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Por Ana Rosa Alves — Rio

A Suprema Corte dos Estados Unidos, de supermaioria conservadora, derrubou nesta sexta-feira por seis votos a três o direito ao aborto legal no país, revertendo a histórica decisão Roe contra Wade, de 1973. O veredicto, cujo esboço havia vazado em maio, significa que o aborto será banido ou significativamente limitado em ao menos 21 dos 50 estados americanos, com impactos que serão piores para as mulheres pobres e pertencentes a minorias.

A decisão põe fim à garantia federal do direito ao aborto até que haja viabilidade fetal — ou seja, até que o feto possa sobreviver fora do útero, o que ocorre entre a 22ª e a 24ª semana de gestação. Isso não significa que o aborto está proibido nos EUA, mas sim que ele deixa de ser considerado protegido constitucionalmente e que cabe a cada estado legislar sobre sua legalidade. Estados controlados por republicanos tendem a seguir a opinião do tribunal máximo do país.

Os nove juízes analisavam um caso chamado Dobbs contra Organização da Saúde da Mulher de Jackson, referente a uma lei do Mississippi que bania praticamente todos os abortos após a 15ª semana de gestação. A constitucionalidade da legislação foi questionada por ir de encontro à cláusula da viabilidade fetal, reforçada por uma decisão de 1992, a Planned Parenthood contra Casey. A partir desta sexta, contudo, nada disso vale mais.

Os desafios à Roe contra Wade foram constantes desde 1973, mas o ex-presidente Donald Trump assumiu como uma de suas plataformas de campanha derrubar a jurisprudência. O assunto foi central na escolha dos três juízes que nomeou para a Suprema Corte, e o trio composto por Brett Kavanaugh, Neil Gorsuch e Amy Coney Barrett foi essencial para reverter o direto de quase meio século das americanas.

A decisão é retrato não só das divisões ideológicas na sociedade americana, mas também de uma divergência interpretativa entre os juízes da Suprema Corte que reflete essa polarização. Os conservadores têm uma leitura conhecida como originalista, e argumentam que o direito ao aborto não está explícito na Constituição americana. Os progressistas, por sua vez, creem que a interpretação da Carta, que é de 1787, deve evoluir com o tempo.

No centro do imbróglio está a 14ª Emenda da Constituição, que versa sobre o Estado não poder privar seus cidadãos de "vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal". Roe contra Wade determinava que o direito ao aborto é englobado pela cláusula, leitura que nesta sexta foi rejeitada pelo trio nomeado por Trump e pelos juízes conservadores Samuel Alito e Clarence Thomas:

"Roe estava categoricamente errada desde o início. Sua argumentação era excepcionalmente fraca e a decisão teve consequências prejudiciais. Longe de trazer um acordo nacional sobre a questão do aborto, Roe contra Wade inflamou o debate e acirrou as divisões", escreveu Alito, que redigiu a opinião da maioria. "É hora de respeitar a Constituição e devolver o tópico do aborto aos representantes eleitos pelo povo."

O chefe do tribunal, John Roberts, endossou a maioria, mas fez uma ressalva afirmando que não derrubaria de vez o precedente. Já os três magistrados progressistas, Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Stephen Breyer — que em breve se aposentará, dando lugar a Ketanji Brown Jackson — foram contundentes em sua oposição:

"Ao derrubar Roe e Casey, este tribunal trai seus princípios-guia. Com lamento — por esta corte e, ainda mais, pelas muitas milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental — nós discordamos", escreveu o trio. "Independentemente de qual seja o escopo exato das leis iminentes, um resultado desta decisão é certo: a redução dos direitos das mulheres e de seu status como cidadãs livres e iguais [perante a lei]."

Mudanças imediatas

O impacto do veredicto é imediato para milhões de americanas: 16 estados têm leis prontas para proibir o procedimento em todos ou quase todos os casos. São as chamadas "leis-gatilho", que apenas esperavam a reversão de Roe contra Wade para entrar em vigor.

Os vetos já valem em Alabama, Arkansas, Kentucky, Louisiana, Missouri, Oklahoma, Dakota do Sul e Wisconsin. Em breve, passarão a valer também em Idaho, Mississippi, Dakota do Norte, Tennessee, Texas, Virgínia Ocidental, Utah e Wyoming. Há algumas exceções para casos em que a vida da mulher está em risco, porém parte significativa dessas leis não faz ressalvas para estupro ou incesto, por exemplo.

A Flórida e o Arizona têm leis que entrarão em vigor nas próximas semanas para vetar o aborto após a 15ª semana de gestação. Já Geórgia, Ohio e Carolina do Sul têm medidas iminentes que limitam o procedimento a seis semanas.

Juntas, as 21 unidades federativas com leis antiaborto já prontas têm quase 27 milhões de mulheres em idade reprodutiva, segundo o New York Times. Não coincidentemente, Trump venceu em 18 delas há dois anos. Há seis anos, quando chegou na Casa Branca, foi o mais votado em todas.

O futuro do aborto é incerto em outros nove estados e parece garantido nos 20 restantes, localizados principalmente no Nordeste e na Costa Oeste americana. Isso significa que pouco deve mudar para as moradoras de lugares como Nova York ou da Califórnia, mas que as outras americanas que desejarem abortar precisarão viajar centenas de quilômetros até lá para ter acesso ao procedimento.

Os empecilhos, contudo, não são poucos. Várias mulheres recebem por dia e não podem perder uma jornada de trabalho ou arcar com os custos da viagem. Outras não têm com quem deixar os filhos, por exemplo. E tudo isso sem levar em conta o preço do procedimento: um aborto no primeiro trimestre geralmente fica ao redor de US$ 508, segundo um levantamento do Instituto Guttmacher. No último, pode passar de US$ 3 mil.

Hoje, a mulher que busca um aborto nos EUA, em média, é pobre, já tem filhos e está até a nona semana de gravidez, mostram os dados do Guttmacher. Ela tem entre 20 e 30 anos, não terminou a universidade e nunca abortou.

Na mão dos eleitores

Estima-se que, no início dos anos 1970, entre 200 mil e 1,2 milhão de mulheres faziam abortos ilegais no país, com centenas de mortes por complicações. Há 43 anos, contudo, Jane Roe, pseudônimo de Norma McCorvey, uma mãe solo grávida pela terceira vez, foi à Justiça questionar a constitucionalidade da lei texana que vetava seu direito ao aborto.

Os advogados da mulher disseram que ela não podia viajar para fora do estado para fazer o procedimento e argumentaram que a lei era muito vaga e infringia seus direitos constitucionais. A decisão da Suprema Corte, emitida meses após a reeleição de Richard Nixon, lhe foi favorável.

O veredicto deste ano, por sua vez, vem às vésperas do pleito legislativo de novembro, em que todos os assentos da Câmara, um terço do Senado e vários governos estaduais vão à votação. Para os democratas, o assunto deve dar um bom fôlego para uma base que, com anos de pandemia e o aumento do custo de vida, não tem muito em que se agarrar. O próprio presidente Joe Biden deu o sinal para sua base:

— Foram três juízes nomeados por um presidente Donald Trump (...) para pesar a balança da Justiça e eliminar um direito fundamental das mulheres neste país — disse o presidente, que raramente se refere a seu antecessor pelo nome. — Os eleitores precisam fazer suas vozes serem ouvidas.

Outros direitos em xeque?

Desde antes do site Politico vazar o rascunho, contudo, o veredicto desta sexta parecia iminente. Há dois anos, em junho de 2020, o tribunal rejeitou uma lei da Louisiana que restringia duramente o procedimento, com Roberts — o mais moderado dos juízes conservadores — endossando a maioria.

Ao fim daquele ano, contudo, a composição do tribunal já era significativamente diferente. A juíza Ruth Bader Ginsburg, ícone entre os progressistas americanos, morreu apenas três meses depois, e Trump correu para nomear Coney Barrett como sua sucessora. Na sessão em que os argumentos do caso foram apresentados, em dezembro de 2021, a corte já havia sinalizado para qual lado tenderia.

Ao justificar sua decisão nesta quarta, Thomas, um dos juízes mais conservadores, afirmou que o tribunal também deve "reconsiderar" outras três decisões. O veredicto que legalizou o acesso de pessoas casadas a contraceptivos, de 1965; o que derrubou leis antissodomia que criminalizavam relacionamentos homossexuais, de 2003; e o que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo, de 2015.

Apesar da decisão desta quinta afirmar que o argumento usado para derrubar Roe contra Wade — de que o aborto não se inclui na definição de "liberdade" da 14ª Emenda — não deve ser aplicado a outros assuntos, Thomas discorda. Segundo ele, o tribunal tem o dever de "corrigir o erro", algo que endossa os temores de ativistas sobre quais outras garantias legais podem entrar na mira do tribunal.

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