Aprendizagem transformadora

Aprendizagem transformadora

O autor certamente mais identificado com a aprendizagem transformadora é Paulo Freire, porque dedicou sua vida a um estilo de educação emancipatória, ou seja, uma educação que tivesse o impacto visível de mudança de vida no educando. Muitos grupos fora do país seguiram esta trilha freireana, sendo um dos mais conhecidos o grupo que começou com Mezirow, no âmbito da educação de adultos, sobretudo de mulheres que, na meia idade, voltavam a estudar e viviam epifanias notáveis, mudando profundamente de vida (Mezirow, 1990; 2000). Mezirow tem muito mérito, mas sempre foi considerado menos rompedor, tomando a dianteira do movimento sobretudo Taylor e Cranton (2012. Mezirow & Taylor, 2009. Mezirow & Associates, 2000). O termo “aprendizagem transformadora” foi aí cunhado e identificado como forma fortemente emancipatória da educação. A proposta principal volta-se para a aprendizagem, tendo no ensino uma função mediadora supletiva. Não havendo aprendizagem, não faz sentido o ensino. Assim, o fenômeno mais incisivo da escola não é o ensino ministrado pelo professor, mas as “atividades de aprendizagem” dos estudantes, sob orientação docente (Demo, 2018). Um dos exemplos mais escrachados do instrucionismo escolar (há aula, instrução, repasse de conteúdo; não há aprendizagem) está no Enem: na versão de 2020, dentre quase 3 milhões de candidatos, 28 tiveram nota máxima em redação – estatisticamente ninguém (Enem 2020. 2021). Aulas houve farta e inutilmente. Não há atividades de aprendizagem. 

Tomando o aprendizado adequado expresso no Ideb, no Pará, o aprendizado adequado de matemática no Ensino Médio (EM) foi de 4.3% em 1995 e de 4.4% em 2019: 24 anos jogados fora. Aulas houve; aprendizagem nunca. Mas continuamos dando aula, porque, no profetismo docente, nada é mais relevante que a aula copiada para ser copiada. Em língua portuguesa, o aprendizado adequado no EM, em 1995, foi de 32,4%, e, em 2019, de 21,2%: caiu, em 24 anos, 12,2 pp! Não se pensa em mudar a aula, mesmo que o aprendizado adequado esteja, inacreditavelmente, diminuindo. Essas aulas são tipicamente inúteis, mas são sacrossantas. Na Bahia, o aprendizado adequado em matemática, em 1995, no EM, foi de 6,1%, e, em 2019, 6,1%! Em língua portuguesa, foi de 30,4% e 26%, respectivamente. São aulas totalmente ineptas, mas ninguém pensa em mudar. No Ceará, hoje destaque nacional sobretudo nos Anos Iniciais (AI) (Demo, 2020), o aprendizado adequado de matemática em 1995, no EM, foi de 11% e, em 2019, de 6,2%. Em língua portuguesa, foi de 29% e 34,3%, respectivamente. Em matemática não anda; em língua portuguesa, levou 24 anos para aumentar 5,3 pp. Continuamos dando aula. 

É comum escutar em escolas públicas que lá a pedagogia é freireana, mesmo com tais resultados, ignorando que Paulo Freire se dedicou plenamente à causa do aluno, à aprendizagem dele, não ao repasse de conteúdo. “Ler a realidade” precisa de conteúdo, certamente, mas sua razão é a transformação dos conteúdos. O governo atual quer expulsar Paulo Freire das escolas. Não precisa. Ele nunca morou lá. 




I. DESPREZO PELA APRENDIZAGEM




Função do professor é ensinar, diz a lenda. Não é nem meia verdade. Função principal do professor, na cartilha freireana, é contribuir para a emancipação do educando. Aula pode haver, mas é ferramenta apenas, externa. Desde Sócrates sabemos que aprender vem de dentro. Não é viável “causar” a aprendizagem de fora, como se fosse possível enfiar conteúdo na cabeça do estudante. Esta percepção foi confirmada pela neurociência atual, que, mesmo positivista e cognitivista, reconhece aprendizagem como autoria do aprendiz – este é seu artífice central. Um desses autores atuais muito considerados é Dehaene (2020), que, por sinal, não aprecia metodologias que apostam em pesquisa do estudante, por exemplo, mas, mesmo assim reconhece enfaticamente: organismos passivos não aprendem; aula copiada para ser copiada não contribui em nada. Aprendizagem transformadora não vem, então, por declamação altissonante, ênfase retórica, promessa docente, refrão pedagógico, mas por atividades de aprendizagem do estudante. Este aprende, literalmente, se quiser, se estiver motivado, se for protagonista, se acreditar no que faz. Aula pode ajudar e atrapalhar. Depende. 

Como é regra no instrucionismo, em geral os professores cuidam do conteúdo a ser repassado, sobretudo aquele dito curricular. Não cuidam da aprendizagem do estudante e o fracasso da aprendizagem está abusivamente documentado hoje no Ideb, PISA, Enem, mesmo que os dados sejam questionáveis, não só porque todo dado, sendo um construto mental sempre também controverso, é questionável, mas principalmente porque são avaliações externas, de cima, de longe, focadas apenas no pedagógico (não levam em conta fatores socioeconômicos, em especial a pobreza dos estudantes), que passam bem longe do que seria “aprendizagem autoral” (Demo & Silva, 2021. Demo & Shigunov Neto, 2021. Demo, 2015). O sistema como tal só cobra as aulas, não a aprendizagem. Por isso, com aprendizado adequado em frangalhos, o sistema, constatando que as aulas foram dadas, atesta sua permanência indefinida, mesmo tão inútil. O professor tende a corresponder nessa inutilidade: tendo dado as aulas, sobretudo repassado todos os conteúdos, empurra o problema para o aluno; aprendizagem é com ele; ensino é com o professor. 

Esta mesma insanidade é parte da formação docente na universidade. (De)forma-se um profissional do ensino – que cumpre na escola a função instrucionista – enquanto ignora-se o profissional da aprendizagem. O fato de que ninguém sabe redigir bem no Brasil está vinculado também ao fato de que o professor não redige, não tem texto próprio, não tem autoria. Mas dá aula! Na universidade, os professores são “adestrados” a repassar conteúdo, à função ensino (Demo, 2021; 2021a), e, em geral, fazem isso devotamente. Os estudantes não aprendem minimamente, mas isto fica de lado, também porque é um pesadelo que é melhor esquecer. Evita-se diagnosticar a escola, até maldizem-se o Ideb e outros indicadores, certamente questionáveis, mas com alguma utilidade, se bem usados. Imagino que o fato de apenas 28 candidatos terem tido noma máxima em redação em 2020 não pode passar em branco. Tanto é loucura não ver nada de importante nisso, quanto é ainda mais loucura não querer ver. Mas a BNCC viu, ainda que em ato falho, quando cita a “recriação da escola” (2018:462. Demo, 2019). Sendo um texto tão conservador, a expressão parece cair do céu, mas, mesmo assim, está correta: a escola que temos passou; precisamos de outra, não da mesma remendada. 

Então, vamos combinar: não havendo aprendizado adequado na escola, ensino não tem qualquer serventia. Aprendizagem, por sua vez, não é produto de ensino; é autoria do estudante, uma reconstrução de dentro para fora, sempre a caminho, sempre se autorrenovando. Papel do professor é também ensinar, mas esta função é vicária: só faz sentido, se o aluno aprende. Qualquer “curso” só se sustenta, se os cursistas aprenderem bem. Não basta ter sido dado, as aulas terem sido ministradas, a frequência ter sido aferida. Por isso, os cursos da pós lato sensu da universidade hoje não detêm importância (pós de especialização, extensão), não só porque requentam uma graduação instrucionista e vazia, mas sobretudo porque não mudam nada no cursista. Alguns estados oferecem tais cursos, sendo o mais destacado Espírito Santo (82% dos docentes teriam feito), mas o efeito sobre o aprendizado adequado dos estudantes parece pequeno, servindo mais para melhorar o salário docente (o que também faz sentido). Em São Paulo, apenas 37% teriam o curso; Ceará, 38,3%. Este estado chama a atenção, pois, sendo destaque nacional nos AI, não tem interesse maior nessa pós-graduação que nunca foi pós-graduação (Anuário, 2021:103). 

Então, a encenação docente também vale, porque ensino é parte do pacote, mas é a parte menos relevante, dispensável ao final. O foco serão as atividades de aprendizagem, que, como regra, não existem, nem mesmo quando se cantarolam “metodologias ativas” (Bacich & Moran, 2018), pois são sequestradas pelos docentes, para enfeitar suas aulas, não para cuidar da autoria dos estudantes. No entanto, a universidade sabe o que é aprender bem. Exige doutorado, nas federais, por exemplo, dos professores, porque, no doutorado o curso muda completamente, se comparado com a graduação: a base é pesquisa, autoria. Na defesa, avalia-se a autoria do candidato. Só “autores” podem fazer parte... De fato, quando a pós stricto sensu é bem feita, pode ocasionar alguma epifania, porque a proposta, orientada por um doutor, é realizada pelo candidato. Na graduação temos o Pibic, um soluço eventual, que mantemos, mesmo assim, até hoje, porque sabemos: aproveita bem melhor a graduação quem pesquisa. A universidade vive uma esquizofrenia agônica: enquanto condena milhões de alunos à aula reprodutiva e espera deles reprodução, na pós stricto sensu – no aconchego da elite acadêmica – vale aprender como autor. Formalmente, a solução seria simples: puxar o espírito da autoria da pós stricto sensu para a graduação (esquecendo a lato sensu que nunca foi mais que a própria graduação). Na prática, uma engenharia complexíssima, porque uma coisa é cuidar de pós-graduandos (poucos); outra dos graduandos (multidões). Está claro que a graduação instrucionista em voga “desperdiça” inclementemente os estudantes. 




II. APRENDIZAGEM TRANSFORMADORA




É uma expressão forte, quase intimidante. Mas era a razão pedagógica de Freire (1997). É o que tem encantado grupos freireanos lá fora (Taylor & Cranton, 2012). A primeira mensagem é cuidar dos aprendizes, porque são o centro de atenção, focadamente. As atividades de ensino são relevantes, mas tipicamente instrumentais, mediadoras. Os professores são fundamentais, mas não aprendem pelos aprendizes. Esta visão afasta a expectativa comum de que curso é aula, curso é repasse de conteúdo, curso é um falando e muitos escutando. Curso é uma experiência de transformação vinda de dentro, através da qual o aprendiz muda em profundidade, sendo esta profundidade questão contextual, variando muito, embora se espere que tenha intensidade, densidade, envolvimento pleno. Esta profundidade permite uma discussão sem fim, porque, sendo fenômeno tão complexo, é problemático avaliar linearmente. Epifanias acontecem, mas não são cotidianas, nem se compram ou vendem, nem se produzem por atacado, porque depende menos do curso; depende, em última instância, do interessado. A questão central será então até que ponto o curso “toca”, “move”, “galvaniza” o interessado, motivando-o a se transformar. O curso não o transforma. Mas pode ser motivação propícia, vinda de fora e que se realiza como reconstrução própria. 

A segunda mensagem indica a importância das atividades de aprendizagem, muito maior que qualquer atividade de ensino. Esta é meio; aquela é a razão de ser. Atividades de aprendizagem são um termo grande, abrigando um leque enorme de chances. Num primeiro momento, podemos focar o que é mais comum, quando ocorre aprendizagem de fato: ler, estudar, pesquisar, elaborar, argumentar, fundamentar... Para considerar que ler, elaborar são parte da aprendizagem, cumpre ter outra noção do que é aprender, tipicamente autoral. Entre nós isto ainda não aconteceu, bastando olhar o exemplo dado do Enem: ninguém elabora porque redação não é reconhecida como atividade de aprendizagem. Há sempre que levar em conta que tais atividades podem ser bem ou malfeitas, porque não possuem efeito linear, mecanicista. Podemos ler bem ou ler mal; elaborar bem ou mal; pesquisar pro forma, sem autoria. A própria estrutura escolar empurra para o instrucionismo: em 45 minutos não é possível ler, estudar, pesquisar, elaborar... Mesmo na universidade, com uma hora e meia, não é viável trabalhar autoria de modo adequado. 

Num segundo momento, é fundamental levar as atividades de aprendizagem para expressões tipicamente autorais, através das quais os estudantes passam a ser protagonistas. Sob orientação docente, os estudantes precisam reconstruir os conteúdos, apropriando-se deles, saindo da condição de papagaio. É longo caminho, construído passo a passo. O primeiro texto será incipiente, começando de quase nada. Vamos refazendo, até se tornar melhor, levando o tempo necessário, o que nada tem a ver com aula de 45 minutos ou de hora e meia. A meta é o texto com devida autoria, e a este podemos dar uma nota, não à média dos textos insuficientes anteriores. Vale a conquista. Podemos então confiar – ainda que relativamente – no efeito de aprender a argumentar, a fundamentar, de apreciar a força sem força do melhor argumento, de convencer sem vencer, de aprender a propor, contrapropor, se autorrenovar sempre, como diria Habermas (1989. Demo, 2011). 

É relativamente comum introduzir momentos de “discussão”, quando alguns arriscam perguntar. É um procedimento muito insuficiente, sobretudo em grandes palestras. Num auditório de 500 pessoas, que 10 perguntem não tem qualquer relevância, nem isto pode ser considerado “discussão”, também porque o palestrante responde sozinho, como oráculo inventado. Lá no doutorado, o orientador se senta com o orientando, e o texto é mastigado juntos, podendo o orientador ajudar muito o processo transformador no orientando (Demo, 2021b). Palestra não é discussão; é apresentação. A discussão que segue é apenas um arremedo, em geral uma farsa. Um curso, porém, teria de cuidar que os estudantes desconstruam e reconstruam os textos, os conteúdos, as teorias, transformando-os em aportes próprios. 

A terceira mensagem é a necessidade de vivência transformadora, que Freire via com perspicácia reconhecida no “ler a realidade” (1989). Emancipação não é um ato intelectual apenas. É profundamente emocional, atravessando a pessoa inteira. Como não pode ser causado de fora, nem manipulado, é preciso cuidar que exista o ambiente para tanto, sem policiar. Atividades autorais de aprendizagem seriam, possivelmente, o melhor ambiente, porque instigam o protagonismo teórico e prático dos estudantes. Mas, como cursos costumam ser teóricos, é preciso cuidar da práxis: a prática política. O termo epifania pode induzir ao erro de ocorrência súbita, também do “além”; pode ser paulatina, numa grande travessia, da qual alguém pode ser transformado. 

É possível pensar em propostas de intervenção na realidade, com devida autoria teórica, tendo como compromisso maior realizar mudanças tão profundas quanto éticas. Da ótica da “extensão”, o que se espera é a capacidade de a formação universitária instigar os estudantes a exercícios concretos de cidadania criativa, alternativa, protagonista. Para isso, é preciso mudar intensamente os vezos atuais instrucionistas, da ótica docente e discente. Qualquer proposta prática (da práxis) precisa se manter aberta à crítica e à autocrítica, para continuar aprendendo. Ao mesmo tempo, cumpre observar que esta pretensão não cabe no conceito atual de “curso”. Primeiro, porque a presença física, sendo essencial, vai diminuir; mais importante é a virtual, ou o tempo que se usa para fazer a intervenção fora da sala de aula. Esta já não é referência para nada. O tempo de duração pode ser flexível, dependendo da práxis. Algumas pode ser previstas, outras nem tanto. 

É importante abrir oportunidades de vivências transformadoras, o que mudaria muito a noção de curso, pois a sequência de conteúdos não define o curso; define a profundidade da transformação. Como mudança profunda não se faz por atacado, é o caso dimensionar aproximações sucessivas crescentes. Se o curso for autoral em grau elevado, mesmo sendo teórico, pode ser importante. É o que sucede comumente no doutorado – é um labor tipicamente teórico, mas alguns conseguem mudar de vida com isso. Seria de todo urgente não propor cursos usuais, a não ser que seja recurso inevitável para a manutenção institucional. Oportunidades de intervenção fazem parte das “atividades de aprendizagem”, que já não se contentam com a transformação intelectual, mas buscam a integral. Produzir textos autorais já é muito bom. Mas decepcionaria Freire. 




III. ASSUNTANDO EXEMPLOS




Professores são importantes, sobretudo assim se acham. No entanto, da ótica da aprendizagem transformadora, a importância docente é mediadora, assim como Freire sempre se colocou como mediador da emancipação dos oprimidos, não seu causador. Importante, em primeira e última instância, é o que os aprendizes fazem, sob orientação docente. Primeiro, não podem só ficar escutando aula ou videoaula, porque acesso a conteúdo agora é ubíquo; pode ser feito em qualquer lugar, a qualquer hora. Levar um estudante para a universidade só para escutar aula é falta de assunto. Nem vale arremedar isso, permitindo que alguns façam perguntas. O estudante vai para realizar atividades de aprendizagem, teóricas e práticas, e isto já indica que a universidade ou a escola não são lugar exclusivo de aprendizagem; pode ser o contrário. Em poucos lugares do mundo se perde mais tempo à-toa do que na universidade e escola, escutando aula. 

Segundo, lembrando o texto de Bauman sobre “vidas desperdiçadas” (2005) – mesmo que ele estivesse pensando em outras populações – cabe em nossa discussão: desperdiçamos os alunos. Vale lembrar também do texto de Santos (2000): “desperdício da experiência”. Há um problema com os professores – metidos a profetas e falando em nome de Deus – acham que são a razão dos cursos; são mediadores, não a razão. A razão são os estudantes, assim como para Freire a razão eram os oprimidos, não ele. Inflamos adoidado o impacto de tais cursos, cuja efetividade se aproxima de zero, quando observamos os resultados na escola (Demo & Silva, 2021). Nem nos damos ao trabalho de avaliar este impacto, porque tomamos como medida nossa excelência (suposta). 

Um exemplo, que me é caro: formação do docente básico na universidade, hoje um lixo (Demo, 2021). Se o curso se propuser a reinventar esta formação, saindo da atual licenciatura e pedagogia, teria de repensar completamente como fazer, também para corresponder ao “ato falho” da BNCC, da “recriação da escola” – para termos outra escola, precisamos de outro professor. Há também uma turma da esquerda que desistiu do professor – não seria mais central na escola. Não é o centro, mas é central, também constitucionalmente, pois responde pelo contado direito com os alunos, pela aprendizagem, currículo, ensino, aprovação, educação. Embora todos nas escolas sejam importantes – todos são aí “educadores” – o papel docente é central, como é central o papel dos pais para os filhos. No centro estão os filhos, mas pais são cruciais. Esta capitulação imita o neoliberalismo, para o qual professor é apenas mão-de-obra: contrata-se e demite-se, sendo sua função repassar conteúdo. A escola privada sempre assim procedeu. Assumo que professor é central, não, porém, para dar aula (computador faz melhor facilmente, sobretudo em contexto da inteligência artificial) (Reich, 2020), mas para cuidar da aprendizagem, da autoria, do estudante. 

Então, um curso que ensine a ensinar é uma caricatura; precisa “ensinar” a aprender, para logo descobrir que aprender não vem de ensinar; ensinar sempre é parte, porque precisamos ser também domesticados na vida (Tiba, 2007; 2007a), mas a graça da pedagogia é emancipação. Veria então duas partes cruciais desta empreitada. Primeiro, o cultivo da autoria teórica dos estudantes, induzindo-os a reconstruir as teorias, o conhecimento vigente, os dados disponíveis sobre aprendizado na escola etc. Pode haver aula, mas é coisa supletiva. Importa a teorização dos alunos, já que teoria não se adota; se usa (Demo, 2011). Importante é a teorização própria, mesmo malfeita; é preferível à bem-feita, mas copiada. Segundo, vivências transformadoras que levam a montar experimentos de intervenção e prática. Pode ser a montagem de um curso novo, com devida inventividade teórica e prática, e testado em alguma escola, em algum curso, em alguma ocasião em que seja viável tirar a limpo se o curso tem alguma verve transformadora, ou é discurso esticado comum. Pode ser a participação (como observador pelo menos) do que acontece numa escola pública, onde se pode ver, com os próprios olhos, a inutilidade da aula copiada para ser copiada. Poderia ser uma experiência impactante, convencer-se de que aula engana os estudantes. Quem quer a aprendizagem deles, cuida disso, não da aula. Pode ser o estudo teórico e prático dos PPPs, em si uma ideia notável, mas totalmente deturpada, porque é “forjado” por fabricação imprópria, para constar, não tendo qualquer relevância prática. Poderia ser experiência impactante ver a distância entre PPP e a própria escola que jura segui-lo, a inutilidade de tais bravatas pedagógicas, o vazio do discurso pedagógico escolar, mantido para autossatisfação docente. Pode ser o desvelamento da alfabetização inicial (nos 3 primeiros anos do ensino fundamental), para descobrir razões da inutilidade do Pnaic: sequer metade se alfabetiza em até 3 anos, havendo estados com 20% (Anuário, 2021:55). Seria experiência impactante, também dolorosa, aceitar que a escola não tem nenhuma condição para fazer o que Freire mais queria fazer: uma alfabetização emancipatória. Antes, há que “alfabetizar” o alfabetizador; este não é culpado, mas não tem condição pedagógica mínima. Depois, é preciso mudar totalmente o resultado do processo: não será mais soletrar, assinar o nome, papaguear termos, mas a qualidade da autoria da criança. Se lembrarmos de educadores infantis notáveis, como Montessori, também Piaget (1990), eles diziam que educação científica, autoria, pesquisa começa no pré-escolar, aos 4 anos de idade. Aprender como autor é da vida, da biologia, não da escola que, em geral atrapalha, como no texto famoso de educação matemática do fim dos 1980 de Carraher et alii (1988): na vida dez, na escola zero! 

O mínimo que esperamos é que o estudante que esteve conosco num curso ou algo parecido, ao voltar para a escola não proceda mais como antes, se repense profundamente, se reinvente como professor básico. Esta visão indica que o curso deve ser longo e híbrido. Longo, porque já não cremos em aula copiada para ser copiada. Este atalho é precipício. A formação atual, instrucionista até aos ossos, não tem efeito relevante, também porque a universidade não tem ideia do que ocorre nas escolas. Fazemos sempre a mesma coisa quando não avaliamos esta coisa. Por isso, é possível dar por 20 anos a mesma aula de matemática, clamorosamente inútil, porque evitamos avaliar. O estudante aos cuidados de quem estudou conosco precisa ter sua aprendizagem assegurada, não mecanicamente, mas ética e pedagogicamente. A pobreza pode atrapalhar muito, mas não impede, assim como, para Freire, a opressão nunca foi barreira intransponível, pois era o desafio propriamente dito. Apostou que o oprimido, mesmo o mais marginalizado, podia “ler a realidade”. Na escola, em meio a PPPs sonoros, escolas cidadãs verborrágicas, pedagogias freirianas de araque, aulas retóricas, não há estudante que “leia a realidade”, também porque o professor não lê. Precisamos consertar isso lá na faculdade. A universidade desperdiça frontalmente seus licenciados e pedagogos. 

Deve ser híbrido o curso, porque a presença física, insubstituível, será menor; a maior parte será com presença virtual, aquele tempo em que o estudante pesquisa, lê, elabora, estuda, teoriza autoralmente, sobretudo vai para a práxis, para experimentos e vivências, individual e/ou coletivamente. Os professores são orientadores, mediadores, nisto insubstituíveis, mas totalmente substituíveis em suas aulas. 




CONCLUSÃO




Voltemos à realidade, porém. Num ambiente tão instrucionista e retrógrado como o nosso, inventar um curso totalmente fora das expectativas é difícil, talvez mesmo impraticável. Quem iria querer um curso assim? Podemos ficar sozinhos falando para nós mesmos. Busquei aqui desenhar aquilo em que acredito, aceitando desde já que não será assim visto por outros, não só porque me pareceriam conservadores, mas sobretudo porque a divergência é parte intrínseca da boa formação e da boa ciência. Constrange-me que um texto tão obsoleto como a BNCC nos indique a “recriação da escola”, em grande parte porque não fomos capazes de assim colocar há muito tempo, também quando tivemos governos mais abertos. O instrucionismo é patrimônio nacional, das esquerdas e da direita (Demo, 2020). 

Espera-se que educação possa encarar o desafio das fake news (Hobbs, 2020), mas, para isso, precisa não ser fake news: é mentira que tenha vocação inovadora. Deixada à sua lógica do poder, como viu Althusser, mesmo de modo determinista (1980) e igualmente Bourdieu & Passeron (1975), devora a mudança em propostas travestidas de avançadas, mas são as mesmas do início do século passado, bem parodiadas no Tempos Modernos de Chaplin. Estamos, a rigor, parados no tempo e, no atual governo, andando para trás. Assim como profetas usam o nome de Deus em vão, podemos usar em vão Paulo Freire. 




REFERÊNCIAS



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Joaquim Dezidério Neto

Executivo & Pesquisador Sênior / Especialista em Gestão & Recursos Humanos. / Consultor de Gestão & Desenvolvimento Empresarial. / Agronegócios / Conselheiro de Organizações. / Jornalista.

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OK! Muito bem! Excelente apresentação e trabalho com muita sabedoria e competência técnica e profissional. Sempre acompanhado os seus Artigos com o melhor conhecimento do seu magnífico trabalho e conteúdo amplo, Estimado Prof. Dr. Renan Antônio da Silva , Parabéns pelo seu trabalho na Rede LinkedIn.

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