Você investe em um espelho?
Foto de Gantas Vaičiulėnas, Pexels

Você investe em um espelho?

Se você investe em fundos, na certa já se deparou com um fundo espelho por aí. Muito provavelmente, na realidade, seu portfólio é dominado por eles, assim como o meu. É impossível investir em fundos hoje por meio de qualquer banco ou corretora relevante sem usar um espelho.

Os espelhos são fundos de investimento criados por bancos e corretoras que investem em outros fundos, não geridos por eles. É como se colocassem uma embalagem de marca própria para distribuir o produto.

Nesta semana bati um papo sobre a nova regra de fundos, a 175, com o Daniel Maeda, superintendente de supervisão da CVM, o órgão regulador do mercado.

O ponto alto da conversa, pra mim, foi a possibilidade de a 175 desembocar, ainda que não no curto prazo, no fim dos fundos espelho. Maeda foi categórico sobre esse tema: “Nossa expectativa é que simplesmente acabem, não sejam mais usados".

Vou escolher um fundo aqui com ampla distribuição para ajudar você a entender, mas poderia ser qualquer um – todos os melhores hoje têm espelhos em vários bancos e corretoras.

O exemplo que vou usar é o do Ibiuna Hedge ST, um fundo gerido pela Ibiuna, dos ex-diretores de política monetária do Banco Central Rodrigo Azevedo e Mário Torós. Vários bancos e corretoras distribuem esse fundo, ainda que não seja gerido por eles. E fazem isso colocando o produto dentro de outro fundo próprio, criando assim o espelho.

Se você for ao Banco do Brasil, vai encontrar o BB Espelho Ibiuna Hedge STH. No Itaú, o Ibiuna Hedge STR Seleção. No Safra, o Manager Ibiuna Hedge STH. No Santander, o Acesso Ibiuna Hedge STS. Na XP e na Rico, o Ibiuna Hedge ST Advisory. E por aí vai.

Cada um desses é um fundo diferente, com CNPJ próprio, ainda que a estratégia seja uma só.

Como isso atrapalha sua vida? De várias formas. Você decidiu que quer investir no multimercados da Ibiuna, mas se confunde com tantos nomes e CNPJs diferentes ao procurar por ele. É como buscar por uma pessoa que tem vários CPFs – mais difícil, né?

Além disso, ainda que não seja costume hoje colocar uma taxa a mais no espelho – os distribuidores já são remunerados com um pedaço da taxa de administração – você acaba se confundido com o fato de cada distribuidor divulgar a taxa de um jeito.

Alguns chegam a dizer que o fundo é taxa zero porque não somam, na divulgação, a taxa do fundo investido.

E o problema mais grave do espelho, na minha opinião, é o prejuízo à livre concorrência.

Se você quiser continuar investindo no mesmo fundo, mas trocar um banco ou corretora por outro, por mais que a estratégia seja exatamente a mesma, não vai conseguir levar seu fundo com você se ele for um espelho. Afinal, o fundo é outro, com um CNPJ diferente.

“Os fundos espelho têm um impacto muito ruim para o investidor de forçá-lo, caso ele queira mudar de distribuidor, a resgatar de um fundo espelho e aplicar por meio do canal de outro distribuidor, muitas vezes em outro fundo espelho. Cada vez que ele entra e sai, paga imposto de renda. Se for um investimento longo, com rentabilidade alta, isso por si só inviabiliza a saída. Ele pensa: vou pagar imposto alto, não vou sair" - analisou Maeda em nossa conversa.

E seguiu: “Isso nos entristece muito. A competição só vai funcionar de verdade se o investidor tiver essa fluidez de trocar".

Eu concordo plenamente. E também os investidores que participaram da live reforçaram o coro, animados com a possibilidade de mudança para poderem trocar livremente de corretora ou banco sem prejudicar a construção de patrimônio.

E como a 175, a nova regulação de fundos, pode mudar isso? Ela propõe uma nova estrutura para o mercado. Nela, o fundo passa a ter duas camadas: a classe e a subclasse.

No caso da Ibiuna, por exemplo, o Ibiuna Hedge ST seria uma classe, que guarda as estratégias do fundo. E cada espelho poderia ser uma subclasse, feita para um distribuidor. Ou até uma subclasse poderia ser acessada por vários distribuidores.

Hoje os distribuidores têm ótimos pretextos para ter os próprios espelhos. Eles algumas vezes conseguem negociar capacidade com o gestor para abrir o fundo em sua plataforma enquanto está fechado em outras e podem definir características próprias, como aplicação mínima, por exemplo.

O efeito colateral – que é óbvio que os bancos e corretoras consolidados amam – é o de reserva de mercado. Em bom português, assim eles prendem o investidor no pé da mesa. Nem é preciso tratá-lo bem. Ele vai ficar porque sair teria um custo tributário relevante.

A nova regulação, ao criar as subclasses, permite que os distribuidores preservem atributos do espelho sem impedir a mobilidade de quem investe.

Deixe-me testar uma metáfora aqui. Hoje cada espelho é uma casa diferente. Pra trocar um pelo outro, mesmo que as casas sejam idênticas, você precisa sair pela porta da rua - e sempre que o faz, paga imposto.

Na nova estrutura, a estratégia passaria a ter uma casa única (classe). Os espelhos (subclasses) passariam a ser cômodos dela. E você conseguiria transitar entre eles sem sair pela porta da rua – ou seja, sem resgatar e sem pagar imposto.

Afinal, na prática, você estará trocando de distribuidor, não de fundo.

Nesse novo modelo, haveria um único Ibiuna Hedge ST, com um só CNPJ, e subclasses diferentes para atender aos pedidos dos diferentes distribuidores.

Não quero entrar nesse ponto pra não me alongar demais, mas a nova regulação traz regras de transparência das taxas que também vão facilitar a comparação de um cômodo com o outro. E, como a casa, digo, a classe, vai ser a mesma para todos, você não vai ter que se preocupar se a estratégia é mesmo idêntica.

É claro que esperamos que o mercado vá espernear e resistir. Os fundos espelho são uma ferramenta poderosa para evitar o avanço de concorrentes. Clientes já conquistados e amarrados são obviamente mais fáceis de lidar.

Junto com a nova 175, a CVM também já colocou em audiência pública um projeto normativo específico sobre portabilidade de investimentos.

Não é uma mudança rápida, mas é reconfortante saber que o rumo dela é bom pra nós que investimos.

A estrutura de classes e subclasses, da qual se espera o desdobramento da morte dos fundos espelho, está prevista para entrar em vigor em abril de 2024. É uma mudança operacional relevante para a indústria, que toma tempo. Então o mercado tem até o fim do ano que vem para se adaptar.

No ano seguinte, 2025, Maeda contou pra nós que a CVM deve tocar um diagnóstico de como tudo aconteceu. A expectativa, disse, é que esses fundos constituídos somente como canal de distribuição, os famosos espelhos, acabem, deixem de ser usados.

“O participante de mercado que não tiver migrado vai ser objeto de ofício perguntando porque não transformou um fundo de cota em subclasse dado que é mais barato, mais transparente, mais simples e mais portável", diz Maeda.

Quero acreditar que vai faltar argumento para manter a reserva de mercado.

Se você já investe em um espelho, não se preocupe. Estamos juntos, hoje não tem muita alternativa mesmo. Mas, se tudo der certo, vamos de forma transparente e suave ser migrados, sem ter que fazer qualquer resgate, para uma subclasse. E assim ganharemos mobilidade entre corretoras e bancos.

Ainda que haja um longo caminho à frente, hoje quis deixar você ciente desse avanço no radar. Acredito que o conhecimento pode nos levar a participar ativamente dessa evolução, sendo mais um peso na queda de braço a favor das mudanças que colocam fim aos espelhos, promovem a livre concorrência e assim beneficiam nossa construção de patrimônio.

Um abraço,

Luciana Seabra.


PS: O fim dos espelhos é só uma consequência possível para a pessoa física da nova 175, a regulação de fundos. O bate-papo com Daniel Walter Maeda Bernardo , organizado em conjunto com a B3, foi rico e está gravado aqui. Recomendo que assista!

MIGUEL LARANJEIRA, PQO® CEA® CFP®

Especialista em Investimentos Alta Renda | ION Private Itaú Unibanco

1 a

Muito boa a abordagem Luciana Seabra , dificulta os comparativos, a estrutura de custos vira uma caixa preta, mas com exceção de alguns bancos grandes, na maioria já está disponível uma boa variedade de fundos conta e ordem, na plataforma do Íon por exemplo já são algumas dezenas permitindo não apenas a mobilidade de poder portabilizar desta plataforma para o mercado quanto trazer do mercado sem a necessidade de fazer resgate e fazer antecipação de imposto de renda.

Rafael Brandão

Ajudando administradoras de fundos a otimizar sua controladoria e alcançar melhores resultados financeiros

1 a

Gostei muito do texto. Simplificou uma imensa complexidade e explicou na prática. Achei perfeito 🎯🎯

Mais autonomia e flexibilidade para os investidores. Será excelente.

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