ALGUMAS REFLEXÕES QUE NECESSITAM SER FEITAS EM RELAÇÃO
À CRISE DO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE NO BRASIL

ALGUMAS REFLEXÕES QUE NECESSITAM SER FEITAS EM RELAÇÃO À CRISE DO SISTEMA PÚBLICO DE SAÚDE NO BRASIL

Desde sempre, seja vivenciando (em campo) as consequências da crise seja academicamente pesquisando suas razões, tenho me dedicado a entender o sistema brasileiro de saúde - a inquietação que me tem motivado é identificar o “por quê” da crise no segmento e as razões do não encontro de efetivas soluções para seu real enfrentamento.

Como apresentado em livro por mim recentemente publicado “Uma reflexão crítica da crise do Sistema brasileiro de Saúde: o processo decisório como fator determinante da crise no sistema brasileiro de saúde”, demonstro, de modo cientificamente sustentado, que a perenidade dessa crise tem como causa determinante a fechada cultura dos profissionais do segmento, que avessos a qualquer tipo de mudança, tendem acriticamente a rejeitar qualquer iniciativa que implique no acompanhamento, controle e, principalmente, no repensar de suas práticas (temem eles que, com mudanças, seja possível identificar fragilidades em suas práticas e, por consequência, haja desgastes no status quo por eles adquirido na Sociedade).

Todos os stakeholders envolvidos nos processos de gestão do segmento, nos discursos, reconhecem como necessário a promoção de mudanças, porém, na prática, as pequenas alterações aceitas e implementadas têm tido como limite de acolhimento incursões pontuais nas causas visíveis dos problemas – o start dessas mudança vem de “fora para dentro”, atuando gestores e governantes como “bombeiros de plantão”. A consequência dessa postura, como previsível, é o insucesso das iniciativas, pois, como já dizia Einstein, “Insanidade fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

Através das linhas de reflexão estimuladas e discutidas no citado livro, fica evidenciado ser a cultura do segmento saúde fator determinante na contaminação de suas decisões, as quais, numa direta relação de causa x efeito, retroalimentam negativamente o sistema, perenizando uma crise que, há décadas, tem sido vivenciada no segmento – existe um corporativismo velado nas decisões que, conforme prefiro entender, é inconsciente. Assim o sendo, por serem as decisões do segmento construídas a partir de percepções, argumentos e dados técnicos incompletos (e, não raro, tendenciosos), favorecem elas (decisões) a criar ambientes cada vez mais conflitados e resultados pouco efetivos na reversão da citada crise. Por mais grave... os usuários-clientes do Sistema, que em verdade deveriam ser o foco da atenção na elaboração das políticas e estratégias do segmento, têm sido despriorizados, permanecendo as práticas de atenção em saúde estruturadas na direção do atendimento dos interesses e necessidades dos profissionais e governantes, os quais, como provedores, deveriam dedicar sua força de trabalho para atender, com seus saberes e poderes, as expectativas e necessidades dos usuários-clientes do Sistema brasileiro de Saúde.

A esse cenário, que por si só já é perverso – ressalve-se, sem que seja essa realidade perspectivada sob a ótica acima apresentada e/ou mesmo aceita enquanto direcionador para discussão das necessárias mudanças (seja pelos profissionais seja por gestores-governantes do segmento) –, se tem visto agregar ao problema um novo referencial, que abraçado pelos governantes, a partir de argumentações pouco sustentáveis, tem contribuído para o aprofundamento da crise - a entrega da gestão dos Sistemas de Saúde para Organizações Sociais (OS). A argumentação para sustentação da delegação de “atividades típicas do Estado” para o setor privado tem sido os limites impostos pela legislação fiscal e a necessidade de profissionalização da gestão do segmento: argumentos que, se em tese são “palatáveis” nos discursos politicamente vendáveis a uma Sociedade carente por soluções para os muitos problemas de assistência em saúde, apenas encobrem uma realidade distante do chamado “interesse público” - inexiste falta transparência nos dados usados para sustentação das argumentações apresentadas e, muito especialmente, para suportar a alardeada economicidade gerada com a contratação de OSs para gestão dos sistemas de saúde (linhas de sustentação que não sobreviveriam a qualquer análise mais criteriosa).

A falácia dessa nova realidade, em verdade, tem como “norte oculto” a ideia de que, contratando uma OS para fazer gestão das unidades de saúde da rede pública, a responsabilidade que caberia ao Estado quanto aos resultados assistenciais dessas unidades passaria para às OSs contratadas, estando os governantes-gestores desonerados dessa obrigação, podendo os mesmos culpar, a partir daí, os novos players por eventuais insucessos. E mais... quando nos dispomos a refletir sobre essa nova realidade, que incontestemente é mais cara e tende a ferir um dos princípios pétreos do SUS (o conceito de hierarquização integrada do Sistema de Saúde), podemos entender que essa “equivocada solução” tão somente tem servido para burlar a legislação criada para dar transparência e segurança à gestão pública, favorecendo a criação de ambientes de instabilidade que vem provocando a lenta deterioração (e desaparecimento) do “fazer público” na área de saúde - ações que outrora eram realizadas por profissionais selecionados dentre os melhores, através de concurso público transparente e impessoal, agora são realizadas sem qualquer critério objetivo. Inclusive, reforçando essa linha de argumentação, é possível ser percebido, quando criticamente nos predispomos a analisar essa questão, que as OSs administram seus contratos de modo personalíssimo, sem que haja qualquer unidade de gestão, até porque, previsivelmente, tem elas como foco de orientação nas suas práticas os específicos interesses de seus dirigentes (e não o interesse público).

Enfim... podemos assegurar que o problema da crise no sistema de saúde brasileiro, de modo diferente do que tem sido alardeado nos discursos de profissionais, gestores e governantes, não é o sucateamento das unidades, insuficiência de tecnologia e estruturas físicas para atendimento dos usuários-clientes, etc.: a centralidade do problema está na cultura dos profissionais do segmento, nos equívocos de construção decisória de seus profissionais/gestores e, mais recentemente, na política de contratação de OSs para gestão das unidades públicas de saúde. Por ausência de senso crítico, razão e transparência nas informações, a Sociedade tem sido induzida a aceitar, como gado, mudanças que a ela têm sido apresentadas como panaceias capazes de resolver a crise no segmento, quando, em verdade, são elas tão somente “band-aid” que atendem a interesses limitados a mandatos eletivos - até porque, com a estratégia de contratação de OSs, criou-se para gestores e governantes a figura de “bodes expiatórios” para verem-se culpabilizados quando situações negativas surgirem no dia-a-dia das unidades. O “caos de gestão” que hoje permeia as práticas e decisões no segmento brasileiro de saúde, criada pelas contradições da cultura dos profissionais de saúde e, mais recentemente, agravadas pela gestão pulverizada e personalíssima das OSs, em realidade, é o “fio condutor” a ser refletido e discutido pela Sociedade, governantes, gestores e profissionais do segmento, assumindo todos que inexistem “receitas de bolo”, “soluções mágicas” ou “salvadores da pátria” capazes de resolver a crise do segmento – trabalho, desarme de polarizações, foco no interesse público e muita resiliência se afiguram o caminho a ser percorrido para solução da crise no segmento público de saúde no Brasil... 


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