Vox populi, vox Dei?
“Porém eles continuaram a gritar bem alto, pedindo que Jesus fosse crucificado; e a gritaria deles venceu. Pilatos condenou Jesus à morte, como pediam. E soltou o homem que eles queriam — aquele que havia sido preso por causa de revolta e de assassinato. E entregou Jesus para fazerem com ele o que quisessem”. (Lucas 23.23-25)
Recorrente é o jargão no qual se encaixa o excerto destacado acima: “a voz do povo é a voz de Deus”. Segundo uma corrente da Sociologia, tendemos a unir nossa voz à da multidão. Talvez, por vergonha de ser o galo solitário a tecer a manhã. Ou ainda, por preguiça social de se destacar como ser único, ímpar, pensante e imune à força da urbe.
Atribui-se a Alcuíno de Iorque, em carta a Carlos Magno, 798 d.C., a máxima citada acima em contexto:
“Nec audiendi qui solent dicere, vox populi, vox Dei, quum tumultuositas vulgi semper insaniae proxima sit”. (E essas pessoas não devem ser ouvidas por quem continua dizendo que a voz do povo é a voz de Deus, já que a devassidão da multidão sempre está muito próxima da loucura.)
Loucuras à parte, seguimos nossos dias como seres a viver, tontamente, o curso como as personagens de Eurípedes: comuns, excluídas e engaioladas na celeuma da krátos brasileira. Perdemos nossa alma à medida que nos curvamos como os vassalos de impérios antigos. Permanecemos cegos e surdos-mudos diante da barbárie, da crueza humana. Semelhante à multidão, vociferamos pela morte de Cristo, quando, emudecidos, não lutamos contra as injustiças pelas quais Jesus chorou enquanto contemplava Jerusalém.
Ainda não conseguimos descobrir “o que é preciso para conseguir a paz” (Lucas 19.42a), qual a via crucis lúdica, na qual é possível aprender a caminhar com visão 180o diferente da narcísica. O id freudiano é sobreposto, porque cedemos às vontades primitivas, voz que há muito tentaríamos calar. Perdemos nossa alma à medida que cedemos, aceitamos e damos de ombro diante dos usos e costumes a que nos colocamos. Tememos o ridículo, tememos expor nossa fé ante a vox populi. Apavoramo-nos com a ideia da solidão. Não é mais possível medir o ser em detrimento do ter.
Basta que olhemos ao nosso derredor para comprovar: o sermão da montanha está ultrapassado. Cristo fora um sábio a frente de seu tempo, o herege judaico, cujas palavras, embora permaneçam, enfraquecem na mesma proporção em que há um declive do Cristianismo. O galo continua a cantar, ainda que o neguemos. Os remanescentes permanecem. A fé permanece. Onde? Em mim! E naqueles em que firme é o desejo de ser, genuinamente, uma figura mimética de Cristo, um imitador, um seguidor, um servidor...
A hagiografia de Cristo possui quatro versões canonizadas, três das quais compõem os Evangelhos sinóticos. Narram consoante aos três anos de seu ministério, embora dois deles iniciem com o prenúncio de sua natividade, cujos sinais eram conhecidos por quem o aguardava. Ainda o aguardamos.
O trecho destacado é a concretização das palavras proféticas de Isaías 53.7-9: “Ele foi maltratado, mas aguentou tudo humildemente e não disse uma só palavra. Ficou calado como um cordeiro que vai ser morto, como uma ovelha quando cortam a sua lã. Foi preso, condenado e levado para ser morto, e ninguém se importou com o que ia acontecer com ele”, nem mesmo seus discípulos. O Cristo histórico e messiânico personifica o amor ágape, testifica a veracidade das epístolas paulinas, as quais perpassavam um tempo de crise política, social, ética e de fé como o nosso: corrupção, falácias, latinização, artimanhas políticas, acordos, declínio do clero, esfriamento do amor.
O passado está a nos ensinar, custosamente, não conseguimos aprender. O erro é cíclico. Oscilamos. Caímos. Impérios são destruídos. Mártires, assassinados. Pobres, explorados. Ainda assim é possível sussurrar: Jesus, “lembre de mim quando o senhor vier como Rei!”.