Trabalhar para fugir de casa é um adultério

Trabalhar para fugir de casa é um adultério

É quarta. O relógio marca 21h, você está sentado no sofá ao lado de sua família. Seu filho tenta chamar sua atenção para o desenho que acabou de fazer, enquanto seu cônjuge comenta sobre os planos do fim de semana. No entanto, você apenas balança a cabeça, murmura respostas automáticas e, na verdade, está longe dali. Sua mente está no e-mail que acabou de receber, nos prazos acumulados ou na reunião tensa que teve mais cedo.

Por fora, parece que está cumprindo seu papel: você está presente, fisicamente, ao lado de quem mais ama. Mas, por dentro, está em outro lugar, preso a um mundo que não sabe parar.

Esse cenário é mais comum do que gostaríamos de admitir. É o dilema de quem vive dividindo suas energias entre o lar e o trabalho, tentando justificar as ausências emocionais com frases como: “Tudo isso é pela minha família.” Será mesmo? Ou o trabalho tornou-se uma segunda família — uma amante silenciosa que exige cada vez mais atenção, deixando o lar em segundo plano?

Há uma ideia essencial que atravessa a história da humanidade: a de que nossa vida deve ser orientada por uma vocação — um chamado que transcende o utilitarismo do dia a dia.

Trabalhar por vocação não é simplesmente cumprir uma obrigação social ou prover recursos materiais para a sobrevivência. É responder a um apelo que une significado, responsabilidade e propósito.

Entretanto, muitos de nós nos perdemos no labirinto moderno, tentando equilibrar nossas vidas pessoais e profissionais, como se estivéssemos presos em um triângulo moral entre nossa família, nosso trabalho e nossa própria integridade. O problema não é simplesmente uma questão de equilíbrio, mas de fidelidade — fidelidade ao que nos foi confiado, seja em casa, seja no trabalho.

A Dupla Vida da Família e Trabalho

Quero deixar uma metáfora ousada, por vezes, até exagerada, mas profundamente verdadeira: muitas pessoas vivem como adúlteros de si. Profissionalmente, justificam sua exaustão e ausência dizendo que tudo é “pela família”. Mas enquanto dizem isso, estão mentalmente ausentes em casa, presos nos labirintos do trabalho. Passam suas noites ao lado de seus cônjuges, mas seus pensamentos repousam nas demandas de projetos inacabados, nos prazos e nos problemas do escritório.

Essa duplicidade é perigosa. Por quê? Porque transforma o trabalho em uma amante possessiva.

Você não apenas finge ser fiel à sua família, mas também perde a autenticidade no trabalho, mascarando-o como algo puramente sacrificial, enquanto, na verdade, se torna um refúgio para evitar os desafios emocionais do lar. É um jogo duplo que corrói ambos os pilares: a família sente sua ausência, mesmo em sua presença, e o trabalho nunca preenche completamente o vazio que você sente.

O lado da vocação como uma mera fuga

É necessário fazer uma distinção clara entre trabalhar por vocação e trabalhar para fugir. O trabalho deve ser significativo, mas nunca um substituto para os relacionamentos pessoais. Quando usamos o trabalho como um meio de nos afastar de problemas familiares, criamos uma segunda família simbólica, com suas próprias demandas e dinâmicas. Porém, essa “família do trabalho” nunca poderá oferecer a profundidade relacional que uma família verdadeira proporciona.

Se você está no trabalho porque é mais “conveniente” do que enfrentar os problemas em casa, você está traindo não apenas sua família, mas sua própria vocação.

A solução começa com a honestidade brutal. Pergunte-se: “Por que estou fazendo isso? Este trabalho realmente serve à minha família, ou uso a justificativa da família para atender minhas próprias necessidades de validação e escape?”

A honestidade é sua única aliada. A verdade é a única força capaz de reconciliar o caos e a ordem. Confesse para si suas prioridades e suas falhas. Em seguida, conecte-se com sua família e reconstrua a confiança, reconhecendo que sua presença emocional é tão importante quanto sua presença física.

O trabalho e a família representam forças complementares: ordem e caos. O trabalho, quando estruturado corretamente, traz ordem para o mundo caótico da sobrevivência material. Mas a família nos chama para o caos relacional — o caos que exige nossa capacidade de ouvir, adaptar e cuidar.

Ambas as esferas requerem nossa atenção plena. Negligenciar qualquer uma delas cria uma ruptura que inevitavelmente nos atinge.

Como Trabalhar Por Vocação

Não trabalhe apenas por dinheiro ou posição. Pergunte-se como sua ocupação contribui para o bem maior — para a sua família, sua comunidade e para você mesmo. Faça do seu lar o centro de sua vida. Isso não significa negligenciar o trabalho, mas estruturar seu tempo e energia para o trabalho servir à sua família, e não o contrário. Não se esconda atrás de justificativas frágeis. Seja sincero consigo mesmo e com aqueles que ama.

Trabalhar por vocação é um ato de fidelidade, uma reconciliação entre nossos papéis de provedores e de pessoas relacionais. Não se trata de abandonar um pelo outro, mas de integrá-los significativamente.

Como sair dessa mentalidade e agir?

Para sair dessa mentalidade de duplicidade — onde o trabalho se torna uma amante emocional e a família é relegada ao papel de desculpa para sua obsessão — é preciso realizar uma transformação interna e prática.

Esse processo envolve responsabilidade radical, honestidade brutal e mudanças conscientes na forma como você encara a vida e organiza suas prioridades. O primeiro passo para mudar é admitir onde você está falhando. Pergunte-se:

  • Estou usando o trabalho para fugir de problemas emocionais ou responsabilidades em casa?
  • Meu trabalho realmente serve à minha família ou está servindo apenas ao meu ego ou à minha necessidade de validação?
  • Meu cônjuge, filhos ou outras pessoas importantes me sentem emocionalmente presente?

A verdade é dolorosa, mas libertadora. Sem a enfrentar, você permanecerá preso em ciclos destrutivos.

Coloque sua família e relacionamentos no centro de suas decisões. Isso não significa abandonar o trabalho, mas entender que ele é um meio para sustentar a vida, não a própria vida.

Crie uma hierarquia de prioridades: sua saúde física e mental, pois sem isso você não pode ser útil para ninguém; sua família, como a base relacional e emocional de sua vida; seu trabalho, como uma vocação e contribuição significativa, mas subordinado aos dois primeiros.

Sem uma estrutura clara de valores, o caos inevitavelmente tomará conta.

Uma das formas mais eficazes de mudar sua mentalidade é estar totalmente presente em cada contexto. Quando estiver em casa, guarde o celular, limite interrupções e reserve tempo de qualidade para ouvir e interagir com sua família. Envolva-se emocionalmente nas conversas e rotinas diárias.

E no trabalho concentre-se em tarefas específicas enquanto estiver lá, mas estabeleça limites claros para que ele não invada seus momentos pessoais. A presença plena é um ato de responsabilidade pessoal e uma forma de honrar as pessoas e os compromissos ao seu redor.

Você precisa construir barreiras práticas entre trabalho e vida pessoal. Algumas ideias são: dedique os primeiros 30 minutos do dia à sua saúde mental e planejamento pessoal, antes de se perder nas demandas externas; coloque um horário para encerrar seu dia profissional e respeite-o e use esse tempo para estar com sua família ou fazer algo significativo para si.

Isso não apenas ajuda a manter o equilíbrio, mas sinaliza para sua mente e corpo que há um tempo para cada coisa.

Pergunte-se: O que estou fazendo que realmente contribui para um bem maior? Minha vida fora do trabalho reflete a pessoa que quero ser? O que estou ensinando aos meus filhos sobre equilíbrio e responsabilidade com meu exemplo?

Trabalhar por vocação é alinhar-se a um propósito que transcenda as demandas imediatas e busque construir algo duradouro. Reconheça que você pode não estar enxergando suas falhas com clareza.

Converse com sua família: “Você sente que estou realmente presente quando estamos juntos? O que posso fazer para melhorar como pai/mãe, cônjuge ou amigo?”. Essas conversas podem ser desconfortáveis, mas, é no confronto com o caos que encontramos crescimento.

Mudar sua mentalidade requer um processo contínuo. Decida o que fará para integrar sua vocação e família de forma harmônica. Teste suas novas práticas e observe os resultados. Pergunte-se regularmente: "Essas mudanças estão me aproximando do equilíbrio que busco?"

Esse ciclo transforma mudanças temporárias em hábitos de longo prazo. Sair dessa mentalidade é um ato de coragem e disciplina. Você deve estar disposto a enfrentar a verdade sobre si e a fazer escolhas conscientes para alinhar sua vida com aquilo que realmente importa. Não é um processo simples, mas, o caminho para uma vida significativa exige esforço. Quando você busca esse equilíbrio, você não só viverá de forma mais harmônica, mas também será um exemplo poderoso para sua família e sua comunidade.

Lembre-se de que, ao final, nossa verdadeira tarefa não é sustentar “duas famílias”, mas viver de forma tão íntegra que nenhuma delas jamais duvide de onde está o nosso coração.

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@lealmurillo | Jornalista | Top Voice LinkedIn | Storytelling e Conteúdo

Eduardo Phelipini

Analista de Negócios na Abraforte - Ass. Bras. Dist. New Holland

5 d

Boa, Murillo!

Gabriel Lelis

Assistente de Compras e Suprimentos | Comprador | Logística | Almoxarifado | Estoque | Contratos | Gestão Custos | Pedidos | Fornecedores | Controle | Vendas | Prospecção | Negociação | Power BI

1 sem

Muito bom Murillo Leal. É necessário ter um equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal, e principalmente esse equilíbrio quanto aos horários. Ter tempo de trabalho é essencial, e ter tempo para a família é emocional! Precisamos de ambos!

Cristina Ferrari

Analista de Dados | Analista de Bi | SQL | Power Bi | Sistemas | Implantação | Suporte N2 | Atendimento N3 | LinkedIn

1 sem

Sensacional o tema e artigo Murillo Leal 😃

Leandro de Andria

Recrutador | LinkedIn Creator | Reestruturação de Currículo e LinkedIn | Orientação de Carreira | Elaboração de Currículo | Simulação de Entrevista | Recrutamento e Seleção | Instrutor de Cursos | DISC

1 sem

Murillo Leal boa reflexão, tem diversos profissionais nessa situação

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