Uma mensagem para você III
As linhas com as quais tecemos laços são compostas de amor, de empatia e de sangue. Linhas transcendentes e imaginárias. Deus quando coseu nosso primeiro fio de vida, fiou-nos em determinada família. Traços, cores, sonhos, desejos... cada linha enlaçada é tafetá de amor, ponto ajour, viés passado a vapor. Para compor a cronicidade de “Uma mensagem para você”, abri a caixinha de costura das lembranças multicolores.
A pré-ciência do amor antecede a consciência de nosso existir. Crescemos à medida que somos amados ou somos amados à medida que crescemos?
Meu laço de cetim tecido por divina linha com minha avó começou quando de minha natividade. Minha primogenitura se deu quando mamãe era adolescente. E vovó era ainda, a que chamamos hoje, jovem adulta. 17 e 38 anos respectivamente. A primeira peça a demarcar minha existência fora adquirida por vovó. Envolta por confecções com fios da alta costura em vestidos e saias rodadas à godê ou plissadas na diuturna jornada de vovó: tules, xadrez, tricoline, evasê de laise, piquet, crepe georgette, devore, gabardine, organza, cetim, guipire, seda, lã, cotelê, chamoix.
Companhia nas entregas vespertinas de sábados aleatórios, “Elza, sua filha é bem comportada!” “É a minha neta mais velha!”, quieta, olhos argutos passeavam pelas mansões e apart do Higienópolis, do Morumbi, do Jardim Europa... Atravessava a vida pela avenida Angélica, pela amurada mansão do antigo dono do Banco Santos, Alto de Pinheiros. Os sobrenomes ainda ressoam entre os cacos de memórias infantes: Staub, Pascolato, Melão, Lopes (a d. Laura do vozeirão), Funaro... mosaico incompleto!
A memória, como a saudade, possui textura e aroma de tecido novo. A memória afetiva ressoa as canções do rei: detalhes tênues das longas jornadas entre ônibus e trens de minha avó.
Aos quarenta e tantos, o grito da independência exalava cheiro de gasolina, embora a austeridade de vovô, d. Elza suplantou a opressão dos ciúmes e motorizou-se. Tivemos longos passeios pela Rodovia Presidente Castelo Branco no Chevette, no Fusca branco. Paradas certa vez por guarda rodoviário “Estou com minhas netinhas, vamos à casa de minha mãe” passamos com ressalvas do olhar piedoso que toda avó ganha. Era o sítio da vó Vira (Elvira). Uma vez ao ano, todas as mulheres da família reuniam-se para a cerimônia da pamonha. As crianças eram responsáveis por descascar e descabelar as espigas de milho. Cada setor cumpria seu papel para a feitura. Às mais velhas, cabia a labuta do cozer. Depois era a comilança e a repartição das prendas.
A memória, como a saudade, é sabor, é saber, é olfativa, é tátil. Os sentidos da memória, com minha avó Elza, são compostos por madrugadas de luzes acesas, corridas ao portão ao fim de tarde quando o zunido da buzina ressoava na porta de alumínio da cozinha embalado pelo coração pirata, cujos sonhos da infância não mais permitem chorar. Compramos. Tecemos. Recomeçamos do zero e seguimos a balada da vida, enquanto crescemos à medida que o amor tece a colcha de retalhos das lembranças.
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Consultor, Analista, Lider, Escritor
4 aQue texto sensacional! Parece que conheci a sua avó pelas suas palavras tão amorosas!