestadores teriam de criar internamente processos de coordenação capazes de lidar com a complexidade de um "ambiente VBHC”, e isso não é econômico para elas. As organizações que tentaram, sem criar internamente configurações de coordenação e controle em sintonia com um ambiente VBHC, fracassaram [Karolinska na Suécia, e iniciativas de Einstein, DASA e Hospital Alemão (Vergueiro) no Brasil].

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VBHC não é um problema de medicina, é um problema de engenharia! É um problema de coordenação de encaixes entre peças de módulos assistenciais.

  • Não existe a menor chance de VBHC acontecer em escala, num sistema de saúde com a estrutura de governança atual da saúde suplementar no Brasil.
  • No mundo, VBHC só tem acontecido em baixa escala, e dentro de organizações assistenciais específicas quando há viabilidade econômica - ou seja, quando o custo da complexidade (= subsistema 1+ subsistema 2) compensa.
  • Em alguns tipos de condições oncológicas, por exemplo, isso acontece, mas em outras condições, como AVC, é inviável fazer VBHC em escala, dentro da lógica vigente na saúde suplementar.
  • Os custos da complexidade requerida para resolver problemas de AVC de forma custo efetiva, são proibitivos. O único grande caso de sucesso incontestável em VBHC no Brasil não é da saúde privada, é do SUS e já escrevi sobre ele (por coincidência, é AVC)

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As pesquisas de Joseph Tainter explicam muito bem os movimentos atuais dos agentes do sistema de saúde suplementar - Rede D'Or, DASA, AMIL, Hapvida, grandes Investidores, grandes redes hospitalares e outros agentes.

O BIGBUSINESS da saúde faz exatamente o que seria de se esperar que fizesse segundo a sua lógica. Sabe que formuladores de políticas vão continuar a "proteger o usuário" dando carta branca para que continuem em sua rota bilionária para os galhos mais altos, enquanto o sistema ruma para o colapso, que poderá demorar, mas virá.

O corpo de conhecimentos que Tainter desenvolveu sobre COMPLEXIDADE-SUSTENTABILIDADE e COLAPSO em sistemas sociais rumo ao colapso, traz exemplos análogos ao que chamei no início de bizarrices do sistema de saúde suplementar incluindo tipos de comportamentos predatórios que vemos em toda parte. Seus exemplos explicam até mesmo as quadrilhas de fraudadores que operam no setor. Comportamento criminoso só floresce em sistemas sociais complexo com governança ruim. As máfias da saúde são consequência, não causa.

  • Sistemas como o da saúde não desmoronam de repente, vão se tornando crescentemente disfuncionais. Grandes empresas e investidores do setor não são trouxas, percebem isso, e suas iniciativas atuais são para aumentar seu poder de empurrar custos uns para os outros e impor condições comerciais na marra.

Num sistema social complexo que já está na rota do colapso, a atitude geral é esta: "já que fazer o que deve ser feito é "mau negócio", vamos fazer o que dá dinheiro".

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Sem nunca ter ouvido falar na saúde suplementar brasileira, Tainter escreveu

"Retornos decrescentes geram descontentamento crescente em sociedades complexas . À medida que custos aumentam, há menos benefícios no nível local de cada agente, e mais e mais agentes começam a agir motivados apenas por seus interesses individuais. A sociedade “se decompõe” à medida que todos buscam resolver suas necessidades imediatas sem considerar objetivos do "TODO" de prazo mais longo".

O cara é bom, não acha?

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12- ILUSTRÍSSIMAS AUTORIDADES, ESPERO TER CONTRIBUÍDO,

O sistema de saúde precisa de reforma profunda, não de remendo. Sugiro que ela seja feita com base em 𝐟𝐮𝐧𝐝𝐚𝐦𝐞𝐧𝐭𝐨𝐬 que tenham respaldo científico na linha do que apresentei aqui. Gestão (liderança de verdade!) escolhe um caminho quando se chega à encruzilhada. Em política, vocês estão habituados a prometer tudo para todos (ganha-se eleições assim), mas acomodação é incompatível com gestão.

  • Haverá forte oposição ao tipo de reforma que é necessária. Conselhos médicos vão chiar, e organizações hospitalares vão resistir. A Indústria (farma, insumos) certamente não vai ficar excessivamente empolgada. Todos os que vivem jurando que o "cliente é sua razão de ser" ficarão contra. Vão mexer nesse vespeiro, ilustríssimos?
  • Têm de mexer. Se querem contribuir, e não apenas jogar para a plateia, têm de mexer, reformando profundamente a governança do sistema suplementar de modo a incluir todos os seus pilares. Será realmente difícil, mas querem o quê? Moleza?

Clemente Nobrega

setembro 2024

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Meu curso "GESTÃO DO VALOR EM SAÚDE via VMOs, LINHAS DE CUIDADO e CONTRATOS LASTREADOS EM DESFECHOS" começa tratando da história por trás dos fatos que trouxeram o sistema de saúde à situação em que está. Um VMO- escritório do valor- é visto como agente para construir a complexidade requerida para que VBHC aconteça, a partir de condições médicas específicas, tratadas por linhas de cuidado específicas. Paciente a paciente. Condição médica a condição médica.

Informações aqui .

Clemente Nobrega/ setembro 2024


Sergio Silvestre

Executivo sênior em Healthcare | Gestão de Novos Negócios | Gestão de Relações com o Mercado da Saúde | Operadora de Saúde e Hospital | Gestão de Rede de Prestadores

3 m

Simplesmente maravilhoso texto e raciocínio sobre o atual cenário da saúde no Brasil! Existe solução porém interessa a poucos!

Welfane Cordeiro Junior

Médico Consultor de fluxos hospitalares e sistemas de saúde

3 m

Parabéns Clemente Nobrega pela lucidez. Lamentavelmente a maior parte dos gestores brasileiros desconhece a ciência da complexidade

Paulo Cesar Zapparoli de Souza Lima

Operações de Saúde | Adminstrativo | Financeiro

3 m

Muito bom , professor!! Brilhante contribuição ! além da disfuncionalidade do sistema temos que fazer outros ajustes , por exemplo : nossa produtividade( produto/ hora trabalhador) quando comparada com países de alta renda é muito baixa e tem que melhorar, mas , no caso da saúde, e como entendimento do próprio texto não é na alta complexidade q devemos ter produtos crescentes( isso seria mais uma camada de ineficiência ) e sim na APS ( é uma questão de direcionamento de incentivos) .

Emanuel Mordoch

Proprietário, alfaiatedoslivros...livros sob medida

3 m

Clemente que tal se "candidatar" a Ministro da Saude, eheheh

Marcos Anacleto

Diretor Executivo, Diretor de Operações, Diretor Comercial, C-Level, Hospitais e Operadoras de Saúde

3 m

O sistema público e privado de saúde no Brasil enfrentam desafios significativos e precisam de reformas para melhor atender a população. Uma abordagem integrada que considere as necessidades de ambos os setores pode ser a chave para uma reforma eficaz.

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